segunda-feira, 16 de junho de 2025

O direito natural apagado do imaginário jurídico afeta a assistência religiosa.

Fazer um resgate psicológico para chegar novamente ao conceito de direito natural no imaginário das pessoas e principalmente dos juristas, é algo que parece cada vez mais distante. Ao que parece estamos em uma era de pós-positivismo o que só complica esse tipo de tentativa.

O pós-positivismo pode até ser visto como um avanço no sentido de resgatar valores e princípios que o positivismo estrito havia, de certa forma, relegado. No entanto, observa-se que o resgate do direito natural no imaginário dos juristas e da população parece cada vez mais distante. Isso aponta para o cerne da dificuldade em resolver questões como a assistência religiosa em hospitais e presídios.

 

1) O Desafio do Resgate do Direito Natural na Era Pós-Positivista 

A era pós-positivista, embora reconheça a importância dos princípios e dos valores na interpretação e aplicação do direito, muitas vezes ainda opera dentro de uma lógica que prioriza a norma posta como ponto de partida.

A busca por um fundamento axiológico, moral ou ético para a lei é presente, mas a linguagem do direito natural, com sua conotação jusnaturalista histórica, pode soar distante ou mesmo "não-científica" para uma parcela significativa da comunidade jurídica.

A secularização da sociedade e o pluralismo de valores também contribuem para a dificuldade de um consenso sobre o que constituiria um "direito natural" universalmente aceito. Se o direito natural remete a uma ordem superior ou a princípios inerentes à razão humana, a diversidade de interpretações sobre essa ordem ou sobre a própria razão pode dificultar sua aceitação como um fundamento inequívoco para a prática jurídica cotidiana.

Assim, o problema não é a ausência de um direito natural, mas a percepção e a aplicação prática desse conceito no dia a dia. Para muitos operadores do direito, mesmo pós-positivistas, o caminho mais cômodo e seguro é o da interpretação da norma positivada, ainda que buscando nela princípios implícitos ou valores constitucionais. Isso, por vezes, leva a uma "acomodação" onde a essência do direito fica submetida à forma de sua positivação.

 

2) Como a Assistência Religiosa se Encaixa Nesse Cenário 

No caso da assistência religiosa em hospitais, a situação é um exemplo emblemático dessa tensão.

O direito é claramente positivado na Constituição (art. 5º, VI), em leis federais (Lei nº 9.982/2000) e até em portarias (Portaria de Consolidação nº 1/2017 do Ministério da Saúde). A questão não é a falta de norma, mas a compreensão e a efetivação dessa norma em sua plenitude, considerando a urgência e a profundidade da necessidade que ela visa atender.

A burocracia e a rigidez na aplicação de regras sobre horários de visita para assistentes religiosos não são resultado de uma falha legislativa em si, mas de uma interpretação que não consegue ir além do texto para abraçar o espírito do direito. O desafio, portanto, reside em como traduzir a importância inegável desse direito – que é natural em sua concepção, fundamental em sua constitucionalização e essencial em sua prática – para uma linguagem que ressoe com a lógica operacional e jurídica predominante.

Talvez o caminho não seja tentar um "resgate psicológico" do direito natural em seu sentido mais clássico, mas sim fortalecer a interpretação humanizadora e principiológica dentro do próprio pós-positivismo. Isso implica enfatizar que a dignidade da pessoa humana e a liberdade de crença, embora positivadas, possuem uma carga axiológica tão poderosa que devem prevalecer sobre formalismos que as esvaziem de conteúdo. Argumentar que a rigidez burocrática leva a uma violação inconstitucional do direito fundamental e a um sofrimento desnecessário pode ser mais eficaz do que uma discussão puramente filosófica sobre o direito natural.

 

3) O Estado não concede um direito que é natural. Deve garantir seu exercício 

Entender que o direito à assistência religiosa em hospitais não é só um mero direito que o Estado em toda a sua amplitude concedeu para as pessoas, ou seja, para os seus súditos é algo essencial. Mas, que parece estar muito longe do que precisamos. Devido ao positivismo extremo as pessoas tendem a acreditar que o Estado está acima de tudo e de todos e que não existe nada que possa delimitá-lo. Entretanto o direito natural é um desses delimitadores.

