terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Liberdade religiosa e tolerância religiosa. Alguns apontamentos.

Para iniciar um tema árduo e espinhoso como esse é preciso que alguns conceitos estejam muito bem discernidos na mente do leitor, caso contrário a confusão será certa.

Iniciemos pelo conceito e diferenciação entre liberdade, qualquer que seja, e tolerância. A liberdade é um direito humano e é um ato ativo, ou seja, é preciso que um sujeito ativo exerça aquela determina liberdade. Já a tolerância é um ato de se manter passivo, basta que o sujeito não faça nada que será tolerante com determinado ato ou determinado exercício de liberdade de outrem. Quanto a liberdade, ela envolve o crer ou o não crer.

Para o sacerdote e professor de filosofia Battista Mondin[1], a liberdade seria a capacidade do homem ser árbitro, ser padrão de suas próprias ações escolhendo entre várias possibilidade e alternativas de agir e de não agir. Battista Mondin leva para o conceito de liberdade o ato de agir, o sujeito ativo.

Para o Papa Leão XIII em sua Encíclica Libertas praestantissimum[2] já no ano de 1888, há uma definição de liberdade como dignidade de seguir seus próprios conselhos e obter as ações pela sua própria vontade.

O Papa Bento XVI afirma que a liberdade é condição da pessoa humana e se manifesta no direito.

Já São Tomás de Aquino prefere o termo livre arbítrio a liberdade. Leve-se em consideração o período histórico de seu pensamento e seus escritos. Ele fala de liberdade de exercício, de especificação e de contrariedade.

Mais especificamente, o marco da liberdade religiosa é o nascimento do cristianismo. Até então, religião era algo próprio do povo, cada um tinha sua própria religião e os deuses próprios daquele determinado povo. Não existia a ideia de um monoteísmo. Na verdade, sequer existia uma ideia de monolatria. O que havia era a escolha de alguns deuses a serem adorados por determinada parcela do povo separados por famílias, status ou regiões.

Em Roma existiam os deuses gerais e os deuses familiares que eram os antepassados (LAR = deus protetor daquela família). O LAR ficava em cima do lugar da casa onde ficava o fogo, por isso o nome lareira. É onde a família se reunia e onde havia calor e luz. Essa é uma pequena curiosidade sobre o grau de influência da cultura romana até hoje em nossa civilização e como era possível confluir dentro de uma mesma sociedade um número tão grande de deuses quanto era o número de famílias existentes.

Por tudo isso, a religião romana era subordinada aos interesses do império e do imperador e por isso não existia algo como pluralidade religiosa o que impedia o desenvolvimento de algo como a tolerância religiosa, muito menos a liberdade religiosa, já que não aderir à religião do Estado era não cumprir leis estatais. Não cumprir leis estatais era e ainda é sinônimo de crime o que comina em uma pena.

Historicamente, portanto, o cristianismo nasce com um sério problema por distinguir César de Deus. As demais religiões nunca tinham feito isso. Trata-se de algo próprio e inédito por meio do cristianismo. O islamismo mistura o estado com religião e também o judaísmo é assim. Não é a toa que a tônica cristã sempre foi a perseguição pelo poder político, justamente por distinguir o poder humano e poder divino (dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus). Distingue também entre lei interna e lei externa.

Esse fenômeno que não era uma monolatria, ou seja, não era o caso de escolher um entre todos os deuses para adorar, o que já seria um escândalo. Aqui estamos falando de verdadeiro monoteísmo, ou seja, não se aceita que os chamados deuses, sejam realmente deuses e que não se contentando em diminuí-los ainda os relega a falsidade e latria demoníaca.

Entretanto, o grande problema aqui era a lei que deveria ser seguida e não era. Entre nós qualquer que seja a lei ela precisa ser subordinada à lei moral. É preciso aplicar a moralidade à lei, seja ela canônica ou não. Em termos canônicos isso se chama equidade, ou seja, o equilíbrio entre a lei positiva e a moralidade que essa lei positiva deve ter. Infelizmente isso é algo muito esquecido nos dias atuais.

