Fazer um resgate psicológico para chegar novamente
ao conceito de direito natural no imaginário das pessoas e principalmente dos
juristas, é algo que parece cada vez mais distante. Ao que parece estamos em
uma era de pós-positivismo o que só complica esse tipo de tentativa.
O pós-positivismo pode até ser visto como um avanço
no sentido de resgatar valores e princípios que o positivismo estrito havia, de
certa forma, relegado. No entanto, observa-se que o resgate do direito natural
no imaginário dos juristas e da população parece cada vez mais distante. Isso
aponta para o cerne da dificuldade em resolver questões como a assistência
religiosa em hospitais e presídios.
1) O Desafio do Resgate do Direito Natural na Era Pós-Positivista
A era pós-positivista, embora reconheça a
importância dos princípios e dos valores na interpretação e aplicação do
direito, muitas vezes ainda opera dentro de uma lógica que prioriza a norma
posta como ponto de partida.
A busca por um fundamento axiológico, moral ou ético
para a lei é presente, mas a linguagem do direito natural, com sua conotação
jusnaturalista histórica, pode soar distante ou mesmo
"não-científica" para uma parcela significativa da comunidade
jurídica.
A secularização da sociedade e o pluralismo de
valores também contribuem para a dificuldade de um consenso sobre o que
constituiria um "direito natural" universalmente aceito. Se o direito
natural remete a uma ordem superior ou a princípios inerentes à razão humana, a
diversidade de interpretações sobre essa ordem ou sobre a própria razão pode
dificultar sua aceitação como um fundamento inequívoco para a prática jurídica
cotidiana.
Assim, o problema não é a ausência de um direito
natural, mas a percepção e a aplicação prática desse conceito no dia a dia.
Para muitos operadores do direito, mesmo pós-positivistas, o caminho mais
cômodo e seguro é o da interpretação da norma positivada, ainda que buscando
nela princípios implícitos ou valores constitucionais. Isso, por vezes, leva a
uma "acomodação" onde a essência do direito fica submetida à forma de
sua positivação.
2) Como a Assistência Religiosa se Encaixa Nesse Cenário
No caso da assistência religiosa em hospitais, a
situação é um exemplo emblemático dessa tensão.
O direito é claramente positivado na Constituição
(art. 5º, VI), em leis federais (Lei nº 9.982/2000) e até em portarias
(Portaria de Consolidação nº 1/2017 do Ministério da Saúde). A questão não é a
falta de norma, mas a compreensão e a efetivação dessa norma em sua plenitude,
considerando a urgência e a profundidade da necessidade que ela visa atender.
A burocracia e a rigidez na aplicação de regras
sobre horários de visita para assistentes religiosos não são resultado de uma
falha legislativa em si, mas de uma interpretação que não consegue ir além do
texto para abraçar o espírito do direito. O desafio, portanto, reside em como
traduzir a importância inegável desse direito – que é natural em sua concepção,
fundamental em sua constitucionalização e essencial em sua prática – para uma
linguagem que ressoe com a lógica operacional e jurídica predominante.
Talvez o caminho não seja tentar um "resgate
psicológico" do direito natural em seu sentido mais clássico, mas sim
fortalecer a interpretação humanizadora e principiológica dentro do próprio
pós-positivismo. Isso implica enfatizar que a dignidade da pessoa humana e a
liberdade de crença, embora positivadas, possuem uma carga axiológica tão
poderosa que devem prevalecer sobre formalismos que as esvaziem de conteúdo.
Argumentar que a rigidez burocrática leva a uma violação inconstitucional do direito
fundamental e a um sofrimento desnecessário pode ser mais eficaz do que uma
discussão puramente filosófica sobre o direito natural.
3) O Estado não concede um direito que é natural. Deve garantir seu exercício
Entender que o direito à assistência religiosa em
hospitais não é só um mero direito que o Estado em toda a sua amplitude
concedeu para as pessoas, ou seja, para os seus súditos é algo essencial. Mas,
que parece estar muito longe do que precisamos. Devido ao positivismo extremo
as pessoas tendem a acreditar que o Estado está acima de tudo e de todos e que
não existe nada que possa delimitá-lo. Entretanto o direito natural é um desses
delimitadores.
Essa percepção de que o Estado e o direito
positivado são a instância máxima, sem limites intrínsecos, é de fato um
entrave à efetividade de direitos que, em sua essência, precedem a própria
norma estatal.
4) O Desafio da Soberania Estatal e o Esquecimento do Direito Natural
É fundamental entender que o direito à assistência
religiosa não é uma "concessão" graciosa do Estado aos seus
"súditos". Pelo contrário, trata-se de um direito inerente à condição
humana, que o Estado tem o dever de reconhecer, proteger e garantir. Essa
distinção é vital. Se o direito é visto como algo meramente
"concedido", o Estado sente-se no direito de regulá-lo, limitá-lo e
até mesmo suspendê-lo conforme sua conveniência ou sua interpretação
burocrática, sem se submeter a um limite superior.
Essa visão deriva, em grande parte, de uma leitura
extrema do positivismo jurídico, onde a lei válida é aquela posta pelo poder
soberano do Estado, e não há autoridade superior que possa contestá-la ou
delimitá-la. Nesse cenário, a Constituição se torna o ápice da pirâmide
normativa, mas seu conteúdo pode ser interpretado de forma literal e
restritiva, esvaziando a força de princípios que, embora positivados, têm uma
raiz mais profunda.
Entretanto, o direito natural surge precisamente
como um desses delimitadores inalienáveis do poder estatal. Ele argumenta que
existem valores, princípios e direitos que são inerentes à natureza humana e à
justiça, válidos universalmente e independentemente de serem escritos em leis.
A liberdade de consciência, a dignidade, a busca por amparo espiritual – esses
são direitos que, para os jusnaturalistas, não são criados pelo Estado, mas
apenas por ele reconhecidos e protegidos. O Estado, portanto, não está "acima
de tudo e de todos"; ele está limitado por esses direitos preexistentes.
5) A Consequência: Burocracia versus Dignidade
A desconsideração ou o "esquecimento" do
direito natural no imaginário jurídico e social é o que gera as "brechas
legalistas" e os problemas burocráticos. Quando a assistência religiosa é
tratada como um mero item de "serviço" regulado por portarias,
sujeita a horários rígidos e à conveniência administrativa, ignora-se sua
dimensão existencial e a urgência que ela representa para o paciente em seu
momento de fragilidade máxima.
A burocracia, nesse contexto, deixa de ser uma
ferramenta de organização para se tornar uma barreira à efetivação de um
direito fundamental. A prioridade da "rotina hospitalar" sobre a necessidade
de um último sacramento ou de uma oração de conforto em face da morte iminente
não é uma falha operacional; é uma falha conceitual, um reflexo da incapacidade
de reconhecer que certos direitos não podem ser subjugados à conveniência
administrativa, pois sua violação atinge a própria essência da dignidade
humana.
Resgatar a percepção do direito natural como um
limite intrínseco ao poder do Estado e um fundamento para a interpretação de
todas as leis é, sim, um desafio complexo na era pós-positivista. Contudo, é um
passo essencial para garantir que a justiça e a humanidade prevaleçam sobre a
mera formalidade legal, especialmente em contextos tão sensíveis como a saúde e
a vida.
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