segunda-feira, 10 de junho de 2019

O Matrimônio. O número 48 da Constituição Gaudium et Spes. Parte 1.


O número 48 da Constituição Gaudium et Spes, composta de três parágrafos, e que dá abertura ao título sobre o sacramento do matrimônio, tem um série de definições que podemos verificar:

“A íntima comunidade da vida e do amor conjugal, fundada pelo Criador e dotada de leis próprias, é instituída por meio da aliança matrimonial, ou seja pelo irrevogável consentimento pessoal.”

Trata-se de um conceito simples e direto de matrimônio que depois vem a ser desenvolvido com mais profundidade. Já de princípio o número dá total embasamento para o cânon 1055, §1 do CIC que conduz às finalidades do matrimônio, mas também deixa claro que se trata de direito natural, uma vez que fundada pelo Criador.

O casamento, portanto, não é algo que a Igreja Católica inventou, muito menos algo que possa ser propriedade da Igreja, o que denota, desde já que os ataques ao matrimônio são, na verdade, ataques à lei natural, e não à Igreja como muitos querem deixar transparecer.

Independente de qualquer alvo, o que temos é que povos que nunca tiveram contato co o cristianismo ou mesmo muito antes do cristianismo existir, já existia o casamento. O que a Igreja determina, para os seus, é a norma canônica, chamada “forma canônica” para que a celebração tenha validade, entretanto isso é assunto para outro texto.

Essa pequena frase que inaugura o texto do número 48 ainda denota que é preciso o consentimento pessoal para o matrimônio, isto é, sem o consentimento pessoal não há matrimônio. Esse consentimento precisa ser livre e consciente, sem liberdade não há consentimento válido, sem consciência do que se escolhe, também há invalidade. O grande problema nos dias atuais é, antes de tudo, saber onde se encontram os limites dessa consciência.

Seguindo no texto temos:

“Deste modo, por meio do ato humano com o qual os cônjuges mutuamente se dão e recebem um ao outro, nasce uma instituição também à face da sociedade, confirmada pela lei divina.”

Além da insistência do excerto em, frase após frase, manifestar que se trata de lei divina, portanto natural, temos que esse ato é humano, o que nos parece óbvio, mas em dias atuais o óbvio é justamente o que se tem que falar. Animais não tem capacidade de assumir compromisso matrimonial, não podem consentir ou deixar de consentir.

Fala também de se dar e receber um ao outro. Trata-se aqui, mais do que sentimentalismo, ato concreto de agir, se entregando pelo bem do matrimônio e recebendo pelo bem do matrimônio, é o bonun coniugum (bem dos cônjuges).

Por fim, na segunda parte dessa segunda frase, temos que desse ato humano nasce uma instituição que tem repercussão na sociedade e quem advém da lei natural. Essa repercussão da lei natural (lei divina) é justamente o que tanto vem sendo atacado e a total falta de bom senso entre o ato de quem ataca e a realidade é possível ser verificada justamente por ser uma lei inscrita no coração do homem (lei natural). Essa lei não pode ser simplesmente revogada como querem alguns.

Por fim, analisando apenas a terceira frase do primeiro parágrafo, de três, desse número 48, temos o seguinte:

“Em vista do bem tanto dos esposos e da prole como da sociedade, este sagrado vínculo não está ao arbítrio da vontade humana.”

Esse é o ponto crucial para a sociedade atual: não está ao arbítrio da vontade humana. A indissolubilidade do casamento é algo que não está ao mero dispor das pessoas e pode ser manejado sem graves consequências e repercussões.

Se a própria indissolubilidade e não só o direito ao matrimônio está fundada em um direito natural, suas repercussões posteriores são no campo da moral ou legais de religião.

 Tanto assim que a ex-URSS, após abrir-se plenamente ao divórcio após a revolução de 1917, viu-se em situação social degradante e em 1944 estabeleceu nova lei sobre famílias que praticamente tornou o matrimônio indissolúvel. Tudo isso após verificar empiricamente que os divórcios causaram: dificuldades na educação permanente dos filhos, dificuldades com a natalidade, instabilidade no lar e consequência falta de paz social, dificuldade de produção por desagrupamento familiar causado pelo divórcio, como nos confirma Dom Rafael Llano Cifuentes em seu  livro “Novo Direito Matrimonial Canônico”, p.121.



Significa que até um Sistema altamente materialista, que sempre fez questão de combater todos os preceitos religiosos precisou se curvar a realidade desses fatos.

Em casos extraordinários graves e dolorosos a dissolução do vínculo parece ser a coisa mais humana a se fazer. Entretanto, é preciso tomar cuidado com esse tipo de pensamento.

Como o conceito de “casos extraordinários graves e dolorosos” pode ser algo absurdamente subjetivo e amplo, qualquer situação pode caber nesse conceito e tudo poderia ser motivo para divórcio. É precisamente o que acontece nos dias atuais. Por esse motivo poderia ser interessante que houvessem critérios objetivos que justificassem um pedido de divórcio, e não a simples vontade como hoje se dá. Contudo, mesmo assim, percebe-se que, quando se tentou agir dessa forma, os interessados no divórcio começaram a burlar o Sistema causando frivolamente a situação prevista em lei de forma artificial para justificar o divórcio.

domingo, 5 de maio de 2019

Resumo da Constituição Apostólica SACRAE DISCIPLINAE LEGES que promulgou o CIC/1983


No ano de 1983 o então Papa São João Paulo II promulgou o novo Código de Direito Canônico e, para tanto, redigiu uma constituição apostólica com o intuito de manifestar o histórico que levou esse código a ser pensado, estudo e elaborado.

No ano de 1959 o Papa São João XXIII convocou o Concílio Vaticano II e, no mesmo dia, anuncia a decisão de reformar o código de Direito Canônico. O interessante desse ponto fica na questão de que o código deveria, inicialmente, ser reformado, mas o que veio na sequência dos fatos levou o Código de 1917 a ser revogado para que um ouro lhe desse lugar. São João Paulo II, em sua constituição apostólica Sacrae Disciplinae Leges explicita esses fatos.

Outro ponto que nos parece interessante é que o Código é anunciado antes mesmo de se saber os detalhes do Concílio que ainda havia de acontecer e, como todo Concílio as bases estruturais podem ficar abaladas. São João XXIII sabia disso, mesmo assim ainda manteve a ideia de se fazer um novo código como que prevendo que sua necessidade era premente.

Claro que o novo Código precisaria ser promulgado somente após o Concílio, afinal era preciso que o Código tivesse suas bases alicerçadas no Concílio e não gerasse erros e contradições que certamente aconteceriam se fosse promulgado antes ou durante o referido Concílio.