Uma vez que a fé cristã implica em uma adesão pessoal a Cristo que se manifesta concretamente no batismo, fica claro que não existe essa adesão no judaísmo em que a pessoa nasce judia porque seus pais eram judeus. A mesma coisa acontecia com os romanos e com tantos outros. Essa forma de adesão genérica e não com um ligame étnico ou sanguíneo gera, necessariamente, a necessidade de tolerância.

A comunidade cristã, portanto, é “transétnica” porque independe de cor, raça, etnia, sexo... Os muçulmanos até hoje também são assim. Não precisam de adesão, pois nasce de pais muçulmanos será desde já registrado como muçulmano. Nesse sentido o cristianismo preserva a consciência individual e embate com o poder político.

É necessário que o cristão tenha consciência da própria fé. Para ser religioso o romano deveria oferecer tributos ao deus romano protetor, mas isso não implicava em uma adesão a valores. Era somente agrado material ao deus. A consciência individual na religião coloca um ponto no poder político e faz com que o homem seja livre. Se trata de uma visão muito peculiar do cristianismo: a adesão ou vinculação a regras morais nos dá liberdade, uma liberdade que a humanidade, verdadeiramente, nunca tinha visto até então.

O cristão é cidadão de dois reinos: o reino humano e o reino de Deus que não são concorrentes, mas paralelos. Permanece a harmonia entre fé e cidadania. Entretanto, muitas e variadas sociedades nunca compreenderam esse paralelismo e pretendiam que as paralelas se cruzassem. Como sabemos ser isso impossível, um dos dois deveria se curvar, ou seja, se corromper e deixar de ser o que era para que esse cruzamento de algo que era paralelo existisse. Forçar a religião a se curvar é justamente o que fenômeno que vemos hoje e que chamamos laicismo, ou seja, um combate à religião como se essa fosse um mal a ser combatido por não se curvar ao Estado. Essa atitude é que afronta a liberdade religiosa e consequentemente a tolerância.

A fé cristã desde o início optou por obedecer a fé e não a lei civil quando em confronto. Entendiam que é a adesão a vontade divina e não a vontade humana e por isso que, quando em confronto se fica com a vontade divina. A autoridade do imperador, do governante não se coloca acima da autoridade da Igreja. Por isso Santo Ambrósio entendia que a lei temporal merecia respeito por parte da Igreja, mas também o Estado deveria respeitar a autoridade eclesiástica.

 



[1] Battista Mondin (Vicenza, 29 de julho de 1926 — Parma, 29 de janeiro de 2015) foi um sacerdote do Instituto Xaveriano e Doutor em Filosofia e religião junto à Universidade Harvard. Durante vários anos foi professor de filosofia na Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Urbaniana, em Roma. Tem uma extensa obra nas matérias de Filosofia, Teologia e Religião. Também escreveu sobre ética e sociedade.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Liberdade religiosa: a mãe de todas as liberdades.

Para fazer uma breve explicação e dissertação sobre a liberdade religiosa como “mãe” de todas as liberdades, vemos que é necessária uma pequena remissão histórica para entender de onde surge a liberdade religiosa que sequer poderia ser imaginada em certas épocas e sociedades da história da humanidade.

Na antiguidade, especialmente antes do cristianismo se tornar uma religião com possibilidade de livre culto (ano de 313 – Edito de Milão) dentro do Império romano e mesmo antes disso, tínhamos sociedades que não entendiam a liberdade religiosa pelo simples fato de que não era possível compreender uma sociedade que não tivesse como liga a religião para lhe manter e fazer possível a existência.

A religião era um fenômeno que surgia dentro de uma determinada sociedade e era propriedade dela. Cada povo tinha seu conjunto de crenças, deuses e até valores e esses conjuntos caracterizavam e uniam aquela sociedade. Não havia adesão a religiões. Judeus nasciam judeus e não se convertiam em judeus, porque não dependiam de adesão, e assim é até hoje. Romanos de igual forma nasciam romanos e cultuavam os deuses romanos desde já sem precisar ter uma adesão pessoal.