Essa percepção de que o Estado e o direito positivado são a instância máxima, sem limites intrínsecos, é de fato um entrave à efetividade de direitos que, em sua essência, precedem a própria norma estatal.

 

4) O Desafio da Soberania Estatal e o Esquecimento do Direito Natural 

É fundamental entender que o direito à assistência religiosa não é uma "concessão" graciosa do Estado aos seus "súditos". Pelo contrário, trata-se de um direito inerente à condição humana, que o Estado tem o dever de reconhecer, proteger e garantir. Essa distinção é vital. Se o direito é visto como algo meramente "concedido", o Estado sente-se no direito de regulá-lo, limitá-lo e até mesmo suspendê-lo conforme sua conveniência ou sua interpretação burocrática, sem se submeter a um limite superior.

Essa visão deriva, em grande parte, de uma leitura extrema do positivismo jurídico, onde a lei válida é aquela posta pelo poder soberano do Estado, e não há autoridade superior que possa contestá-la ou delimitá-la. Nesse cenário, a Constituição se torna o ápice da pirâmide normativa, mas seu conteúdo pode ser interpretado de forma literal e restritiva, esvaziando a força de princípios que, embora positivados, têm uma raiz mais profunda.

Entretanto, o direito natural surge precisamente como um desses delimitadores inalienáveis do poder estatal. Ele argumenta que existem valores, princípios e direitos que são inerentes à natureza humana e à justiça, válidos universalmente e independentemente de serem escritos em leis. A liberdade de consciência, a dignidade, a busca por amparo espiritual – esses são direitos que, para os jusnaturalistas, não são criados pelo Estado, mas apenas por ele reconhecidos e protegidos. O Estado, portanto, não está "acima de tudo e de todos"; ele está limitado por esses direitos preexistentes.

 

5) A Consequência: Burocracia versus Dignidade 

A desconsideração ou o "esquecimento" do direito natural no imaginário jurídico e social é o que gera as "brechas legalistas" e os problemas burocráticos. Quando a assistência religiosa é tratada como um mero item de "serviço" regulado por portarias, sujeita a horários rígidos e à conveniência administrativa, ignora-se sua dimensão existencial e a urgência que ela representa para o paciente em seu momento de fragilidade máxima.

A burocracia, nesse contexto, deixa de ser uma ferramenta de organização para se tornar uma barreira à efetivação de um direito fundamental. A prioridade da "rotina hospitalar" sobre a necessidade de um último sacramento ou de uma oração de conforto em face da morte iminente não é uma falha operacional; é uma falha conceitual, um reflexo da incapacidade de reconhecer que certos direitos não podem ser subjugados à conveniência administrativa, pois sua violação atinge a própria essência da dignidade humana.

Resgatar a percepção do direito natural como um limite intrínseco ao poder do Estado e um fundamento para a interpretação de todas as leis é, sim, um desafio complexo na era pós-positivista. Contudo, é um passo essencial para garantir que a justiça e a humanidade prevaleçam sobre a mera formalidade legal, especialmente em contextos tão sensíveis como a saúde e a vida.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Assistência religiosa em hospitais negada. O que fazer, quem pode fazer, quando e onde.


No complexo ambiente hospitalar, onde a ciência médica se entrelaça com a vulnerabilidade humana, o direito à assistência religiosa transcende a mera formalidade legal, consolidando-se como uma prerrogativa essencial da dignidade da pessoa humana e da liberdade de crença, ambos direitos naturais e constitucionais.

No Brasil, a ausência de clareza nas normativas pode transformar essa prerrogativa fundamental em uma fonte de insegurança jurídica, intensificando o sofrimento psíquico e espiritual do paciente e de seus familiares. Não raro, a rigidez burocrática impede que a fé, tão vital em momentos de crise, cumpra seu papel de amparo e consolo.

