O cânon 300 do Código de Direito
Canônico de 1983 é relativamente claro e direto, contudo uma série de questões,
antes não tão claras, emergem a medida que se aprofunda na concretude dos casos.
Vejamos como está redigido o referido cânon 300:
Cân. 300 - Nenhuma associação assuma
o nome de "católica", sem o consentimento da autoridade eclesiástica
competente, de acordo com o cân. 312.
Várias referências e outros cânones e
citações documentais acabam sendo chamados à baila ao analisar quando e porque
esse consentimento acontece.
1) O cânon 312 e a
autoridade para erigir associações
O cânon 312 do Código de Direito
Canônico pretende elencar aquelas autoridades que são competentes para erigir
associações públicas, podendo servir diagonalmente para as privadas, e assim
está redigido:
Cân. 312 - § 1. É autoridade
competente para erigir associações públicas:
1º a Santa Sé, para as associações
universais e internacionais;
2º a Conferência dos Bispos, em seu
território, para as associações nacionais, isto é, as que pela própria ereção
se destinam a exercer atividade em toda a nação;
3º o Bispo diocesano, em seu
território, mas não o Administrador diocesano, para as associações diocesanas;
exceto, porém, as associações cujo direito de ereção, por privilégio
apostólico, foi reservado a outros.
§ 2. Para erigir validamente na diocese
uma associação ou uma sua seção, mesmo que isso se faça por privilégio
apostólico, requer-se o consentimento escrito do Bispo diocesano; mas o
consentimento do Bispo diocesano para a ereção de uma casa de instituto
religioso vale também para a ereção de uma associação própria do instituto na
mesma casa ou na igreja anexa.
Aqui tratamos de associações
públicas, ou seja, aquelas que interessam diretamente à Igreja e, por isso
mesmo, erigidas ela em seus diversos níveis de competência conforme consta no cânon.
Tais entidades, por serem associações
públicas, certamente já terão o nome “católica”, caso assim seja de seu
interesse, regulado por sua autoridade competente e vigiadas para que se
mantenha intacta a doutrina atingida por elas. Outras associações,
especialmente as privadas, já podem ter esse uso diferentemente regulado por
não serem públicas e não surgidas no seio da hierarquia.
2) O cânon 216 do
Código de Direito Canônico de 1983.
O disposto no cânon 300 é uma
aplicação direta do cânon 216, o qual prescreve que com a entrada em vigor do
novo código, no caso esse que está em vigor de 1983, nenhuma obra e nenhuma
iniciativa assuma o nome de “católica” sem o consenso da autoridade competente.
Uma vez que o Código de 1917 não
tinha esse tipo de referência, importante que se tenha claro em mente que a lei
não retroage e, por isso não atinge a associação denominada católica antes da
promulgação desse código de 1983.
Passado esse ponto, vemos que o cânon
216 assim está redigido:
Cân. 216 - Todos os fiéis, já que
participam da missão da Igreja, têm o direito de promover e sustentar a
atividade apostólica, segundo o próprio estado e condição, também com
iniciativas próprias; nenhuma iniciativa, porém, reivindique para si o nome de
católica, a não ser com o consentimento da autoridade eclesiástica competente.
O direito de associação é um
verdadeiro direito de cada um dos fiéis, entretanto, a Igreja toma para si o
direito de conceder e concentrar em seu poder a prerrogativa de autorizar ou
não o uso do nome “católico” quando esse uso se dá em atividades a ela ligados.
As iniciativas que o cânon menciona podem
ser associações de indivíduos, e nelas a hierarquia obviamente mantém o direito
de orientação e supervisão. É nessa orientação e supervisão que cabe orientar a
até coibir, se for o caso, o uso do nome “católico”.
Nesse ponto á um sério problema que
pode vir à tona: qual a limite para que a Igreja possa arrogar para si o
direito do uso desse nome? Seriam em todos os casos? Seriam nos casos exclusivamente
ligados a ela e sob sua jurisdição? Isso atinge o mundo civil de qual forma?
Par responder a todas essas perguntas
é preciso ter em mente qual a missão da Igreja e se essas associações que
pretendem ter o uso do nome de “católica” estão ou não arrogando para si essa
missão ou parte dela, trazendo a Igreja para o seu bojo e tendo com ela
qualquer ligame, por mais ínfimo que seja.