São João Paulo II também informa em sua constituição Apostólica que toda a construção do Código foi colegial. A colegialidade da construção do código foi algo nada menos que monumental uma vez que contou com diversas comissões de clérigos e leigos especialistas em doutrina teológica, história e sobretudo em direito canônico. Enfim, se tratou de uma superestrutura para a composição de uma superlegislação que pretende contemplar um planeta inteiro de católicos e, por alguns cânones, não católicos.

Essa colegialidade de que tanto São João Paulo II se orgulha e que o Código de Direito Canônico se baseou durante todos os seus estudos e estruturação no decorrer dos pontificados de São João VI e João Paulo I, se mostrou a índole do Concílio Vaticano II que, a esse momento, já tinha terminado e servia de sustentação para os estudos do Código.

São João Paulo II deixa claro que “ao promulgar hoje o Código, estamos plenamente conscientes de que este ato emana de nossa Autoridade Pontifícia, revestindo-se, portanto, de caráter primacial.” Essa manifestação, que o Papa promulgador do Código fez questão expressar, concede o peso necessário para o Código que, a partir de sua promulgação, embora não fosse necessário constar por escrito, tem a mão do Sumo Pontífice como tal autoridade e todo o peso que essa autoridade traz consigo. Informa ainda, que é plenamente consciente de todo o amplo esforço colegial que foi preciso para que o Código fosse produzido.

Faz questão de manifestar sobre a natureza do Código que acabava de promulgar. Afirma que o código não pretende substituir a fé, a graça, os carismas nem a caridade. A ideia é criar uma ordem à sociedade eclesial objetivando, por óbvio, a salvação das almas que é o supremo objetivo do Direito Canônico justamente por ser esse o supremo objetivo da Igreja.

Chama o Código de principal documento legislativo da Igreja, e ressalva sua essencialidade para a ordem, vida e atividade na Igreja. Isso tudo para dizer que o código de forma alguma conflita com a natureza da Igreja de acordo com o que ela foi proposta pelo seu divino fundador.

Os elementos que exprimem a imagem da Igreja no Código, ficaram ressaltados na constituição apostólica: a doutrina que propõe a Igreja como Povo de Deus (questão essencial para o Concílio); a autoridade hierárquica como serviço; a doutrina que apresenta a Igreja como comunhão e estabelece as relações entre Igreja Universal e Igrejas Particulares, a colegialidade e o primado; a doutrina do Povo de Deus dentro do tríplice múnus de Cristo: sacerdotal, profético e régio.

Já finalizando a constituição apostólica, São João Paulo II diz que o código vem em um momento em que bispos do mundo inteiro já solicitavam insistentemente a sua promulgação e que a Igreja precisa de normas por alguns motivos, quais sejam: para que se torne visível sua estrutura hierárquica e orgânica, para que se organize a administração dos sacramentos, para que se componham as relações entre os fiéis definindo e garantindo os direitos de cada um e que as iniciativas comuns empreendidas em prol de uma vida cristã mais perfeita possam ser apoiadas, protegidas e promovidas.

Por fim, termina promulgando o Código para toda a Igreja Latina, exclusivamente, com força de lei observando a guarda, observância e vigilância de todos e dá determinações gerais e de entrada em vigor no primeiro domingo do Advento de 1983 para que refloresça a solícita disciplina da Igreja.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Por que o pensamento humano não pode dispensar a metafísica?



O que mais se discute frente a uma necessidade ou não da metafísica ser estuda e, mais ainda, de ela ser uma ciência ou não e daí a sua equiparação com outras matérias já consagradamente chamadas de ciência, é que a Metafísica seria uma arqueologia do pensamento humano. Seria uma forma de mitologia, de ilusão do pensamento do homem que tenta explicar o inexplicável.

Em diversos momentos da história, e ainda hoje, a metafísica é tratada como aquela ciência que não é lá muito ciência, ou seja, seria um modo de raciocinar não-científico ou pelo menos não adequadamente científico.

Uma vez que a metafísica acaba sendo considerada como um irrenunciável núcleo conceitual para construir conhecimentos científicos, ou seja, a metafísica acaba sendo o núcleo principiológico para a ciência como um todo o que, pode-se dizer, constitui a base para que a ciência hoje, assim entendida, possa se desenvolver melhor no momento em que se encontra na encruzilhada de mudanças de paradigmas.

O grande problema que aqui se verifica e verificou ao longo da história é que não se pode usar as técnicas atuais de entendimento da ciência moderna para sustentar que a filosofia é ciência.

A metafísica é o entendimento do todo e não das partes como é a ciência moderna. Dessa feita, não pode a lógica das partes se estender ao todo para ser compreendido, uma vez que a parte apenas define uma função do sistema completo.

Quando se defronta o problema do todo, as partes hoje compreendidas como ciência, não resolverão a situação, ao contrário, criarão mais dificuldade. Apenas a metafísica terá essa visão geral e poderá solucionar os problemas mais profundos.

Eis aí o grande motivo pelo qual o pensamento humano não pode dispensar a metafísica.

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Aspectos da Igreja considerada como comunhão.



Segundo a Eclesiologia do Concílio Vaticano II, a communio é uma ideia central e fundamental para compor, entender e viver a Igreja e na Igreja. Então temos:

a) Communio fidelium (cânones 208-223 e cânon 750, §1 do CIC; Lumen Gentium, 7, 9, 42)

Expressa os laços que unem os fiéis entre si, uma vez incorporados em Cristo e na Igreja através do batismo. O estatuto ou princípio fundamental dos fiéis é a condição legal comum a todos os batizados na Igreja Católica, formalizada nos cânones 204-223 do CIC. Trata-se do caráter fundamental da igualdade entre os fiéis, uma vez que todos são batizados.

O direito, não diante de Deus, mas frente aos padres e bispos; eles são dons de Deus e os deveres são do clero. A graça não se dá sozinha, vem de Deus pelas mãos de outros. Pastores não dão essas graças em seus próprios nomes, mas no de Deus e da Igreja.

O direito é um direito de exigir algo. Ninguém tem direito aos sacramentos, por exemplo, uma vez que é um dom, graça de Deus. Uma vez existindo a Igreja de Cristo passa a existir um direito dos fiéis ao oferecimento. Então o direito de exigência é ante aos pastores e não frente a Deus. É nesse ponto que se encontra a communio fidelium.

b) Communio Hierarchica. (cânones 336 - 375, §2 do CIC; Lumen Gentium 21)

Por instituição divina (cânon 207 do CIC), na Igreja há uma participação específica do sacerdócio de Cristo em graus diferentes, através do sacramento da ordem. Esse é o sacerdócio ministerial ou hierárquico (padre, bispo e papa)

A pessoa ordenada age in persona Christi capitis para ensinar, santificar e governar (cânon 1008 do CIC). O sacerdócio ministerial (homens ordenados) e o comum (leigos batizados) são essencialmente diferentes em graça e funções. A ordem do sacerdócio ministerial é expressa em 3 graus apenas e tão somente: diaconal, presbiteral e episcopal (cânon 1009 do CIC).