 

Quem Pode Agir e Por Quê?

Quando o direito à assistência religiosa é negado ou mitigado em ambiente hospitalar, tanto o enfermo e sua família quanto o assistente religioso têm legitimidade para agir.

  • O direito à assistência religiosa é, primariamente, um direito fundamental do paciente (ou de sua vontade presumida, expressa pela família em caso de impossibilidade). A eles, a violação impacta diretamente a liberdade de crença (art. 5º, VI, da Constituição Federal de 1988), a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988) e o direito à assistência espiritual, que são bens jurídicos personalíssimos. A negativa pode causar um sofrimento psíquico e moral incalculável, especialmente em face da terminalidade.
  • O assistente religioso, por sua vez, age em representação de sua fé e em cumprimento de sua missão. A negativa de acesso viola o direito de exercer o ministério religioso em conformidade com a lei, além de frustrar o direito do fiel de receber o suporte. A violação aqui recai sobre a liberdade de exercício de culto e a garantia do direito de acesso, conforme previsto na legislação específica sobre assistência religiosa.

 

Quais Vias de Ação Podem Ser Tomadas?

Não existe um único caminho, e a escolha dependerá da urgência da situação e da gravidade da negativa à assistência.

1.      Diálogo Imediato com a Instituição Hospitalar:

o    Com quem falar: Tentar conversar com a equipe de enfermagem, o médico responsável ou, idealmente, a direção da unidade hospitalar ou a ouvidoria do hospital. É a via mais rápida para resolver uma situação pontual e urgente.

o    O que argumentar: Reforçar a previsão legal do direito à assistência religiosa, mencionando expressamente a Lei Federal nº 9.982, de 14 de julho de 2000, que "Dispõe sobre a prestação de assistência religiosa nas entidades hospitalares públicas e privadas, bem como nos estabelecimentos prisionais civis e militares" (art. 1º), e a Portaria de Consolidação nº 1, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde, que garante o "recebimento de visita de religiosos de qualquer credo" (Art. 4º, Parágrafo Único, XIV). Deve-se, também, salientar a necessidade do paciente, especialmente se a situação for de urgência ou fim de vida, onde a restrição poderia configurar lesão à dignidade.

2.      Denúncia Formal aos Órgãos de Controle e Fiscalização:

o    Ministério Público: O Ministério Público, em suas esferas estadual e federal (MPF), tem o papel de defensor da ordem jurídica e dos direitos sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da Constituição Federal). Denúncias de violação à assistência religiosa podem ser encaminhadas a promotorias ou procuradorias de Justiça especializadas em Direitos Humanos ou Defesa da Saúde, com base na violação do direito à liberdade de religião.

o    Secretarias de Saúde: As Secretarias de Saúde (Municipal e Estadual) são responsáveis pela fiscalização das unidades de saúde sob sua jurisdição (art. 198 da Constituição Federal). Uma denúncia formal à Ouvidoria da Secretaria pode gerar uma investigação e, se for o caso, a aplicação de medidas administrativas.

o    Conselhos Profissionais: Conselhos Regionais de Medicina (CRM) e de Enfermagem (Coren) podem ser acionados para avaliar se houve alguma conduta antiética por parte de profissionais de saúde que, por ação ou omissão, impediram o exercício de um direito legalmente garantido (códigos de ética das respectivas profissões).

o    Disque 100: O Disque Direitos Humanos, coordenado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, é um canal nacional para denúncias de violações de direitos humanos, incluindo discriminação e violações de liberdade religiosa (Lei nº 12.527/2011 - Lei de Acesso à Informação, que visa a transparência e defesa de direitos).