O que colocamos de maior dificuldade
aqui é que, nos dias atuais, com a ampla divulgação que o nome “católico” tem,
especialmente em civilizações amplamente cristãs culturalmente como a nossa,
vemos que qualquer uso do nome “católico” é uma ligação com a Igreja, seja de
forma direta ou indireta, profunda ou ínfima. Alguma ligação existe, uma vez
que ninguém usa o nome “católico” sem esperar que se faça uma ligação entre a
entidade e a Igreja. A parte da linguagem comum faz essa ligação e não há que
se pensar em separações entre uma coisa e outra, mesmo que a retórica assim
tente convencer os incautos, porque a semântica desmente a retórica nesse
ponto.
Tal fato pode ser muito bem observado
no cânon 803, §3. Tal cânon regula o uso do nome “católico” pelas escolas mesmo
que essas escolas realmente sejam católicas, mas só podem usar esse nome, que
por isso se torna verdadeiro título, com a autorização da autoridade
eclesiástica. Isso se dá pelo simples fato de que o uso do nome “católico” por
atrair diversas pessoas devida a ligação que o nome, simplesmente usado, tem
com a Igreja. Caso a autoridade eclesiástica não imponha limites, uma série de
pessoas podem ser enganadas, “comprando um produto” que não vai ser recebido ou
não será recebido corretamente.
Enfim, exclusivamente quanto ao uso
da palavra “católico” em nomes de associações, mesmo que se entenda por jurisprudência
que não há possibilidade de a Igreja interferir no uso dentro do direito civil,
há que se ressaltar que semanticamente a ligação é íntima e não é possível
separar o uso da palavra “católico” daquela ligação mental direta que se faz
com a Igreja assim que se ouve tal palavra.
2.1) O Decreto Apostolicam Actuositatem, 24 o incentivo
a associações de fiéis leigos e o uso da palavra “católico”.
O Decreto Apostolicam Actuositatem trata especificamente sobre o apostolado
dos leigos e se firmou como um dos principais, senão o principal, documento
sobre o assunto.
Entre tantas coisas que podem ser
lidas no número 24 desse documento, entre eles um profundo incentivo para que
os membros da hierarquia possam dar vazão e estímulo aos leigos em suas
atividades na Igreja e fora dela relativo a seu trabalho de apostolado fazendo
o seu trabalho de sempre vigiar para que se mantenha intacta a doutrina. As
associações tem um grande destaque.
Há que se ressaltar que, desde o
início do número 24 do Decreto já se coloca a limitação do uso da palavra “católico”,
vejamos:
Assim, existem na Igreja muitas
iniciativas apostólicas nascidas da livre escolha dos leigos e dirigidas com o
seu prudente critério. Em determinadas circunstâncias, a missão da Igreja pode
realizar-se melhor por meio de tais iniciativas, e daí o serem com frequência
louvadas e recomendadas pela Hierarquia. No entanto, nenhuma iniciativa
apostólica se pode chamar católica se não tiver a aprovação da legítima
autoridade eclesiástica.
(Grifo nosso)
Fica claro nesse singelo parágrafo
que constitui um todo do número 24 desse Decreto que o que se proíbe é
justamente o uso do nome “católico” sem aprovação eclesiástica de iniciativas
que tem a intenção apostólica. A pergunta que se fica é: em um país de cultura
cristã-católica, qual iniciativa usaria o nome “católica” sem pretender fazer
referência à Igreja, seja mediata ou imediatamente? Essa análise deve ser
detida, obviamente, entretanto não há que se fazer muita força para entender
que dificilmente será encontrada uma iniciativa que usado o nome de “católica”
que não queira nenhuma identidade com a Igreja. Aqui começa a dificuldade
quando se abre a possibilidade de uso do nome irrestritamente por quem quer que
seja e que esse uso leve a verdadeiros estelionatos, usando da boa-fé alheia e
até da ignorância dos mais singelos.
O uso deve ser restrito dentro do que
a hierarquia considerar necessário e, objetivamente, a Igreja deve manter sua
postura de enrijecer frente ao direito estatal para evitar a massificação do
nome em causas muito pouco “católicas”.
3) O cânon 305, §1 e o
poder/dever de vigilância.
O cânon 305, §1 do Código de Direito
Canônico coloca sob a autoridade competência o poder/dever de vigilância das
associações, justamente para que essas não caiam na tentação de “produzir
doutrina” ou corrompe-la sob pretexto de exercer suas atividades.
