No complexo ambiente hospitalar, onde a ciência médica se
entrelaça com a vulnerabilidade humana, o direito à assistência religiosa
transcende a mera formalidade legal, consolidando-se como uma prerrogativa
essencial da dignidade da pessoa humana e da liberdade de crença, ambos
direitos naturais e constitucionais.
No Brasil, a ausência de clareza nas normativas pode
transformar essa prerrogativa fundamental em uma fonte de insegurança jurídica,
intensificando o sofrimento psíquico e espiritual do paciente e de seus
familiares. Não raro, a rigidez burocrática impede que a fé, tão vital em
momentos de crise, cumpra seu papel de amparo e consolo.
Quem Pode Agir e Por Quê?
Quando o direito à assistência religiosa é negado ou mitigado
em ambiente hospitalar, tanto o enfermo e sua família quanto o assistente
religioso têm legitimidade para agir.
- O
direito à assistência religiosa é, primariamente, um direito fundamental
do paciente (ou de sua vontade presumida, expressa pela família em caso de
impossibilidade). A eles, a violação impacta diretamente a liberdade de
crença (art. 5º, VI, da Constituição Federal de 1988), a dignidade da
pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988) e o direito
à assistência espiritual, que são bens jurídicos personalíssimos. A
negativa pode causar um sofrimento psíquico e moral incalculável, especialmente
em face da terminalidade.
- O
assistente religioso, por sua vez, age em representação de sua fé e em
cumprimento de sua missão. A negativa de acesso viola o direito de exercer
o ministério religioso em conformidade com a lei, além de frustrar o
direito do fiel de receber o suporte. A violação aqui recai sobre a
liberdade de exercício de culto e a garantia do direito de acesso,
conforme previsto na legislação específica sobre assistência religiosa.
Quais Vias de Ação Podem Ser Tomadas?
Não existe um único caminho, e a escolha dependerá da
urgência da situação e da gravidade da negativa à assistência.
1. Diálogo Imediato com a Instituição
Hospitalar:
o Com quem falar: Tentar conversar com
a equipe de enfermagem, o médico responsável ou, idealmente, a direção da
unidade hospitalar ou a ouvidoria do hospital. É a via mais rápida para
resolver uma situação pontual e urgente.
o O que argumentar: Reforçar a previsão
legal do direito à assistência religiosa, mencionando expressamente a Lei
Federal nº 9.982, de 14 de julho de 2000, que "Dispõe sobre a prestação de
assistência religiosa nas entidades hospitalares públicas e privadas, bem como
nos estabelecimentos prisionais civis e militares" (art. 1º), e a Portaria
de Consolidação nº 1, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde, que
garante o "recebimento de visita de religiosos de qualquer credo"
(Art. 4º, Parágrafo Único, XIV). Deve-se, também, salientar a necessidade do
paciente, especialmente se a situação for de urgência ou fim de vida, onde a
restrição poderia configurar lesão à dignidade.
2. Denúncia Formal aos Órgãos de
Controle e Fiscalização:
o Ministério Público: O Ministério
Público, em suas esferas estadual e federal (MPF), tem o papel de defensor da
ordem jurídica e dos direitos sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da
Constituição Federal). Denúncias de violação à assistência religiosa podem ser
encaminhadas a promotorias ou procuradorias de Justiça especializadas em
Direitos Humanos ou Defesa da Saúde, com base na violação do direito à
liberdade de religião.
o Secretarias de Saúde: As Secretarias
de Saúde (Municipal e Estadual) são responsáveis pela fiscalização das unidades
de saúde sob sua jurisdição (art. 198 da Constituição Federal). Uma denúncia
formal à Ouvidoria da Secretaria pode gerar uma investigação e, se for o caso,
a aplicação de medidas administrativas.
o Conselhos Profissionais: Conselhos
Regionais de Medicina (CRM) e de Enfermagem (Coren) podem ser acionados para
avaliar se houve alguma conduta antiética por parte de profissionais de saúde
que, por ação ou omissão, impediram o exercício de um direito legalmente
garantido (códigos de ética das respectivas profissões).
o Disque 100: O Disque Direitos
Humanos, coordenado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, é um
canal nacional para denúncias de violações de direitos humanos, incluindo
discriminação e violações de liberdade religiosa (Lei nº 12.527/2011 - Lei de
Acesso à Informação, que visa a transparência e defesa de direitos).
3. Registro de Boletim de Ocorrência (B.O.):
o Quando fazer: Embora não haja um
crime específico de "negativa de assistência religiosa", a situação
pode, em tese, configurar outros tipos de crimes, como abuso de autoridade (Lei
nº 13.869/2019, se a conduta for de um agente público sem respaldo legal e com
finalidade específica de prejudicar ou beneficiar) ou constrangimento ilegal
(art. 146 do Código Penal, se alguém for privado de sua liberdade ou do
exercício de um direito mediante violência ou grave ameaça), dependendo das
circunstâncias concretas. O BO serve como um registro oficial do fato e pode
ser o primeiro passo para uma investigação criminal.
o Direitos Violados no B.O.: O B.O.
documentará a violação da liberdade de crença e da dignidade do paciente, o que
pode ser enquadrado nas previsões constitucionais (art. 5º, VI) e nas leis
específicas que garantem esse direito.
4. Ação Judicial:
o Em casos mais graves ou de
reincidência, ou quando as vias administrativas não surtem efeito, pode ser
cabível uma ação judicial, seja para garantir o acesso imediato (como um
mandado de segurança, previsto no art. 5º, LXIX, da Constituição Federal, para
proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus ou habeas
data, ou uma ação com pedido de tutela de urgência/liminar, conforme art.
300 do Código de Processo Civil), ou para buscar reparação por danos morais
(art. 5º, X, da Constituição Federal, e art. 186 do Código Civil).
A Perspectiva do "Porquê"
Independentemente de quem tome a iniciativa, a essência do
problema reside na colisão entre o direito fundamental do indivíduo de buscar
conforto espiritual e a rigidez administrativa das instituições. A efetividade
do direito à assistência religiosa em momentos cruciais não deveria depender da
força argumentativa de um assistente religioso ou da determinação de uma
família em lutar por um direito que já lhes é garantido pela Constituição
Federal e por leis específicas. A humanização do cuidado e a interpretação
constitucional das normas impõem que os hospitais atuem proativamente para
facilitar o acesso, reconhecendo a urgência da fé que, para muitos, é tão vital
quanto a urgência médica.
A ausência de clareza nas normativas que prevejam a
flexibilização do acesso para assistentes religiosos em situações de urgência e
terminalidade continua sendo um desafio a ser superado para a plena efetivação
dos direitos fundamentais.
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