sábado, 25 de agosto de 2018

O pensamento independente.


(Texto inspirado em parte do capítulo XII do livro Heresias, de Chesterton)

O capítulo XII do livro Heresias, de Chesterton, é todo dedicado a entender o paganismo no mundo atual. Chesterton desenvolve o texto comprovando que o cristianismo atual, na verdade, tem muitos de seus preceitos na evolução de vários pontos interessantes do paganismo. Mas não é bem isso o que queremos abordar nesse texto.

Logo ao final do capítulo, Chesterton fala-nos algo interessante e simples, aliás, tão simples que nos deixa estarrecidos, como sempre. O pequeno trecho foi assim traduzido por Antônio Emílio Angueth de Araújo e Márcia Xavier de Brito:

"Não sei por qual extraordinário acidente mental os Escritores modernos muito constantemente ligam a ideia de progresso a ideia de pensamento independente. O progresso é, obviamente, a antítese do pensamento independente."

Agora nos cabe pensar um pouco sobre essa afirmação. 

O que mais temos nos dias atuais é a ideia de que pensamento independente é um bom tipo de pensamento. É só uma ideia que não seduz só os escritores mas também os jornalistas, juristas, críticos de todas as espécies e estudantes que ainda cheiram a leite. É como se o pensamento independente te libertasse de grilhões e amarras que te impedissem de voar livre pelos ares. Se esquecem que todo pássaro para um dia eu voar precisou ser empurrado do ninho e forçado a alçar voo. Acham que basta sair por aí voando.

O pensamento independente apenas te faz iniciar do zero algo que já tinha sido iniciado por alguém. Você poderia já ter e usar a experiência de tantas pessoas poupando tempo e muito esforço intelectual, fora os muitos e muitos erros que obviamente vão acontecer. A mãe pássaro já sabe voar e sabe que pode voar por isso, quando sabe que seus filhotes já conseguem alçar voo, empurram eles do ninho. É a experiência da mãe que salva vida dos filhotes.

Quando você começar algo do zero dizendo que seu pensamento é independente, apenas está começando do zero um caminho que já foi percorrido por várias pessoas. Sendo assim, pode chegar apenas onde uma pessoa que começou do zero já chegou. Não vai conseguir a desbravar novos caminhos. Vai no máximo fazer o que outros já fizeram. Portanto, pensamento independente não é sinônimo de originalidade, no máximo é sinônimo de falta de perspectiva.

É preciso entender que o caminho não é uma corrida com um único corredor. O caminho é uma corrida de revezamento onde um corredor passa o bastão para o outro. O corredor da frente não precisa percorrer o mesmo caminho que já foi percorrido pelo anterior. O anterior já o fez por ele.

Conservar o pensamento já existente e partir dele para desenvolver algo realmente novo e atual, é algo bom, mas absolutamente distante do pensamento independente. Por que então que esse tipo de ideia continua a seduzir tantos por aí? 

quarta-feira, 25 de julho de 2018

De um Código a ser reformado a um novo Código.


 A partir do Concílio de Trento, já tendo a Igreja a consciência de uma série de compilações feitas de maneira privada até as legislações decretais dos Papas, as leis promulgadas nesse Concílio e após ele, fosse pelos Dicastérios fosse pelos próprios Papas, nunca foram compiladas em uma coleção específica. Isso gerou um acúmulo enorme de leis que se sobrepunham e geravam lacunas, inutilidade por repetição e desordem podendo causar confusão e até arbitrariedades.

Durante o Concílio Vaticano I foi pedido para que finalmente se fizesse uma única compilação de leis para facilitar o trabalho pastoral dos Bispos, mas durante o Concílio isso não foi possível. Mais uma vez se arrastava a vontade dos Bispos em ter uma coleção única de leis. Entretanto, anos depois, o Papa Pio X chamou para si a responsabilidade e ordenou que o trabalho se iniciasse.

Foi a partir do estudo determinado pelo Papa Pio X que se decidiu que o formato deveria ser de codificação, redigidos de forma breve e direta, novidade para leis eclesiásticas. A ideia não era de criar um novo direito, mas de organizar de uma forma nova e mais didática o direito vigente até ali. Falecido o Papa Pio X sem promulgar o Código, tal obrigação recaiu sobre o novo Papa Bento XV, daí o Código de 1917 ser chamado de Pio-Beneditino.

Com o passar de poucas décadas dos séculos XX já se percebeu que as mudanças agora aconteciam de forma muito mais rápida e que a Igreja precisava acompanhar essas mudanças para não ficar obsoleta em sua legislação. Foi aí que o Papa João XXIII, ao anunciar o Concílio Vaticano II também anunciou a renovação do Código.