3.      Registro de Boletim de Ocorrência (B.O.):

o    Quando fazer: Embora não haja um crime específico de "negativa de assistência religiosa", a situação pode, em tese, configurar outros tipos de crimes, como abuso de autoridade (Lei nº 13.869/2019, se a conduta for de um agente público sem respaldo legal e com finalidade específica de prejudicar ou beneficiar) ou constrangimento ilegal (art. 146 do Código Penal, se alguém for privado de sua liberdade ou do exercício de um direito mediante violência ou grave ameaça), dependendo das circunstâncias concretas. O BO serve como um registro oficial do fato e pode ser o primeiro passo para uma investigação criminal.

o    Direitos Violados no B.O.: O B.O. documentará a violação da liberdade de crença e da dignidade do paciente, o que pode ser enquadrado nas previsões constitucionais (art. 5º, VI) e nas leis específicas que garantem esse direito.

4.      Ação Judicial:

o    Em casos mais graves ou de reincidência, ou quando as vias administrativas não surtem efeito, pode ser cabível uma ação judicial, seja para garantir o acesso imediato (como um mandado de segurança, previsto no art. 5º, LXIX, da Constituição Federal, para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus ou habeas data, ou uma ação com pedido de tutela de urgência/liminar, conforme art. 300 do Código de Processo Civil), ou para buscar reparação por danos morais (art. 5º, X, da Constituição Federal, e art. 186 do Código Civil).

 

A Perspectiva do "Porquê"

Independentemente de quem tome a iniciativa, a essência do problema reside na colisão entre o direito fundamental do indivíduo de buscar conforto espiritual e a rigidez administrativa das instituições. A efetividade do direito à assistência religiosa em momentos cruciais não deveria depender da força argumentativa de um assistente religioso ou da determinação de uma família em lutar por um direito que já lhes é garantido pela Constituição Federal e por leis específicas. A humanização do cuidado e a interpretação constitucional das normas impõem que os hospitais atuem proativamente para facilitar o acesso, reconhecendo a urgência da fé que, para muitos, é tão vital quanto a urgência médica.

A ausência de clareza nas normativas que prevejam a flexibilização do acesso para assistentes religiosos em situações de urgência e terminalidade continua sendo um desafio a ser superado para a plena efetivação dos direitos fundamentais.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Assistência religiosa e as “brechas legalistas” para impedir um direito constitucional.

Quando um indivíduo se encontra na fragilidade do leito hospitalar, o direito à assistência religiosa emerge como um pilar essencial da dignidade da pessoa humana. No entanto, a ausência de clareza nas normativas pode transformar essa prerrogativa fundamental em uma fonte de insegurança jurídica, intensificando o sofrimento psíquico e espiritual do paciente e de seus familiares. Não raro, a rigidez burocrática impede que a fé, tão vital em momentos de crise, cumpra seu papel de amparo e consolo.

1) A Essência do Direito e Sua Fundamentação Normativa

A garantia da assistência religiosa em ambientes de saúde não se restringe a uma mera liberalidade institucional; ela encontra seu alicerce em múltiplos níveis do ordenamento jurídico brasileiro. Em sua tessitura mais elevada, a Constituição Federal de 1988 eleva a liberdade de crença a um patamar de direito fundamental e cláusula pétrea, irradiando seus efeitos protetivos para todas as esferas da vida civil e, notadamente, para o contexto de reclusão ou de internação hospitalar. Em conformidade com esse preceito magno, a Lei Federal nº 9.982, de 14 de julho de 2000, dispõe especificamente sobre a prestação de assistência religiosa em entidades hospitalares, tanto públicas quanto privadas, e em estabelecimentos prisionais, civis e militares. Adicionalmente, em um nível de regulamentação administrativa do Sistema Único de Saúde (SUS), a Portaria de Consolidação nº 1, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde, ao consolidar normas sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde, reforça explicitamente o direito ao "recebimento de visita de religiosos de qualquer credo". Embora essa Portaria condicione tal direito a que "não acarrete mudança da rotina de tratamento e do estabelecimento e ameaça à segurança ou perturbações a si ou aos outros" (Art. 4º, Parágrafo Único, XIV), a interpretação dessa condição deve ser sempre teleológica, buscando preservar a finalidade do direito fundamental, e não sua restrição desmedida.