Pela hierarquia existem alguns níveis de comunhão:

            - De cada membro do episcopado com o Papa;
            - Dos bispos entre si (colégio) com o Papa
            - Dos padres entre si e com o bispo
            - Os diáconos não integram o Ministério sacerdotal

c) Communio Eclesiarum.(Ecclesiarum Particularium Coetibus, cânones 431-459 e cânones 460-472 do CIC; De interna Ordinatione Ecclesiarum Particularium; Lumen Gentium, 13)

É a comunhão plena católica, que pertence a uma única estrutura que é visível e espiritual pela profissão da mesma fé, mesmos sacramentos e o mesmo regime eclesiástico (Lumen Gentium, 13 e 14 e cânon 205 do CIC). Nas Igrejas Particulares, a Igreja Universal está presente com todos os seus elementos essenciais. Por sua natureza, as Igrejas particulares estão abertas à comunhão com as outras igrejas particulares e todas estão interligadas pela Igreja Universal. O Papa preside a comunhão universal.

segunda-feira, 29 de abril de 2019

O Cânon 300 do CIC e o uso do nome “católico” por associações diversas sem autorização.


O cânon 300 do Código de Direito Canônico de 1983 é relativamente claro e direto, contudo uma série de questões, antes não tão claras, emergem a medida que se aprofunda na concretude dos casos. Vejamos como está redigido o referido cânon 300:

Cân. 300 - Nenhuma associação assuma o nome de "católica", sem o consentimento da autoridade eclesiástica competente, de acordo com o cân. 312.

Várias referências e outros cânones e citações documentais acabam sendo chamados à baila ao analisar quando e porque esse consentimento acontece.

1) O cânon 312 e a autoridade para erigir associações

O cânon 312 do Código de Direito Canônico pretende elencar aquelas autoridades que são competentes para erigir associações públicas, podendo servir diagonalmente para as privadas, e assim está redigido:

Cân. 312 - § 1. É autoridade competente para erigir associações públicas:
1º a Santa Sé, para as associações universais e internacionais;
2º a Conferência dos Bispos, em seu território, para as associações nacionais, isto é, as que pela própria ereção se destinam a exercer atividade em toda a nação;
3º o Bispo diocesano, em seu território, mas não o Administrador diocesano, para as associações diocesanas; exceto, porém, as associações cujo direito de ereção, por privilégio apostólico, foi reservado a outros.
§ 2. Para erigir validamente na diocese uma associação ou uma sua seção, mesmo que isso se faça por privilégio apostólico, requer-se o consentimento escrito do Bispo diocesano; mas o consentimento do Bispo diocesano para a ereção de uma casa de instituto religioso vale também para a ereção de uma associação própria do instituto na mesma casa ou na igreja anexa.

Aqui tratamos de associações públicas, ou seja, aquelas que interessam diretamente à Igreja e, por isso mesmo, erigidas ela em seus diversos níveis de competência conforme consta no cânon.

Tais entidades, por serem associações públicas, certamente já terão o nome “católica”, caso assim seja de seu interesse, regulado por sua autoridade competente e vigiadas para que se mantenha intacta a doutrina atingida por elas. Outras associações, especialmente as privadas, já podem ter esse uso diferentemente regulado por não serem públicas e não surgidas no seio da hierarquia.

2) O cânon 216 do Código de Direito Canônico de 1983.

O disposto no cânon 300 é uma aplicação direta do cânon 216, o qual prescreve que com a entrada em vigor do novo código, no caso esse que está em vigor de 1983, nenhuma obra e nenhuma iniciativa assuma o nome de “católica” sem o consenso da autoridade competente.

Uma vez que o Código de 1917 não tinha esse tipo de referência, importante que se tenha claro em mente que a lei não retroage e, por isso não atinge a associação denominada católica antes da promulgação desse código de 1983.

Passado esse ponto, vemos que o cânon 216 assim está redigido:

Cân. 216 - Todos os fiéis, já que participam da missão da Igreja, têm o direito de promover e sustentar a atividade apostólica, segundo o próprio estado e condição, também com iniciativas próprias; nenhuma iniciativa, porém, reivindique para si o nome de católica, a não ser com o consentimento da autoridade eclesiástica competente.

O direito de associação é um verdadeiro direito de cada um dos fiéis, entretanto, a Igreja toma para si o direito de conceder e concentrar em seu poder a prerrogativa de autorizar ou não o uso do nome “católico” quando esse uso se dá em atividades a ela ligados.

As iniciativas que o cânon menciona podem ser associações de indivíduos, e nelas a hierarquia obviamente mantém o direito de orientação e supervisão. É nessa orientação e supervisão que cabe orientar a até coibir, se for o caso, o uso do nome “católico”.

Nesse ponto á um sério problema que pode vir à tona: qual a limite para que a Igreja possa arrogar para si o direito do uso desse nome? Seriam em todos os casos? Seriam nos casos exclusivamente ligados a ela e sob sua jurisdição? Isso atinge o mundo civil de qual forma?

Par responder a todas essas perguntas é preciso ter em mente qual a missão da Igreja e se essas associações que pretendem ter o uso do nome de “católica” estão ou não arrogando para si essa missão ou parte dela, trazendo a Igreja para o seu bojo e tendo com ela qualquer ligame, por mais ínfimo que seja.

O que colocamos de maior dificuldade aqui é que, nos dias atuais, com a ampla divulgação que o nome “católico” tem, especialmente em civilizações amplamente cristãs culturalmente como a nossa, vemos que qualquer uso do nome “católico” é uma ligação com a Igreja, seja de forma direta ou indireta, profunda ou ínfima. Alguma ligação existe, uma vez que ninguém usa o nome “católico” sem esperar que se faça uma ligação entre a entidade e a Igreja. A parte da linguagem comum faz essa ligação e não há que se pensar em separações entre uma coisa e outra, mesmo que a retórica assim tente convencer os incautos, porque a semântica desmente a retórica nesse ponto.

Tal fato pode ser muito bem observado no cânon 803, §3. Tal cânon regula o uso do nome “católico” pelas escolas mesmo que essas escolas realmente sejam católicas, mas só podem usar esse nome, que por isso se torna verdadeiro título, com a autorização da autoridade eclesiástica. Isso se dá pelo simples fato de que o uso do nome “católico” por atrair diversas pessoas devida a ligação que o nome, simplesmente usado, tem com a Igreja. Caso a autoridade eclesiástica não imponha limites, uma série de pessoas podem ser enganadas, “comprando um produto” que não vai ser recebido ou não será recebido corretamente.