Cân. 305 - § 1. Todas as associações
de fiéis estão sujeitas à vigilância da autoridade eclesiástica competente, à
qual cabe cuidar que nelas se conserve a integridade da fé e dos costumes e
velar para que não se introduzam abusos na disciplina eclesiástica,
cabendo-lhe, portanto, o dever e o direito de visitar essas associações, de
acordo com o direito e os estatutos; ficam também sujeitas ao governo dessa autoridade,
de acordo com as prescrições dos cânones seguintes.
Além do direito/dever da autoridade
eclesiástica de vigiar a associação para conservar a integridade da fé, á a
clara necessidade de, para que se desempenhe bem essa vigilância, visitar a
atuar com verdadeiros atos de governo da autoridade, podendo ela intervir
quando necessário, especialmente nas associações públicas, entretanto, nas
privadas, embora com menos interferência, também seja possível e necessária
essa intervenção.
Essas visitas servem justamente para
que a autoridade entenda e avalie para onde vai e como a associação tem atuado,
entretanto nos parece que alguns doutrinadores entendem que as associações
privadas sem personalidade jurídica estão isentas dessa visita devido o rol elencado
no cânon 397, §1 do CIC:
Cân. 397 - § 1. Estão sujeitos à
visita episcopal ordinária as pessoas, as instituições católicas, as coisas e
os lugares sagrados que se encontram no âmbito da diocese.
Contudo, nos parece que esse problema
é resolvido pelo próprio cânon 305 em seu §2 quando, expressamente, afirma que:
§ 2. Estão sujeitas à vigilância da
Santa Sé as associações de qualquer gênero; e à vigilância do Ordinário local,
as associações diocesanas e outras associações, enquanto exercem atividade na
diocese.
Portanto, as associações, por
disposição expressa, estão sujeitas a essa visita da autoridade eclesiástica e,
nesse momento, a autoridade pode e deve verificar se a doutrina ali está sendo
guardada devidamente, caso contrário as providências devem ser tomadas.
4) O Acordo
Brasil-Santa Sé
O Acordo Brasil-Santa Sé, embora
tenha demorado quase 120 anos após a proclamação da República para ser redigido
e assinado, foi feito de forma relativamente singela quando colocado em
paridade com tantos outros pelo mundo. Mesmo com essa singeleza com que veio a
se concretizar no ordenamento jurídico brasileiro, o acordo bilateral Brasil-Santa Sé estabeleceu relações antes apenas consuetudinárias e formalizou uma
situação antes dita como certa, mas instável.
A simples existência do acordo
bilateral, em que ambas as partes reconhecem-se expressamente uma a outra, já
demonstra o reconhecimento tácito, quando não expresso no próprio acordo, à legislação de um e de outro.
Seguindo o raciocínio, é óbvio que ao
estabelecer relações nesse nível ambos os estados reconhecem suas legislações
e, igualmente óbvio que o Brasil reconhece o Código de Direito Canônico como
legislação autêntica e digna de respeito.
Mais uma vez seguindo esse caminho
lógico, o cânon 300 do CIC, cujo teor hermenêutico é simples ao afirmar que não será
possível o uso do nome “católico” sem prévia autorização da autoridade
eclesiástica, é reconhecido pela República Brasileira em todo o seu território.
Sendo o Brasil um país de raízes culturais católicas, sempre que se usa o termo
católico, conforme já argumentado, a referência do termo à Igreja é instantânea
e imediata. Devido a semântica, podemos dizer, até inconsciente. Sempre que se
usa o termo “católico” se remete inconscientemente à Igreja Católica, seus
ritos, história, templos e crenças; inevitavelmente.
Visto isso, é de se ressaltar que o uso do
termo "católico", verificado que a associação não tem a autorização eclesiástica
para o uso e tem o interesse, em qualquer grau de profundidade que seja, de
ligação com o apostolado exercido pela Igreja, é possível que se use,
inclusive, o Poder Judiciário Brasileiro através de ação judicial própria para
impedir e bloquear o uso do termo “católico” por associações que não são
católicas no estrito uso do termo, uma vez que não são ligadas à Igreja ou,
mesmo pretendendo ser católicas, não se curvam à hierarquia para as devidas
correções e vigilâncias (cânon 305, §1 do CIC), conforme é a pretensão o Código de
Direito Canônico de 1983.
Nenhum comentário:
Postar um comentário