2) As Consequências das "Brechas Legalistas": Violação e Angústia Injustificadas

É precisamente na lacuna operacional entre o direito fundamental assegurado pela lei e a ausência de diretrizes administrativas claras para sua efetivação que emergem as "brechas legalistas". Essas não são meras imperfeições técnicas; elas representam pontos de fragilidade que podem levar à violação do direito e à imposição de sofrimento adicional a pacientes e familiares em momentos de extrema vulnerabilidade.

Quando as normativas deixam a critério exclusivo da unidade hospitalar a definição de horários e condições de acesso para assistentes religiosos, sem contemplar a urgência da fé, abre-se espaço para interpretações restritivas que desconsideram a natureza imprevisível da doença e da morte. Em um cenário onde a vida e a morte não seguem agendas pré-estabelecidas, a imposição de horários rígidos para a entrada de assistentes religiosos, desprovida de flexibilidade para casos de urgência ou terminalidade, pode configurar um impedimento efetivo e inconstitucional do direito.

Tal restrição acarreta consequências graves: primeiro, uma violação da dignidade humana, pois nega-se o amparo espiritual no momento de maior necessidade, desrespeitando a totalidade do ser humano, que compreende dimensões físicas, psicológicas e espirituais. Segundo, um aumento do sofrimento psíquico e espiritual, pois para muitos pacientes e suas famílias, a impossibilidade de receber os últimos sacramentos, orações ou o conforto de sua fé em momentos críticos pode gerar profunda angústia, desespero e a sensação de que um direito essencial para sua concepção de salvação ou transição espiritual está sendo negado. Por fim, uma insegurança jurídica para o cidadão, visto que a ausência de clareza gera incerteza quanto à efetivação de um direito fundamental, deixando o paciente e sua família à mercê de interpretações variáveis e, por vezes, discricionárias das normas internas hospitalares.

A efetividade do direito à assistência religiosa demanda, portanto, que as normativas administrativas transcendam o mero formalismo e incorporem a sensibilidade necessária para garantir que a urgência da fé seja reconhecida e atendida. Somente assim o apoio espiritual será sempre acessível, especialmente nos momentos mais delicados da jornada de saúde do indivíduo.

  

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Assistência religiosa e as “brechas legalistas” para impedir um direito constitucional.

 

Quando um indivíduo se encontra na fragilidade do leito hospitalar, o direito à assistência religiosa emerge como um pilar essencial da dignidade da pessoa humana. No entanto, a ausência de clareza nas normativas pode transformar essa prerrogativa fundamental em uma fonte de insegurança jurídica, intensificando o sofrimento psíquico e espiritual do paciente e de seus familiares. Não raro, a rigidez burocrática impede que a fé, tão vital em momentos de crise, cumpra seu papel de amparo e consolo.

A Essência do Direito e Sua Fundamentação Normativa

A garantia da assistência religiosa em ambientes de saúde não se restringe a uma mera liberalidade institucional; ela encontra seu alicerce em múltiplos níveis do ordenamento jurídico brasileiro. Em sua tessitura mais elevada, a Constituição Federal de 1988 eleva a liberdade de crença a um patamar de direito fundamental e cláusula pétrea, irradiando seus efeitos protetivos para todas as esferas da vida civil e, notadamente, para o contexto de reclusão ou de internação hospitalar. Em conformidade com esse preceito magno, a Lei Federal nº 9.982, de 14 de julho de 2000, dispõe especificamente sobre a prestação de assistência religiosa em entidades hospitalares, tanto públicas quanto privadas, e em estabelecimentos prisionais, civis e militares. Adicionalmente, em um nível de regulamentação administrativa do Sistema Único de Saúde (SUS), a Portaria de Consolidação nº 1, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde, ao consolidar normas sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde, reforça explicitamente o direito ao "recebimento de visita de religiosos de qualquer credo". Embora essa Portaria condicione tal direito a que "não acarrete mudança da rotina de tratamento e do estabelecimento e ameaça à segurança ou perturbações a si ou aos outros" (Art. 4º, Parágrafo Único, XIV), a interpretação dessa condição deve ser sempre teleológica, buscando preservar a finalidade do direito fundamental, e não sua restrição desmedida.

