segunda-feira, 16 de junho de 2025

O direito natural apagado do imaginário jurídico afeta a assistência religiosa.

Fazer um resgate psicológico para chegar novamente ao conceito de direito natural no imaginário das pessoas e principalmente dos juristas, é algo que parece cada vez mais distante. Ao que parece estamos em uma era de pós-positivismo o que só complica esse tipo de tentativa.

O pós-positivismo pode até ser visto como um avanço no sentido de resgatar valores e princípios que o positivismo estrito havia, de certa forma, relegado. No entanto, observa-se que o resgate do direito natural no imaginário dos juristas e da população parece cada vez mais distante. Isso aponta para o cerne da dificuldade em resolver questões como a assistência religiosa em hospitais e presídios.

 

1) O Desafio do Resgate do Direito Natural na Era Pós-Positivista 

A era pós-positivista, embora reconheça a importância dos princípios e dos valores na interpretação e aplicação do direito, muitas vezes ainda opera dentro de uma lógica que prioriza a norma posta como ponto de partida.

A busca por um fundamento axiológico, moral ou ético para a lei é presente, mas a linguagem do direito natural, com sua conotação jusnaturalista histórica, pode soar distante ou mesmo "não-científica" para uma parcela significativa da comunidade jurídica.

A secularização da sociedade e o pluralismo de valores também contribuem para a dificuldade de um consenso sobre o que constituiria um "direito natural" universalmente aceito. Se o direito natural remete a uma ordem superior ou a princípios inerentes à razão humana, a diversidade de interpretações sobre essa ordem ou sobre a própria razão pode dificultar sua aceitação como um fundamento inequívoco para a prática jurídica cotidiana.

Assim, o problema não é a ausência de um direito natural, mas a percepção e a aplicação prática desse conceito no dia a dia. Para muitos operadores do direito, mesmo pós-positivistas, o caminho mais cômodo e seguro é o da interpretação da norma positivada, ainda que buscando nela princípios implícitos ou valores constitucionais. Isso, por vezes, leva a uma "acomodação" onde a essência do direito fica submetida à forma de sua positivação.

 

2) Como a Assistência Religiosa se Encaixa Nesse Cenário 

No caso da assistência religiosa em hospitais, a situação é um exemplo emblemático dessa tensão.

O direito é claramente positivado na Constituição (art. 5º, VI), em leis federais (Lei nº 9.982/2000) e até em portarias (Portaria de Consolidação nº 1/2017 do Ministério da Saúde). A questão não é a falta de norma, mas a compreensão e a efetivação dessa norma em sua plenitude, considerando a urgência e a profundidade da necessidade que ela visa atender.

A burocracia e a rigidez na aplicação de regras sobre horários de visita para assistentes religiosos não são resultado de uma falha legislativa em si, mas de uma interpretação que não consegue ir além do texto para abraçar o espírito do direito. O desafio, portanto, reside em como traduzir a importância inegável desse direito – que é natural em sua concepção, fundamental em sua constitucionalização e essencial em sua prática – para uma linguagem que ressoe com a lógica operacional e jurídica predominante.

Talvez o caminho não seja tentar um "resgate psicológico" do direito natural em seu sentido mais clássico, mas sim fortalecer a interpretação humanizadora e principiológica dentro do próprio pós-positivismo. Isso implica enfatizar que a dignidade da pessoa humana e a liberdade de crença, embora positivadas, possuem uma carga axiológica tão poderosa que devem prevalecer sobre formalismos que as esvaziem de conteúdo. Argumentar que a rigidez burocrática leva a uma violação inconstitucional do direito fundamental e a um sofrimento desnecessário pode ser mais eficaz do que uma discussão puramente filosófica sobre o direito natural.

 

3) O Estado não concede um direito que é natural. Deve garantir seu exercício 

Entender que o direito à assistência religiosa em hospitais não é só um mero direito que o Estado em toda a sua amplitude concedeu para as pessoas, ou seja, para os seus súditos é algo essencial. Mas, que parece estar muito longe do que precisamos. Devido ao positivismo extremo as pessoas tendem a acreditar que o Estado está acima de tudo e de todos e que não existe nada que possa delimitá-lo. Entretanto o direito natural é um desses delimitadores.

Essa percepção de que o Estado e o direito positivado são a instância máxima, sem limites intrínsecos, é de fato um entrave à efetividade de direitos que, em sua essência, precedem a própria norma estatal.

 

4) O Desafio da Soberania Estatal e o Esquecimento do Direito Natural 

É fundamental entender que o direito à assistência religiosa não é uma "concessão" graciosa do Estado aos seus "súditos". Pelo contrário, trata-se de um direito inerente à condição humana, que o Estado tem o dever de reconhecer, proteger e garantir. Essa distinção é vital. Se o direito é visto como algo meramente "concedido", o Estado sente-se no direito de regulá-lo, limitá-lo e até mesmo suspendê-lo conforme sua conveniência ou sua interpretação burocrática, sem se submeter a um limite superior.

Essa visão deriva, em grande parte, de uma leitura extrema do positivismo jurídico, onde a lei válida é aquela posta pelo poder soberano do Estado, e não há autoridade superior que possa contestá-la ou delimitá-la. Nesse cenário, a Constituição se torna o ápice da pirâmide normativa, mas seu conteúdo pode ser interpretado de forma literal e restritiva, esvaziando a força de princípios que, embora positivados, têm uma raiz mais profunda.

Entretanto, o direito natural surge precisamente como um desses delimitadores inalienáveis do poder estatal. Ele argumenta que existem valores, princípios e direitos que são inerentes à natureza humana e à justiça, válidos universalmente e independentemente de serem escritos em leis. A liberdade de consciência, a dignidade, a busca por amparo espiritual – esses são direitos que, para os jusnaturalistas, não são criados pelo Estado, mas apenas por ele reconhecidos e protegidos. O Estado, portanto, não está "acima de tudo e de todos"; ele está limitado por esses direitos preexistentes.

 

5) A Consequência: Burocracia versus Dignidade 

A desconsideração ou o "esquecimento" do direito natural no imaginário jurídico e social é o que gera as "brechas legalistas" e os problemas burocráticos. Quando a assistência religiosa é tratada como um mero item de "serviço" regulado por portarias, sujeita a horários rígidos e à conveniência administrativa, ignora-se sua dimensão existencial e a urgência que ela representa para o paciente em seu momento de fragilidade máxima.

A burocracia, nesse contexto, deixa de ser uma ferramenta de organização para se tornar uma barreira à efetivação de um direito fundamental. A prioridade da "rotina hospitalar" sobre a necessidade de um último sacramento ou de uma oração de conforto em face da morte iminente não é uma falha operacional; é uma falha conceitual, um reflexo da incapacidade de reconhecer que certos direitos não podem ser subjugados à conveniência administrativa, pois sua violação atinge a própria essência da dignidade humana.

Resgatar a percepção do direito natural como um limite intrínseco ao poder do Estado e um fundamento para a interpretação de todas as leis é, sim, um desafio complexo na era pós-positivista. Contudo, é um passo essencial para garantir que a justiça e a humanidade prevaleçam sobre a mera formalidade legal, especialmente em contextos tão sensíveis como a saúde e a vida.

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