O cristianismo, através da Igreja Católica é que trouxe ao mundo essa ideia de adesão religiosa. Com essa ideia, revolucionária, o Estado ficava de lado, uma vez que a adesão era individual e não precisava de um Estado ou uma sociedade para garanti-la. A comunidade cristã é o que podemos chamar de “transétnica”, porque independe de cor, raça, etnia, sexo... basta a adesão pessoal para que se torne cristão. Os muçulmanos, por exemplo, até hoje não usam o conceito de adesão, pois aquele que nasce de pais muçulmanos será desde já registrado como muçulmano sendo considerado traidor se resolver mudar. Nesse sentido o cristianismo preserva a consciência individual e embate com o poder político.

Com o desenrolar dos fatos e dos séculos, chagamos à Idade média em que o regime era o chamado monista, ou seja, um só, não dividindo o poder temporal do sobrenatural e esse regime permaneceu até a Revolução Francesa quando a religião passa a ser considerada uma questão interna e não mais pública. Separou-se a religião da coisa pública. No final do século XIX o Papa Leão XIII reafirma a intangibilidade dos direitos básicos (repouso semanal, por exemplo) inaugurando o que hoje chamamos de Doutrina Social da Igreja. Com isso ele transforma esses direitos em embriões dos direitos humanos que serão reconhecidos depois, mas que são, também, em outras instâncias de liberdade religiosa.

No âmbito protestante, temos o pensamento de Kierkegaard, segundo o qual o cristianismo detesta a intolerância. Sendo o cristianismo a única e suprema verdade, a intolerância em relação aos outros seria a falência da cristandade, ou seja, é preciso aceitar toda e qualquer coisa desde que seja verdade, o que mitiga a intolerância. Para ele era necessário temer a Deus e honrar o rei.

Até a reforma protestante tínhamos a societas christiana segundo o qual todo o mundo conhecido e cristão estava reunido em torno de uma única autoridade que era o Papa. Isso mitigava autoritarismos estatais e ataques frontais a direitos naturais e de natureza divina. Esse bloco, com a reforma protestante, se quebra. A partir daí não existe mais uma única autoridade para unir os reinos e cede lugar à diversidade religiosa com diversas teologias, doutrinas, autoridades etc. A reforma gera conflitos e divide a Europa politicamente, não só religiosamente.

A divisão segue com um sem número de possibilidades religiosas, mesmo que todas advindas de um único tronco do cristianismo que era a Igreja, mas protestando em maior ou menor grau contra ela. Tais diferenças de pensamento e a quantidade de divisões faz com que seja necessário, com o tempo, o entendimento de uma tolerância religiosa, pelo menos. Seria já o embrião da liberdade religiosa que viria daí com o entendimento de que é possível crer no que a consciência mandar ou ao menos não crer se for o caso.

Também a partir do século XIX surgem os Estados Nacionais que substituem o império dos cristãos. O primeiro estado Nacional que surge é Portugal.

Dentro de uma perspectiva histórica, o direito que se aplicava aos romanos era o ius romanum e para os demais o ius gentium que, por sua vez, se torna o direito comum e com os Estados nacionais cede lugar ao ius nacionale. A liberdade religiosa então surge como elemento fundamental para a harmonia política e social desse contexto. Por esse motivo a mãe de todos os direitos humanos é a liberdade religiosa que também é a raiz do direito eclesiástico.

O reconhecimento das normas de direito eclesiástico requer o reconhecimento desde direito público que é a liberdade religiosa. Sem ela não há possibilidade de direito eclesiástico nem de direitos humanos como o conceituamos, uma vez que os ataques religiosos, sem a liberdade religiosa, seriam imensos, haja vista a diversidade dentro de um mesmo espaço social.

A liberdade religiosa é portanto, o direito de professar uma fé. É o direito de exercer a fé de forma pública e privada, ou mesmo de não exercer nada, desde que não ataque pontos centrais e basilares da moral, costumes e vivência dessa sociedade.

 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

A importância de um direito eclesiástico corretamente conceituado.