Enfim, exclusivamente quanto ao uso da palavra “católico” em nomes de associações, mesmo que se entenda por jurisprudência que não há possibilidade de a Igreja interferir no uso dentro do direito civil, há que se ressaltar que semanticamente a ligação é íntima e não é possível separar o uso da palavra “católico” daquela ligação mental direta que se faz com a Igreja assim que se ouve tal palavra.

2.1) O Decreto Apostolicam Actuositatem, 24 o incentivo a associações de fiéis leigos e o uso da palavra “católico”.

O Decreto Apostolicam Actuositatem trata especificamente sobre o apostolado dos leigos e se firmou como um dos principais, senão o principal, documento sobre o assunto.

Entre tantas coisas que podem ser lidas no número 24 desse documento, entre eles um profundo incentivo para que os membros da hierarquia possam dar vazão e estímulo aos leigos em suas atividades na Igreja e fora dela relativo a seu trabalho de apostolado fazendo o seu trabalho de sempre vigiar para que se mantenha intacta a doutrina. As associações tem um grande destaque.

Há que se ressaltar que, desde o início do número 24 do Decreto já se coloca a limitação do uso da palavra “católico”, vejamos:

Assim, existem na Igreja muitas iniciativas apostólicas nascidas da livre escolha dos leigos e dirigidas com o seu prudente critério. Em determinadas circunstâncias, a missão da Igreja pode realizar-se melhor por meio de tais iniciativas, e daí o serem com frequência louvadas e recomendadas pela Hierarquia. No entanto, nenhuma iniciativa apostólica se pode chamar católica se não tiver a aprovação da legítima autoridade eclesiástica.
(Grifo nosso)

Fica claro nesse singelo parágrafo que constitui um todo do número 24 desse Decreto que o que se proíbe é justamente o uso do nome “católico” sem aprovação eclesiástica de iniciativas que tem a intenção apostólica. A pergunta que se fica é: em um país de cultura cristã-católica, qual iniciativa usaria o nome “católica” sem pretender fazer referência à Igreja, seja mediata ou imediatamente? Essa análise deve ser detida, obviamente, entretanto não há que se fazer muita força para entender que dificilmente será encontrada uma iniciativa que usado o nome de “católica” que não queira nenhuma identidade com a Igreja. Aqui começa a dificuldade quando se abre a possibilidade de uso do nome irrestritamente por quem quer que seja e que esse uso leve a verdadeiros estelionatos, usando da boa-fé alheia e até da ignorância dos mais singelos.

O uso deve ser restrito dentro do que a hierarquia considerar necessário e, objetivamente, a Igreja deve manter sua postura de enrijecer frente ao direito estatal para evitar a massificação do nome em causas muito pouco “católicas”.

3) O cânon 305, §1 e o poder/dever de vigilância.

O cânon 305, §1 do Código de Direito Canônico coloca sob a autoridade competência o poder/dever de vigilância das associações, justamente para que essas não caiam na tentação de “produzir doutrina” ou corrompe-la sob pretexto de exercer suas atividades.

Cân. 305 - § 1. Todas as associações de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente, à qual cabe cuidar que nelas se conserve a integridade da fé e dos costumes e velar para que não se introduzam abusos na disciplina eclesiástica, cabendo-lhe, portanto, o dever e o direito de visitar essas associações, de acordo com o direito e os estatutos; ficam também sujeitas ao governo dessa autoridade, de acordo com as prescrições dos cânones seguintes.

Além do direito/dever da autoridade eclesiástica de vigiar a associação para conservar a integridade da fé, á a clara necessidade de, para que se desempenhe bem essa vigilância, visitar a atuar com verdadeiros atos de governo da autoridade, podendo ela intervir quando necessário, especialmente nas associações públicas, entretanto, nas privadas, embora com menos interferência, também seja possível e necessária essa intervenção.

Essas visitas servem justamente para que a autoridade entenda e avalie para onde vai e como a associação tem atuado, entretanto nos parece que alguns doutrinadores entendem que as associações privadas sem personalidade jurídica estão isentas dessa visita devido o rol elencado no cânon 397, §1 do CIC:

Cân. 397 - § 1. Estão sujeitos à visita episcopal ordinária as pessoas, as instituições católicas, as coisas e os lugares sagrados que se encontram no âmbito da diocese.

Contudo, nos parece que esse problema é resolvido pelo próprio cânon 305 em seu §2 quando, expressamente, afirma que:

§ 2. Estão sujeitas à vigilância da Santa Sé as associações de qualquer gênero; e à vigilância do Ordinário local, as associações diocesanas e outras associações, enquanto exercem atividade na diocese.

Portanto, as associações, por disposição expressa, estão sujeitas a essa visita da autoridade eclesiástica e, nesse momento, a autoridade pode e deve verificar se a doutrina ali está sendo guardada devidamente, caso contrário as providências devem ser tomadas.

4) O Acordo Brasil-Santa Sé

O Acordo Brasil-Santa Sé, embora tenha demorado quase 120 anos após a proclamação da República para ser redigido e assinado, foi feito de forma relativamente singela quando colocado em paridade com tantos outros pelo mundo. Mesmo com essa singeleza com que veio a se concretizar no ordenamento jurídico brasileiro, o acordo bilateral Brasil-Santa Sé estabeleceu relações antes apenas consuetudinárias e formalizou uma situação antes dita como certa, mas instável.

A simples existência do acordo bilateral, em que ambas as partes reconhecem-se expressamente uma a outra, já demonstra o reconhecimento tácito, quando não expresso no próprio acordo, à legislação de um e de outro.

Seguindo o raciocínio, é óbvio que ao estabelecer relações nesse nível ambos os estados reconhecem suas legislações e, igualmente óbvio que o Brasil reconhece o Código de Direito Canônico como legislação autêntica e digna de respeito.

Mais uma vez seguindo esse caminho lógico, o cânon 300 do CIC, cujo teor hermenêutico é simples ao afirmar que não será possível o uso do nome “católico” sem prévia autorização da autoridade eclesiástica, é reconhecido pela República Brasileira em todo o seu território. Sendo o Brasil um país de raízes culturais católicas, sempre que se usa o termo católico, conforme já argumentado, a referência do termo à Igreja é instantânea e imediata. Devido a semântica, podemos dizer, até inconsciente. Sempre que se usa o termo “católico” se remete inconscientemente à Igreja Católica, seus ritos, história, templos e crenças; inevitavelmente.