Assim que se iniciou o Concílio Vaticano II se iniciou, também, as discussões para a reforma do Código de Direito Canônico que vigorava desde 1917, uma vez que vários pontos já eram de discussão geral e realmente precisavam ser modificados, adequados ou sofrer inserções, como também era preciso que o Código entrasse no “espírito” do Concílio.

Pois bem, os primeiros pontos seriam relativamente fáceis de serem resolvidos, uma vez que já existia toda uma prática sobre os assuntos, jurisprudências e experiências pastorais, contudo a parte de “entrar no espírito do Concílio” era um problema, isso porque o Concílio foi mudando, por assim dizer, seu espírito, a medida que ia acontecendo.

O fato foi que, uma vez que era debatido um ponto e se chegava, após algum “suor e lágrimas”, a um consenso, logo o Concílio resolvia algo que poderia mudar ou realmente mudava toda a temática debatida. Com a frequência desses acontecimentos, melhor seria esperar que os documentos do Concílio fossem publicados para que, aí sim, se continuasse com a reforma do Código dentro do espírito desejado.

A grande questão foi que essa reforma se converteu em um novo Código, tais foram as mudanças. Não se tratava de uma compilação sem a intenção de mudar ou criar nova lei como no Código de 1917, mas sim “e sobretudo duma reforma das normas que se devia adaptar aos novos hábitos mentais e às novas necessidades, embora o direito antigo devesse fornecer o fundamento” (Prefácio ao Código de Direito Canônico). Só no ano de 1983 o Código viria a ser promulgado pelo então Papa João Paulo II, hoje já canonizado, e veio o referido Código a ser conhecido como o último dos documentos do Concílio Vaticano II.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Breves apontamentos sobre o cânon 834, §1 do Código de Direito Canônico de 1983.


O cânon 834 do CIC é o cânon de abertura do livro IV do Código que pretende legislar sobre o Múnus de Santificar da Igreja.

Tendo em vista que o centro de toda norma jurídica da Igreja é a pessoa redimida pelo sangue de Cristo e que a mentalidade jurídica é sempre aquela de análise de possibilidade ou não possibilidades de determinadas ações, é preciso, contudo, que se tenha tato pastoral no momento de praticar a lei e colocar em prática o múnus de santificar. É preciso informar a pessoa que naquele momento e por tais e tais motivos não é possível ainda se comungar, ou ser padrinho ou casar e assim por diante. Inferir a lei sob o pretexto apenas de que é a lei não é o intuito da Igreja. Tal positivismo sequer consegue se fazer útil na ótica do direito estatal, quem dirá na Igreja onde o intuito maior é sempre salvar almas.

O cânon que será objeto do nosso estudo, portanto, é assim redigido:
Cân. 834 - § 1. A igreja desempenha seu múnus de santificar, de modo especial por meio da sagrada Liturgia, que é tida como exercício do sacerdócio de Jesus Cristo, na qual, por meio de sinais sensíveis, é significada e, segundo o modo próprio de cada um, é realizada a santificação dos homens, e é exercido plenamente pelo Corpo místico de Jesus Cristo, isto é, pela Cabeça e pelos membros, o culto público de Deus.

Alguns pontos aqui precisam ser analisado com mais calma.

Conforme informa o cânon 2 do CIC, o Código não pretende legislar sobre ritos litúrgicos e deixa para leis litúrgicas específicas tais determinações, contudo, já é sabido que as leis litúrgicas não podem se confrontar com o CIC que concede, digamos, as normas gerais para outras regras mais específicas.
 
Por esse motivo é possível que esse cânon, que tem uma redação muito mais teológica do que jurídica em si, possa manifestar sobre a liturgia de forma tão profunda assim como vários outros cânones que se seguem a partir desse.

Assim sendo, esse Cânon não pretende legislar ou mesmo interferir na liturgia ou nos ritos, mas já deixa claro e delimita diversos pontos sobre o dever de santificar que a Igreja tem ao expressar que “de modo especial” esse dever se dá por intermédio da liturgia, não ,portanto, unicamente.

Sabendo, então, que o múnus de santificar da Igreja não se esgota na liturgia, verificamos que isso já é manifestado no n. 12 da Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium nos seguintes termos:

12. A participação na sagrada Liturgia não esgota, todavia, a vida espiritual. O cristão, chamado a rezar em comum, deve entrar também no seu quarto para rezar a sós ao Pai, segundo ensina o Apóstolo, deve rezar sem cessar. E o mesmo Apóstolo nos ensina a trazer sempre no nosso corpo os sofrimentos da morte de Jesus, para que a sua vida se revele na nossa carne mortal. É essa a razão por que no Sacrifício da Missa pedimos ao Senhor que, tendo aceite a oblação da vítima espiritual, faça de nós uma «oferta eterna» a si consagrada.