Temos que o direito público eclesiástico ou simplesmente direito eclesiástico, não é um direito exclusivamente canônico nem um direito exclusivamente estatal. Parece-nos que poderia ser um direito estatal aplicado a um fator social religioso enquanto que o direito canônico é um direito próprio, embora autônomo, cujo objeto são normas próprias da Igreja Católica.

O direito eclesiástico sem dúvida deve abarcar não só a Igreja Católica, mas todas as confissões religiosas, sendo preciso, para isso, ter uma boa conceituação do que é religião, do que é seita, do que não é religião, o que é crença, o que é liberdade religiosa e até que ponto essa liberdade religiosa não se tornou ou não é apenas tolerância religiosa.

O direito eclesiástico pode ser conceituado de diversas formas. Uma dessas formas como sendo todas as normas de direito do Estado relativas à religião. De forma mais elaborada podemos dizer que o direito eclesiástico é um ramo do direito interno do Estado, de forma especial do direito público, no qual se insere e ganha unidade formando um sistema de normas destinadas a disciplinar o fenômeno religioso na sua dimensão social. Enfim, descritivamente seria um conjunto de normas positivadas – instituídas, promulgadas ou outorgadas, constitucionais ou não – que são destinadas à regulação do fenômeno religioso na sua dimensão social em um Estado e uma sociedade. Essa regulação de normas positivas ocorre em três níveis: individuais, coletivas e institucionais.

Apesar da consciência social atual, o direito canônico é autônomo e não apenas um direito administrativo da Igreja como se a Igreja fosse um órgão ou agência estatal. Muitas vezes é essa a concepção que vemos para localizar o direito canônico no mundo jurídico. Ele é autônomo como ciência jurídica e foi estabelecido por uma societas perfecta, ou seja, uma sociedade perfeita (aquela que tem plena autonomia para reger-se a si própria e não é derivada de nenhuma outra entidade, organismo ou estado). De forma oposta, temos o direito eclesiástico que tem grande intersecção com o direito estatal. Portanto, muitas vezes o direito eclesiástico, particularmente no sujeito do Estado, terá que levar em conta o que está disposto nas normas das confissões religiosas, uma vez que essas normas serão pressupostos para as disposições estatais. Dessa feita, todas as vezes que as normas confessionais gerarem efeitos dentro de toda a esfera jurídica estatal, teremos a formação o fenômeno que podemos chamar de direito eclesiástico.

A importância do direito eclesiástico está justamente no fato de sua amplitude que leva em consideração normas, conceitos e valores das confissões religiosas para dentro do Estado como organização social temporal. Toda matéria que mencionar de forma explícita ou implícita, direta ou indireta a religião, será objeto de estudo do direito eclesiástico. Portanto, engloba uma boa parte da vida social, seja a pessoa atingida pelas normas diretamente ou indiretamente, uma vez que se trata do fenômeno social e não meramente de direitos individuais, que, por sua vez, também não podem ficar desguarnecidos.

A postura que o Estado adota ante a todo fenômeno religioso deve ser estudado para entender e saber até que ponto o Estado inflige direitos naturais, até que ponto concede direitos e até que ponto deverá apenas reconhece-los sem os desmerecer ou diminuir.

Por fim, apenas para determinar a posição do direito eclesiástico no mundo jurídico civil, os Estados costumam adotar as normas gerais religiosas, como é o caso do direito a liberdade religiosa, como um reconhecimento expresso desse direito natural e humano em suas constituições, com algumas exceções. Mesmo os estados chamados confessionais, ou seja, aqueles que adotam uma religião como oficial, muitos detém o conceito de liberdade religiosa em vigor e garantem constitucionalmente esse direito, era o caso do Brasil imperial. Outros Estados, como o Brasil atual, mantém a separação entre Igreja e Estado e nem adotam nenhuma religião como oficial, nem tem as chamadas Igrejas de Estado. Em todas elas o direito eclesiástico precisa ser analisado como um conjunto de direitos que devem ser reconhecidos ou que devem ser cuidadosamente analisados para possível concessão devido a todo o desenvolvimento histórico dentro daquela determinada região em relação a determinada confissão religiosa.