Visto isso, é de se ressaltar que o uso do termo "católico", verificado que a associação não tem a autorização eclesiástica para o uso e tem o interesse, em qualquer grau de profundidade que seja, de ligação com o apostolado exercido pela Igreja, é possível que se use, inclusive, o Poder Judiciário Brasileiro através de ação judicial própria para impedir e bloquear o uso do termo “católico” por associações que não são católicas no estrito uso do termo, uma vez que não são ligadas à Igreja ou, mesmo pretendendo ser católicas, não se curvam à hierarquia para as devidas correções e vigilâncias (cânon 305, §1 do CIC), conforme é a pretensão o Código de Direito Canônico de 1983.

As competências da Secretaria de Estado e da Congregação para a Doutrina da Fé.



A Secretaria de Estado do Vaticano é um dicastério (departamento de governo que compõe Cúria Romana) e é auxiliar direta do Papa em sua missão suprema, ou seja, na missão de conduzir a Igreja Universal à sua missão de salvar almas (art. 39 da Constituição Apóstólica Pastor Bonus). Uma vez que ela é dividida em duas seções, cada uma tem suas competências específicas.

A Seção dos Assuntos Gerais (Primeira Seção) e a Seção das Relações com os Estados (Segunda Seção), na qual confluiu o Conselho dos Assuntos Públicos da Igreja. Com essa divisão, ficaram asseguradas tanto a unicidade como a diversidade específica do serviço que a Secretaria de Estado que é chamada a oferecer ao Papa.

A competência da Primeira Seção basicamente é despachar sobre as questões relativas ao serviço quotidiano do Sumo Pontífice, tanto na solicitude pela Igreja universal quanto nas relações com os dicastérios da Cúria Romana (art. 41, §1 da Constituição Apostólica Pastor Bonus). A Secretaria cuida da redação dos documentos que o Santo Padre lhe confia. Executa os atos relativos às nomeações da Cúria Romana e guarda o selo de chumbo e o anel do Pescador (art. 42 da Pastor Bonus). Regulamenta a função e a atividade dos Representantes da Santa Sé, especialmente referente às Igrejas locais. Resolve tudo o que diz respeito às Embaixadas junto da Santa Sé. Também cuida dos órgãos de comunicação oficial da Santa Sé e da publicação dos Acta Apostolicæ Sedis (uma espécie de diário oficial da Santa Sé) e do Anuário Pontifício que são publicações oficiais (art. 43 da Pastor Bonus). É, ainda, dirigida por um Arcebispo, o Substituto para os Assuntos Gerais, coadjuvado por um Prelado, o Assessor para os Assuntos Gerais.

A Seção das Relações com os Estados ou Segunda Seção tem como função própria, cuidar das questões que devem ser tratadas com os Governos civis de todo o mundo (art. 45 da Pastor Bonus). Assim competem-lhe: as relações diplomáticas da Santa Sé com os diversos Estados, incluindo a assinatura de Concordatas ou acordos semelhantes; a representação da Santa Sé junto dos Organismos e das Conferências Internacionais; em circunstâncias particulares, por encargo do Sumo Pontífice e consultados os competentes dicastérios da Cúria, a provisão das Igrejas particulares, e também a sua constituição ou alteração; em estreita colaboração com a Congregação para os Bispos, as nomeações dos Bispos nos países que estabeleceram com a Santa Sé tratados ou acordos de direito internacional (art. 46 e 47 da Pastor Bonus).

Podemos dizer que a competência da Congregação para a Doutrina da Fé é difundir a doutrina católica e defender aqueles pontos de tradição católica que possam estar em perigo, com consequência de doutrinas novas não aceitáveis pela Igreja, isso de acordo com o artigo 48 da Constituição Apostólica Pastor Bonus. Serve para auxiliar os bispos individualmente ou reunidos a guardar e promover a integridade da fé católica (art. 50 da Pastor Bonus). Portanto, tem o dever de exigir livros escritos e outros escritos publicados pelos fiéis quando se referem a fé e costumes para submissão a prévio exame, cuida para eu não falte uma adequada refutação aos erros e às doutrinas perigosas (art. 51, 1, 2 e 3 da Pastor Bonus). Por fim, ela julga os delitos contra a fé e os delitos mais graves contra a moral que lhe sejam comunicados e avaliar os documentos de outros dicastérios quando o assunto é fé e costumes.

sexta-feira, 1 de março de 2019

Unidade proporcional da noção de ser, segundo Regis Jolivet.

De acordo com o livro de Regis Jolivet: Tratado de Filosofia, Tomo III, Metafísica, quando trata do ser em si mesmo, há algumas afirmações de especial relevância que podem ser profundamente complicadas ou devidamente simples quando realmente entendidas. Eis aí o grande problema: entender o que é matéria não inteligível que é Deus, função da metafísica na busca de estudar o sobrenatural.

A noção objetiva de ser está ligada universalmente a tudo o que é ou que pode ser em um mundo possível para a inteligência humana e compreensível à sensibilidade, mas essa é uma noção análoga já que a existência não é exercida da mesma forma por todos os seres que existem.

A noção objetiva de ser é, então uma noção de proporção e de semelhança, porque todas as essências estão proporcionalmente ligadas a existência única, do único ser realmente existente. Por esse motivo o acidente e a existência estão proporcionalmente ligados, já que acima deles está uma existência única de onde se provém todas as coisas, entenda-se: Deus.

O caráter analógico só poderá ser compreendido se ligado por causalidade a existência do Ser em si. A partir do nosso ponto só podemos ver a analogia do Ser em si com a nossa própria experiência, o que macula o entendimento do Ser divino (Ser em si). O ser, portanto, só corresponde às exigências do seu tipo quando se aproxima mais e mais do Ser em si, ou seja, do Ser que lhe deu causa, o ser verdadeiramente ser, isto é, aquele que vive em si e por si. Aquele que não está sujeito a outro ser em suas deficiências e em servidão.

Não há como pensar o ser (humano, por exemplo) individualmente e sozinho, solto no mundo como se não fosse ligado a nada ou ninguém, como se não tivesse tido uma causa primeira que lhe desse existência. Por isso o Ser em si, Deus, que não é causado por nada, mas dá causa a tudo, é essa unidade entre todos os seres: acidentais e substanciais.

domingo, 3 de fevereiro de 2019

A fundamentação no direito romano para a perseguição dos cristãos.


Emanuel de Oliveira Costa Jr.

Estamos aqui tratando do início da era cristã até o século II, ou seja, estamos em plena época da perseguição aos cristãos antes do edito de Milão no ano de 313 que concedeu a liberdade de culto aos cristãos.

No início o cristianismo era visto pelos cidadãos romanos como uma seita do judaísmo, na visão deles alguma divergência interna teria causado a existência dos cristãos que eram levados com a mesma seriedade com que os judeus eram tratados, nem mais nem menos, apenas como mais uma religião de um povo dominado e que poderia ser tolerada caso não causasse problemas. Essa visão prosperava em Roma mesmo com as diferenças palpitantes entre cristãos e judeus e com os próprios judeus perseguindo os cristãos.