As Consequências das "Brechas Legalistas": Violação e Angústia Injustificadas

É precisamente na lacuna operacional entre o direito fundamental assegurado pela lei e a ausência de diretrizes administrativas claras para sua efetivação que emergem as "brechas legalistas". Essas não são meras imperfeições técnicas; elas representam pontos de fragilidade que podem levar à violação do direito e à imposição de sofrimento adicional a pacientes e familiares em momentos de extrema vulnerabilidade.

Quando as normativas deixam a critério exclusivo da unidade hospitalar a definição de horários e condições de acesso para assistentes religiosos, sem contemplar a urgência da fé, abre-se espaço para interpretações restritivas que desconsideram a natureza imprevisível da doença e da morte. Em um cenário onde a vida e a morte não seguem agendas pré-estabelecidas, a imposição de horários rígidos para a entrada de assistentes religiosos, desprovida de flexibilidade para casos de urgência ou terminalidade, pode configurar um impedimento efetivo e inconstitucional do direito.

Tal restrição acarreta consequências graves: primeiro, uma violação da dignidade humana, pois nega-se o amparo espiritual no momento de maior necessidade, desrespeitando a totalidade do ser humano, que compreende dimensões físicas, psicológicas e espirituais. Segundo, um aumento do sofrimento psíquico e espiritual, pois para muitos pacientes e suas famílias, a impossibilidade de receber os últimos sacramentos, orações ou o conforto de sua fé em momentos críticos pode gerar profunda angústia, desespero e a sensação de que um direito essencial para sua concepção de salvação ou transição espiritual está sendo negado. Por fim, uma insegurança jurídica para o cidadão, visto que a ausência de clareza gera incerteza quanto à efetivação de um direito fundamental, deixando o paciente e sua família à mercê de interpretações variáveis e, por vezes, discricionárias das normas internas hospitalares.

A efetividade do direito à assistência religiosa demanda, portanto, que as normativas administrativas transcendam o mero formalismo e incorporem a sensibilidade necessária para garantir que a urgência da fé seja reconhecida e atendida. Somente assim o apoio espiritual será sempre acessível, especialmente nos momentos mais delicados da jornada de saúde do indivíduo.

 

terça-feira, 3 de junho de 2025

Assistência religiosa não é uma mera formalidade legal.

No cenário hospitalar, onde a ciência médica se entrelaça com a vulnerabilidade humana, o direito à assistência religiosa transcende a mera formalidade legal, consolidando-se como uma prerrogativa essencial da dignidade da pessoa humana e da liberdade de crença. Em uma nação com a vasta e plural religiosidade do Brasil, a dimensão espiritual e a fé representam, para incontáveis indivíduos, um pilar inestimável de suporte psíquico e emocional diante do sofrimento, da enfermidade e da finitude da existência.

A Essência Inalienável do Direito e Sua Ampla Fundamentação Normativa

A garantia da assistência religiosa em ambientes de cuidado à saúde não se restringe a uma mera liberalidade institucional ou a uma concessão administrativa; ela encontra seu alicerce em múltiplos níveis do ordenamento jurídico brasileiro. Em sua tessitura mais elevada, a Constituição Federal de 1988 eleva a liberdade de crença a um patamar de direito fundamental e cláusula pétrea, irradiando seus efeitos protetivos para todas as esferas da vida civil e, notadamente, para o contexto de reclusão ou de internação hospitalar. Em conformidade com esse preceito magno, a Lei Federal nº 9.982, de 14 de julho de 2000, dispõe especificamente sobre a prestação de assistência religiosa em entidades hospitalares, tanto públicas quanto privadas, e em estabelecimentos prisionais, civis e militares.

