segunda-feira, 9 de junho de 2025

Assistência religiosa em hospitais negada. O que fazer, quem pode fazer, quando e onde.


No complexo ambiente hospitalar, onde a ciência médica se entrelaça com a vulnerabilidade humana, o direito à assistência religiosa transcende a mera formalidade legal, consolidando-se como uma prerrogativa essencial da dignidade da pessoa humana e da liberdade de crença, ambos direitos naturais e constitucionais.

No Brasil, a ausência de clareza nas normativas pode transformar essa prerrogativa fundamental em uma fonte de insegurança jurídica, intensificando o sofrimento psíquico e espiritual do paciente e de seus familiares. Não raro, a rigidez burocrática impede que a fé, tão vital em momentos de crise, cumpra seu papel de amparo e consolo.

 

Quem Pode Agir e Por Quê?

Quando o direito à assistência religiosa é negado ou mitigado em ambiente hospitalar, tanto o enfermo e sua família quanto o assistente religioso têm legitimidade para agir.

  • O direito à assistência religiosa é, primariamente, um direito fundamental do paciente (ou de sua vontade presumida, expressa pela família em caso de impossibilidade). A eles, a violação impacta diretamente a liberdade de crença (art. 5º, VI, da Constituição Federal de 1988), a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988) e o direito à assistência espiritual, que são bens jurídicos personalíssimos. A negativa pode causar um sofrimento psíquico e moral incalculável, especialmente em face da terminalidade.
  • O assistente religioso, por sua vez, age em representação de sua fé e em cumprimento de sua missão. A negativa de acesso viola o direito de exercer o ministério religioso em conformidade com a lei, além de frustrar o direito do fiel de receber o suporte. A violação aqui recai sobre a liberdade de exercício de culto e a garantia do direito de acesso, conforme previsto na legislação específica sobre assistência religiosa.

 

Quais Vias de Ação Podem Ser Tomadas?

Não existe um único caminho, e a escolha dependerá da urgência da situação e da gravidade da negativa à assistência.

1.      Diálogo Imediato com a Instituição Hospitalar:

o    Com quem falar: Tentar conversar com a equipe de enfermagem, o médico responsável ou, idealmente, a direção da unidade hospitalar ou a ouvidoria do hospital. É a via mais rápida para resolver uma situação pontual e urgente.

o    O que argumentar: Reforçar a previsão legal do direito à assistência religiosa, mencionando expressamente a Lei Federal nº 9.982, de 14 de julho de 2000, que "Dispõe sobre a prestação de assistência religiosa nas entidades hospitalares públicas e privadas, bem como nos estabelecimentos prisionais civis e militares" (art. 1º), e a Portaria de Consolidação nº 1, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde, que garante o "recebimento de visita de religiosos de qualquer credo" (Art. 4º, Parágrafo Único, XIV). Deve-se, também, salientar a necessidade do paciente, especialmente se a situação for de urgência ou fim de vida, onde a restrição poderia configurar lesão à dignidade.

2.      Denúncia Formal aos Órgãos de Controle e Fiscalização:

o    Ministério Público: O Ministério Público, em suas esferas estadual e federal (MPF), tem o papel de defensor da ordem jurídica e dos direitos sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da Constituição Federal). Denúncias de violação à assistência religiosa podem ser encaminhadas a promotorias ou procuradorias de Justiça especializadas em Direitos Humanos ou Defesa da Saúde, com base na violação do direito à liberdade de religião.

o    Secretarias de Saúde: As Secretarias de Saúde (Municipal e Estadual) são responsáveis pela fiscalização das unidades de saúde sob sua jurisdição (art. 198 da Constituição Federal). Uma denúncia formal à Ouvidoria da Secretaria pode gerar uma investigação e, se for o caso, a aplicação de medidas administrativas.

o    Conselhos Profissionais: Conselhos Regionais de Medicina (CRM) e de Enfermagem (Coren) podem ser acionados para avaliar se houve alguma conduta antiética por parte de profissionais de saúde que, por ação ou omissão, impediram o exercício de um direito legalmente garantido (códigos de ética das respectivas profissões).

o    Disque 100: O Disque Direitos Humanos, coordenado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, é um canal nacional para denúncias de violações de direitos humanos, incluindo discriminação e violações de liberdade religiosa (Lei nº 12.527/2011 - Lei de Acesso à Informação, que visa a transparência e defesa de direitos).

3.      Registro de Boletim de Ocorrência (B.O.):

o    Quando fazer: Embora não haja um crime específico de "negativa de assistência religiosa", a situação pode, em tese, configurar outros tipos de crimes, como abuso de autoridade (Lei nº 13.869/2019, se a conduta for de um agente público sem respaldo legal e com finalidade específica de prejudicar ou beneficiar) ou constrangimento ilegal (art. 146 do Código Penal, se alguém for privado de sua liberdade ou do exercício de um direito mediante violência ou grave ameaça), dependendo das circunstâncias concretas. O BO serve como um registro oficial do fato e pode ser o primeiro passo para uma investigação criminal.

o    Direitos Violados no B.O.: O B.O. documentará a violação da liberdade de crença e da dignidade do paciente, o que pode ser enquadrado nas previsões constitucionais (art. 5º, VI) e nas leis específicas que garantem esse direito.

4.      Ação Judicial:

o    Em casos mais graves ou de reincidência, ou quando as vias administrativas não surtem efeito, pode ser cabível uma ação judicial, seja para garantir o acesso imediato (como um mandado de segurança, previsto no art. 5º, LXIX, da Constituição Federal, para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus ou habeas data, ou uma ação com pedido de tutela de urgência/liminar, conforme art. 300 do Código de Processo Civil), ou para buscar reparação por danos morais (art. 5º, X, da Constituição Federal, e art. 186 do Código Civil).

 

A Perspectiva do "Porquê"

Independentemente de quem tome a iniciativa, a essência do problema reside na colisão entre o direito fundamental do indivíduo de buscar conforto espiritual e a rigidez administrativa das instituições. A efetividade do direito à assistência religiosa em momentos cruciais não deveria depender da força argumentativa de um assistente religioso ou da determinação de uma família em lutar por um direito que já lhes é garantido pela Constituição Federal e por leis específicas. A humanização do cuidado e a interpretação constitucional das normas impõem que os hospitais atuem proativamente para facilitar o acesso, reconhecendo a urgência da fé que, para muitos, é tão vital quanto a urgência médica.

A ausência de clareza nas normativas que prevejam a flexibilização do acesso para assistentes religiosos em situações de urgência e terminalidade continua sendo um desafio a ser superado para a plena efetivação dos direitos fundamentais.

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