Por esse e outros motivos foi difícil para o cristianismo se impor frente ao paganismo da cultura greco-romana, não porque era uma outra religião, já que os romanos não tinham problema com isso e mais absorviam essas religiões formando uma sopa relativista de deuses que qualquer outra coisa, mas sim porque se tratava de uma religião - seita aos olhos deles - que negava os outros deuses e ainda pregava um Deus morto e ressuscitado, pobre e que exaltava os humildes. Para eles não era possível explicar a ascensão de uma crença assim e por isso era algo ameaçador, uma seita que pregava tal radicalidade moral como é o cristianismo, sem relativismo algum em um meio que já estava acostumado a acomodar o certo e o errado no mesmo ambiente sem qualquer dificuldade e que relativizava tudo conforme suas vontades momentâneas, era algo que causava preocupação. Esse era o cenário do início das perseguições, isto é, parece algo que não se poderia impedir.

Há que se perceber que as perseguições aos cristãos, no início, não tinham nenhuma fundamentação jurídica ou legislativa, apenas se baseava, conforme a maioria dos estudiosos compreende, no chamado odium generis humani (ódio ao gênero humano ou ódio a humanidade) que Tácito atribuía aos cristãos. Não existiu, portanto, durante quase dois séculos inteiros, qualquer lei emitida por algum imperador contra os cristãos.

Ainda com relação ao odium generis humani, é no mínimo curioso o motivo pelo qual os romanos consideravam que os cristãos tinham e pregavam ódio à humanidade. O império e outros tantos locais, assim como hoje a fofoca e a desinformação sempre existiu com muita força, especialmente no meio político, enfim, todos esses meios divulgavam que os cristãos praticavam o incesto isso porque, e aí fica a curiosidade pelo menos cômica, de que os cristãos se tratavam por irmãos e se casavam entre si; se amavam antes de se conhecer. Outro motivo grande para que os cristãos fossem tratados como aqueles que tem ódio pelo gênero humano é que eram canibais e praticavam sacrifício em atos rituais, isso porque dizia-se que em seus rituais (Sacrifício da Santa Missa) se comia o corpo de Deus. O fato de os cristãos exaltarem a virgindade também causou um certo problema social, afinal a sociedade romana era extremamente libertina. Essas conversas causavam tumulto entre a população que não era cristã e não conhecia o que realmente era verdade e o que não era e acabavam por achar que tudo era verdade. Essa situação causava uma certa desordem pública que, em uma das teses, eram os principais motivos alegados para autorizar a perseguição e assassinato de cristãos. Claro que, muitas vezes, essas histórias eram criadas propositalmente, outras o imaginário popular as fazia crescer para todos os lados que se pode imagina. Só não podemos deixar escapar que se tratavam de calúnias e que interessavam o império romana, fossem elas “plantadas” ou não.

Entretanto, é fato que as perseguições aconteciam. A sociedade romana tinha uma ciência jurídica muito evoluída e tal arbitrariedade em atos como a perseguição a toda uma “seita” deveria constar alguma legislação que permitisse ou pelo menos alguma tese jurídica que desse solidez a esse tipo de ato. Foi nesse sentir que vários historiadores e juristas criaram diversas teses e formularam vários estudos, e ainda criam e formulam, para entender como foi possível, juridicamente, acontecer tal perseguição dentro do império romano.

Algumas teses jurídicas que poderiam fundamentar, mesmo que não juridicamente, a perseguição aos cristãos eram, segundo alguns estudiosos: o Institutum Neronis (ou Institutum Neroniano) do qual falava Tertuliano ou o ius coertionis proposto pelo historiador Mommsen. Havia também outra teoria formulada pelo arqueólogo Le Blant que alegava o laesae maistatis.

O Institutum Neronis (ou Institutum Neroniano) afirma que esses institutos seriam um conjunto de leis especiais editadas exclusivamente para fundamentar a perseguição dos cristãos, entretanto, não seriam leis emitidas pelos imperadores. Existem alguns defensores dessa tese, especialmente o liturgista belga Calleaert que teve outros seguidores como Duchense, Monachino e Zeiller.

O ius coertionis, que é outra hipótese de fundamentação jurídica para a perseguição dos cristãos no império romano antes do imperador Sétimo Severo, foi defendida e formulada por um historiador alemão chamado Theodor Mommsen que viveu no século XIX e faleceu no início do século XX. A hipótese dizia que não havia mesmo fundamentação jurídico-legislativa, mas sim uma discricionariedade dos magistrados e outros funcionários públicos encarregados em agir conforme considerassem necessário para manter a ordem pública. Como pode ser percebido, o motivo não tem critérios realmente bem estipulados e poderia levar os magistrados a considerar qualquer coisa como motivo para a perseguição fundamentado na ordem pública que poderia ter sido quebrada pelos cristãos.

O Laesae Maistatis foi uma teoria formulada por Edmond-Frédéric Le Blant que foi um arqueólogo do século XIX. O sacrilégio de laesae maistatis e outras leis parecidas com essa que misturavam estado e religião, como era o mais comum e a única forma concebível dentro do estado romano, seria a fundamentação para a perseguição dos cristãos, haja vista que os cristãos negavam o culto aos deuses, uma vez que pregam um único e verdadeiro Deus e sempre negaram a deificação do imperador e seu consequente culto. Uma vez que os cristãos agiam dessa forma e a lei laesar maistatis, algo que fundamentou o que viria a ser a lei de lesa majestade no futuro, e outras leis parecidas já legislavam nesse sentido, estava fundamentado o crime-sacrilégio dos cristãos e, portanto, sua perseguição e terríveis penas. Essa teoria encontrou diversos adeptos já que se esses seguidores entendem que o Insitutum Neronis (ou Institutum Neroniano) aludido por Tertuliano, não poderia ser entendido como edito ou lei especial emanada dos príncipes, assim sendo, inválidas.

O que se percebe é que a problemática que esfumaça toda essa história das perseguições é devido a uma historiografia mesclada por relatos cristão e dos pagãos, documentos oficiais e testemunhos presenciais que nem sempre e confirmam, os relatos posteriormente elaborados para completar documentos e reaver outros perdidos e, as vezes, lendas criadas em torno de alguns mártires, além de tantos outros pequenos detalhes.