Em âmbito estadual uma enormidade de leis em quase todos os Estados reitera e aprofunda essa garantia, consolidando a matéria no âmbito do Estado. Adicionalmente, em um nível de regulamentação administrativa do Sistema Único de Saúde (SUS), a Portaria de Consolidação nº 1, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde, ao consolidar normas sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde, reforça explicitamente o direito ao "recebimento de visita de religiosos de qualquer credo" (artigo 6º, VIII). Embora essa Portaria condicione tal direito a que "não acarrete mudança da rotina de tratamento e do estabelecimento e ameaça à segurança ou perturbações a si ou aos outros" (Art. 4º, Parágrafo Único, XIV), a interpretação dessa condição deve ser sempre teleológica, buscando preservar a finalidade do direito fundamental.

A Dimensão Profunda da Fé no Processo de Cuidado e as Consequências das Lacunas Operacionais

Para o indivíduo hospitalizado, a fé e a espiritualidade não constituem meros acessórios; são, frequentemente, componentes intrínsecos de sua identidade, de sua resiliência e de seu bem-estar integral. Em face da vulnerabilidade imposta pela doença grave ou crônica, e da confrontação com a própria finitude, a presença e o suporte de um assistente religioso oferecem um consolo existencial que transcende o âmbito da terapêutica convencional. Esse amparo auxilia no processamento da dor, na busca por sentido, na expressão de arrependimentos, na realização de ritos de passagem essenciais para sua cosmogonia, ou simplesmente na presença compassiva que alivia a solidão e o medo.

É nesse contexto de profunda necessidade que as "brechas legalistas" ou a carência de detalhamento operacional nas normativas, que por vezes transferem para as unidades hospitalares a prerrogativa quase exclusiva de definir horários e condições de acesso para assistentes religiosos, revelam-se mais do que uma mera omissão técnica. Essa delegação, sem diretrizes claras para situações de urgência e terminalidade, pode levar a uma restrição indevida e potencialmente inconstitucional de um direito fundamental. A vida e a morte não se subordinam a agendas administrativas ou a horários fixos de visitação.

Impedir ou dificultar o acesso a esse suporte espiritual em momentos cruciais de um processo de saúde-doença, sob a égide de uma interpretação excessivamente rígida da "rotina hospitalar", pode configurar uma limitação arbitrária de um direito fundamental. Tal conduta desconsidera a urgência intrínseca da dimensão espiritual que, para muitos, se manifesta com maior intensidade justamente quando a vida se aproxima de seu desfecho. A efetividade plena do direito à assistência religiosa demanda, portanto, uma interpretação e aplicação das normas que sejam permeadas pela sensibilidade, pela humanização e pelo reconhecimento da premente necessidade humana de amparo espiritual, que não se submete a meras conveniências administrativas. A dignidade do paciente exige que sua fé seja respeitada e facilitada em todos os momentos, especialmente nos mais delicados.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Assistência religiosa e os desafios além da constitucionalidade.

 

Em momentos de fragilidade humana, como a doença e a iminência da morte, a assistência religiosa assume um papel que transcende o mero legalismo, tocando a essência da dignidade e da liberdade individual. No Brasil, embora a Constituição de 1988 em seu artigo 5, VI e VII e leis como a Federal Nº 9.982/2000 e tantas outras estaduais garantam o direito à assistência religiosa em hospitais e presídios, a prática revela uma complexidade que vai muito além da letra fria da lei.

O Direito que Transcende o Legalismo

O direito à assistência religiosa não é apenas uma prerrogativa jurídica; ele é um direito fundamental e pétreo, enraizado na própria natureza humana e na profunda religiosidade de nossa população. Para milhões de brasileiros, a fé é um pilar essencial que oferece consolo, esperança e um senso de propósito diante do sofrimento e da finitude. Em um leito hospitalar, a busca por significado na vida e na morte, a necessidade de ritos de passagem e a crença na salvação espiritual tornam a presença de um ministro religioso não apenas um conforto, mas uma necessidade vital.