Mais claro que esse número da Sacrosactum Concilium impossível. A liturgia é parte essencial, mas não o todo. Outras tantas coisas são necessárias para que o todo santificador possa ser efetivo.

Por outro ponto é preciso perceber que, apesar de não ser exclusivamente o único meio, é na liturgia que acontece o ápice e de onde vem toda a força santificadora da Igreja, conforme manifesta a mesma Constituição Apostólica Sacrosanctum Concilium em seu n. 10.

10. Contudo, a Liturgia é simultaneamente a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força. Na verdade, o trabalho apostólico ordena-se a conseguir que todos os que se tornaram filhos de Deus pela fé e pelo Baptismo se reúnam em assembleia para louvar a Deus no meio da Igreja, participem no Sacrifício e comam a Ceia do Senhor.

Tal preceito conforme consta no n. 10 acima transcrito é facilmente percebido em toda a encíclica Ecclesia de Eucharistia de São João Paulo II que em uma belíssima carta a todos os fiéis, sejam leigos ou do clero, disserta e medita sobre a Eucaristia como a fonte de toda uma Igreja de Cristo, motivo pelo qual ela existe e sobrevive, fonte de sua força e existência.

Outro ponto que fica claro no cânon 834, §1 é que a santificação dos homens se dá pela liturgia, razão pela qual é necessário que haja alguma legislação sobre ela.

A liturgia, sendo ela rito, não pode ficar a mercê da vontade de grupos e de celebrantes. Não pode se perder em meio a invencionices e criações que nada trazem de útil e não fazem parte da sua essência. Por esse motivo a liturgia precisa ter a mão forte da Igreja para regê-la. Uma vez que o mundo todo celebra o mesmo rito, esse rito pode se contaminar facilmente com vontades alheias às vontades da Igreja que pretende manter a essência do que Jesus quis fazer na última ceia e a manter a Santa Missa como um culto agradável a Deus e não às pessoas. Tal ponto fica ainda mais claro quando, no §2 fica manifestado no CIC:

§ 2. Esse culto se realiza quando é exercido em nome da Igreja por pessoas legitimamente a isso destinadas e por atos aprovados pela autoridade da Igreja.

Sobre esse segundo parágrafo manifestaremos em momento oportuno uma vez que será necessário um aprofundamento muito maior.

Por fim, no §1 há quase que uma cópia resumida do n. 7 da Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium e deixa clara a inseparável unidade entre culto e santificação.

7. Para realizar tão grande obra, Cristo está sempre presente na sua Igreja, especialmente nas ações litúrgicas. Está presente no sacrifício da Missa, quer na pessoa do ministro - «O que se oferece agora pelo ministério sacerdotal é o mesmo que se ofereceu na Cruz» -quer e sobretudo sob as espécies eucarísticas. Está presente com o seu dinamismo nos Sacramentos, de modo que, quando alguém batiza, é o próprio Cristo que batiza. Está presente na sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura. Está presente, enfim, quando a Igreja reza e canta, Ele que prometeu: «Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles» (Mt. 18,20).
Em tão grande obra, que permite que Deus seja perfeitamente glorificado e que os homens se santifiquem, Cristo associa sempre a si a Igreja, sua esposa muito amada, a qual invoca o seu Senhor e por meio dele rende culto ao Eterno Pai.
Com razão se considera a Liturgia como o exercício da função sacerdotal de Cristo. Nela, os sinais sensíveis significam e, cada um à sua maneira, realizam a santificação dos homens; nela, o Corpo Místico de Jesus Cristo - cabeça e membros - presta a Deus o culto público integral.
Portanto, qualquer celebração litúrgica é, por ser obra de Cristo sacerdote e do seu Corpo que é a Igreja, ação sagrada por excelência, cuja eficácia, com o mesmo título e no mesmo grau, não é igualada por nenhuma outra ação da Igreja.

Ali, na liturgia, se encontra o exercício da função sacerdotal de Cristo que se manifesta com sinais sensíveis, cada um com seu significado que deve ser cuidado e preservado da ação externa para que possa manter sua pureza de intenção. É na liturgia que esses sinais se manifestam para a santificação do homens o cumprimento da lei suprema da salvação das almas (cânon 1752), cada um a sua maneira tornando visível, público e integral o Corpo Místico de Cristo com sua cabeça e membros.

Por todos esses motivos a Igreja entendeu por bem preservar legalmente a celebração litúrgica em cânones próprios dentro do CIC, além da legislação específica, uma vez que ali acontece a ação sagrada por excelência e que “não é igualada por nenhuma outra ação da Igreja.”