Fato é que existia, certamente uma série de imprecisões por parte do conhecimento dos pagãos para com os cristãos, tanto em seus hábitos como em sua crença em geral. Prova disso é o absurdo pensamento de que os cristãos odiavam o gênero humano. Por outro lado, o que se tem por parte dos cristãos não são relatos feitos oficialmente dentro do Estado, com toda a frieza que só documentos oficiais podem trazer, pelo contrário, trazem na história o relato daqueles que viveram em sua carne a perseguição, a violência e o martírio. Afinal, sabe-se que Diocleciano decretou a destruição dos escritos cristãos. Alguns puderam ser salvos inteiros ou em partes, fragmentados ou enxertados dentro de outros documentos, mas muito se perdeu de documentação que hoje poderia elucidar muito das dúvidas e lacunas históricas e jurídicas que temos.

A fundamentação jurídica para a perseguição aos cristãos só veio mesmo com o Imperador Sétimo Severo (193-211) e com Diocleciano (284-305), quando ambos editaram leis especificamente contra os cristãos usando como pretexto o fato de que eles se negavam ao culto e idolatria aos deuses e a deificação do imperador. Só então vieram leis que especificamente autorizavam e até determinavam essas perseguições que não aconteciam só com castigos e martírios físicos, mas também com uma série de sanções particulares, inclusive tributárias.

INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA.
- Mons. LIMA, Maurílio Cesar. Introdução a história do direito canônico, Mons. Maurílio Cesar de Lima, Ed. Loyola, 2017
- DANIEL-ROPS, Henri. História da Igreja de Cristo. Tradução de Henrique Ruas; revisão de Emérico da Gama - São Paulo: Quadrante, 2006 (coleção).
- DREHER, Martin. A Igreja no Império Romano. São Leopoldo: Sinodal, 1993.
- GIBBON, Edward. Declínio e Queda do Império Romano. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005.
- GONZÁLEZ, Justo L. A Era dos Mártires. São Paulo: Vida Nova, 2002.
- Tácito, Annales, XV.
- Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica 5.1.7
- Luciano de Samósata, Alexandre, o monge-oráculo.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

As coleções espúrias.



Emanuel de Oliveira Costa Jr.
Introdução.

É fato que o direito canônico não é lá a matéria de maior interesse de muitos estudiosos do direito e que muito ainda há que ser estudado e divulgado para o amplo público, especialmente dentro de um espaço que consideramos que tudo tem e tudo sabe que é a internet. Entretanto, considero simplesmente surreal que qualquer busca que se faça sobre alguns temas, simplesmente se dê resultado zero. Como é possível que hoje não exista tudo dentro de um clique no Google? Um desses temas é o que abaixo irei escrever sobre as “coleções espúrias” que considero uma história extremamente interessante e que tem resultado zero nas buscas na internet, a não ser por um único livro escrito em português do Mons. Maurílio Cesar de Lima intitulado “Introdução à História do Direito Canônico”.

Pois bem, as chamadas “coleções espúrias” se situam nos séculos IX e X, em um momento muito tenebroso para a Igreja devido a várias dificuldades e falta de crédito que o papado enfrentava nessa época.

No final do século IX já se duvidava seriamente do prestígio do sumo pontífice, no século X sequer se duvidava, já se tinha certeza que não havia crédito algum. Isso tudo devido a uma série de escolhas feitas e Papas eleitos que estavam muito abaixo do nível esperado para o cargo e que sequer conseguiriam conduzir suas próprias casas, quanto mais o leme de Pedro. Não havia sabedoria nas decisões, muito menos firmeza. Não havia crédito algum devido a erros sucessivos e falta de credibilidade por não dar qualquer tipo de bom exemplo quando necessário fosse. Estávamos no que hoje é conhecido como o “século de ferro”. Uma lástima para a administração da Igreja, Corpo Místico de Cristo, mas que precisa existir nesse mundo com todas as questões seculares que nos rodeiam.

As coleções. O que eram?

Antes de entrar especificamente no século de ferro e no motivo que levou a isso, bem como falar das coleções espúrias em si, considero bem interessante explicar, primeiramente o que é uma coleção, já que aqui estamos pinçando uma pequena faixa da história e esses termos podem se perder no caminho.

As coleções canônicas eram, por assim dizer, verdadeiras coleções de leis canônicas esparsas feitas por determinadas pessoas ao longo dos séculos. Saiam literalmente catando documentos de leis canônicas nas diversas dioceses e até da Igreja Universal. Como não haviam codificações de leis como hoje e que só foram inventadas e popularizadas no século XVIII, as leis eram colecionadas por algumas pessoas, clérigos ou não, e algumas acabavam ganhando fama devido a sua abrangência, organização ou mesmo por ser consideradas autênticas (reconhecidas) pela Igreja. Com o tempo algumas dessas coleções acabam sendo autenticadas pela Igreja ou simplesmente, com o sequencial estudo, passavam a ser adotadas consuetudinariamente. Enfim, essas coleções foram os primeiros passos de uma longeva evolução do direito canônico até chegar na estrutura que temos hoje tanto do direito canônico quanto do direito civil que acabou herdando muito disso tudo.

O século de ferro.

O século de ferro aconteceu devido a debilidade dos Papas eleitos. Tal debilidade veio devido a influências políticas externas que impunham o cargo a certas pessoas que não tinham a mínima condição de ocupá-lo. Como tal fato ocorreu sequencialmente por vários papados, a instituição da Igreja se tornou débil, sem crédito e muitas vezes motivo de chacota. Por esse motivo o direito antigo e universal, com algumas coleções de grande autoridade como a Dionisiana e Hispana foram perdendo sua eficácia, afinal o direito é dinâmico e novas situações vão surgindo. Se não houvesse atualização essas coletâneas de leis simplesmente seriam superadas por serem absolutamente ineficientes, como era o caso.

O desprestígio do papado não levada a crédito nenhum para que se pudesse atualizar esse clássico direito. Leigos começavam com uma ingerência exacerbada dentro das coisas eclesiásticas e não havia legislação que impedisse que isso acontecesse; muitas novas situações surgiam a cada dia e o direito sequer havia mencionado algo a respeito. O caos ia se instalando nas coisas e bens elcesiasticos.

Nisso tudo estamos no início do século IX, dentro do reinado de Ludovico, o Pio e a harmonia do poder imperial com o poder papal estava em franca degradação, a interferência de leigos nas nomeações e deposições de bispos era crescente e as invasões de bens eclesiásticos já estava fora de controle. Tudo isso devido a falta de legislação que prevenisse esse tipo de atitude que era totalmente nova na história da Igreja.

As coletâneas espúrias e seus motivos.

A solução que alguns autores anônimos encontraram não foi a mais honesta, muito menos a mais correta, mas era o que conseguiram pensar na época e o que consideraram ser a solução mais rápida e eficiente. Estava em curso a ideia das coletâneas espúrias.

Esses autores anônimos fabricaram um suposto direito autêntico que nunca existiu. Fraudaram documentos, falsificaram assinaturas, criaram fontes fantasiosas e mascararam a autenticidade. Um verdadeiro trabalho de mestre que se arrastou ao longo dos tempos. As falsificações eram de documentos civis e religiosos emanados por autoridades de todos os tipos e atacavam a atividade de leigos poderosos, muitas vezes soberanos e autoridades conhecidas contra investidas deles a bens e direitos da Igreja. Só era possível que esses usurpadores agissem devido a, como já mencionamos, total falta de crédito do papado e falta de atualização legislativa que impedisse que esses leigos agissem.

As coletâneas espúrias buscavam aclamar a autoridade régia como interessada na reforma eclesiástica. O intuito era claro: forçar a Igreja a fazer a dita reforma e resolver o problema o quanto antes com mão pesada e autoridade necessária.

Outro ponto que era preciso reformar e que, por esse motivo, foram temas das coletâneas espúrias é o exercício de clérigos na atividade civil. O exagero desse exercício clérigo em atividade que não lhes pertencem era visto com muito maus olhos pelos falsificadores criadores das coletâneas espúrias. O fato é que várias questões estavam fora de ordem e caminhando para um lado que não era o correto, contudo a Igreja não se via com credibilidade suficiente para impedir.

Essas coleções falsas, chamadas por isso de espúrias, vieram com alguns intuitos também internos e administrativos. Validavam de forma incontestável o poder hierárquico na organização eclesiástica, salvaguardavam o poder dos bispos em seu território com vista a impedir algo muito comum naquela época que era a ingerência do metropolita (arcebispo) nas dioceses sufragâneas, pregavam a obediência tanto entre clérigos quanto também aos leigos em relação a seu bispo para que não se criassem tantos subterfúgios para a desobediência como era o que estava em voga na época. Insistiram na isenção dos mosteiros o que, dado o que conhecemos da história que temos hoje foi um grande acerto. Pesaram a mão contra a existência dos corepíscopos que eram espécies de bispos auxiliares, mas que acabam não auxiliando tanto assim e causavam certos desconfortos devido a indisciplinas dentro da Igreja. O tema da situação jurídica dos corepíscopos por si só já vale um artigo em separado. Enfim, eram uma série de temas que pretendiam organizar o que precisava de organização e que deveria ter sido feito pela hierarquia da Igreja na época, especialmente os sumos pontífices, contudo, sua credibilidade, conhecimento, religiosidade e a pressão política não permitiam.

A ideia das falsificações era restaurar a antiga disciplina, contudo usaram de um caminho muito pouco ortodoxo para realizar o que era certo. Acabaram seguindo pelo caminho de “os fins justificam os meios” e aceitaram cometer o crime e pecado de falsificar documentos para que um bom resultado viesse.

As falsificações foram tão bem feitas e guardadas com um sigilo tão grande e bem pensado que, até hoje, não se sabe a autoria das falsificações que chega a desafiar investigadores com todos os seus aparatos tecnológicos e acessos a informação que se tem hoje em dia.

Algumas das maiores falsificações.

Entre as maiores falsificações temos as seguintes: Hispana Augustodonense que apresenta correções, adições, interpolações, alterações e cortes de acordo com as finalidades dos falsários; Capitula Angilramni que é um documento que visou impedir as interferências de leigos na área judicial da Igreja, especialmente quanto a jurisdição processual civil e criminal em causas que envolviam clérigos; Capitularia de Benedito Levita, na época se disse que o texto foi casualmente encontrado convenientemente quando da reforma (segundo semestre de 846 na reunião de Epernay) e que serviu para dar uma maior autonomia aos bispos e padres para proceder com a reforma em a interferência dos príncipes que eram exortados a seguirem o correto exemplo de seus antepassados. Outros documentos foram alguns chamados Capitularia de Pepino, o Breve, Carlos Magno e Ludovico I, o Pio, todas de leis civis; Pseudo-Isidorianas teria sido escrita por um desconhecido Isidoro Mercator. Trazia cânones de concílios e até cânones dos apóstolos em suas primeira e segunda parte, tudo falsificado e inteiramente imaginário. Na terceira parte aparecem textos de papas como São Silvestre e Gregório II com textos autênticos e espúrios misturados. As pseudo-isidorianas chegaram a ser plenamente aceitas pelo grande Graciano que as incluiu ipsi verbi em sua grandiosa obra.

A Donatio Constantianiana

Por fim, considerado o auge das falsificações, temos a Donatio Constantiniana. Constava da tradição que quando Constantino assinou o Edito de Milão, que concedeu a liberdade de culto aos cristãos a partir do ano 313, ele teria entregue ao Papa São Silvestre I muitas posses e até o domínio total de toda a parte ocidental do Império Romano, além de ter reconhecido o seu primado sobre todas as demais igrejas. Tudo isso já em conjunto com o Edito de Milão ou pouco depois. Essa tradição nunca tinha sido comprovada devido a falta de documentação concreta que a comprovasse. Eis que surge o documento, mas por motivos políticos sempre foi deixado um pouco de lado até ser seriamente questionado em sua validade ainda na Idade Média.

Conclusão.

Resumidamente, essa é a história das coleções espúrias, entretanto, o mais interessante não é perceber apenas que se trataram de falsificações, algo que para os dias atuais seria muito fácil reconhecer, mas que para a época foi possível com alguns peritos em falsificações que, depois de tanto tempo continuam anônimos. Não é bem isso que é o interessante da história toda, mas sim como essas coleções falsas de leis civis e eclesiásticas prosperaram e cumpriram seu papel já que tinham a clara intenção de fazer com que a antiga disciplina voltasse, além de provocar uma reforma na Igreja conduzida por Roma e arrumar o grande problema que Papas sem credibilidade, conhecimento e até religiosidade causaram. Foram falsificações que conduziram a Igreja para o caminho correto. Apesar de um ato criminoso, foi por meio desse tipo de ação que os trilhos corretos voltaram a ser trilhados.

Como não se pode entender as coisas da Igreja como coisas meramente humanas, sob pena de cair em um racionalismo sem alicerces na fé, algo que pode nos levar a um tecnicismo quase ateu, precisamos, portanto, entender de forma sobrenatural o porque de tais coisas terem acontecido. Seria possível outra forma de trazer a Igreja para os trilhos corretos novamente? A pergunta é difícil, pode ser que sim, pode ser que não. A questão é entender que esse meio foi usado e que a Igreja sobrevive por mais de dois mil anos, o que por si só é um milagre dados todos os fatos históricos como esses aqui relatados, dado todos os maus padres, bispos, papas e leigos que mais prejudicaram do que ajudaram. Qualquer outra instituição, meramente humana teria sobrevivido?