A Lacuna da Prática e Suas Consequências

As normativas existentes, como a Portaria de Consolidação nº 1/2017 do Ministério da Saúde (artigo 6º, VIII), asseguram o direito à visita religiosa, desde que não "acarrete mudança da rotina de tratamento e do estabelecimento e ameaça à segurança ou perturbações". Essa ressalva, embora compreensível do ponto de vista administrativo, na prática, transfere para as unidades hospitalares a prerrogativa de definir horários e condições de acesso.

É precisamente nessa delegação que reside uma das maiores fragilidades do sistema. Em um cenário onde a vida e a morte não seguem agendas pré-estabelecidas, a imposição de horários rígidos para a entrada de assistentes religiosos pode resultar em um impedimento efetivo do direito em seus momentos de maior urgência. Negar a um paciente gravemente enfermo o suporte de sua fé nos seus últimos instantes é, em última análise, um ato que fere a dignidade humana e desconsidera a dimensão espiritual que para muitos é indissociável da sua própria existência.

Humanização e o Desafio da Efetivação

A questão, portanto, não é apenas de "lacuna legal", mas de uma brecha de sensibilidade e humanização. A burocracia e a rigidez administrativa não podem sobrepor-se ao desespero de um paciente e sua família em busca de amparo espiritual, especialmente quando o tempo é o recurso mais escasso.

Para que o direito à assistência religiosa seja plenamente efetivado, é crucial que as normativas administrativas do setor da saúde transcendam o "legalismo" e incorporem a compreensão profunda do porquê esse direito existe. Isso exigiria a elaboração de diretrizes mais claras e sensíveis que garantam o acesso irrestrito de assistentes religiosos em situações de urgência e terminalidade, sem comprometer a segurança, mas reconhecendo a prioridade da dimensão espiritual em momentos tão críticos. Somente assim o sistema de saúde poderá, de fato, acolher o indivíduo em sua totalidade, respeitando sua fé e sua dignidade até o último suspiro.

 

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Reclamação 4335/SP. Relativização da Coisa julgada pelo STF.

A Reclamação Constitucional n.º 4.335/SP, relatada pelo Min. Gilmar Mendes, é o precedente paradigmático da tese da "coisa julgada inconstitucional". Nesse caso, o STF entendeu que uma decisão judicial transitada em julgado, proferida com base em norma posteriormente declarada inconstitucional, pode ser desconstituída por meio de reclamação, com base na autoridade da decisão proferida em controle concentrado de constitucionalidade.

A partir dessa decisão, o STF reconheceu, na prática, que a declaração de inconstitucionalidade em abstrato (controle concentrado) pode anular os efeitos de decisões judiciais anteriores transitadas em julgado, caso estas tenham aplicado a norma posteriormente invalidada.

O problema dessa compreensão é que ela rompe com a lógica da segurança jurídica, promovendo uma retroação de efeitos que jamais foi admitida pelo próprio sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, que, historicamente, sempre operou com efeitos ex nunc ou modulados. A reclamação, nesse contexto, é usada não para preservar a autoridade de decisões do STF, mas para anular decisões judiciais definitivas que contrariem entendimento posterior.

Essa inversão da finalidade do instrumento constitucional da reclamação transforma a coisa julgada em elemento provisório, sujeita à revisão sempre que houver nova posição do STF. Trata-se de uma mutação profunda da natureza da jurisdição e da lógica do devido processo legal, com repercussões diretas no modelo de Estado de Direito.

A Reclamação 4335/SP abre precedente para um modelo de instabilidade sistêmica, em que a autoridade das decisões judiciais fica subordinada ao fluxo da jurisprudência constitucional. A partir desse caso, a Corte passou a admitir que mesmo sem nova ação, novo recurso ou novo fato, o simples pronunciamento do STF pode revogar o que era tido como indiscutível.

Essa concepção subverte o art. 5º, XXXVI, e também o art. 60, §4º, IV da CF, ao neutralizar uma garantia fundamental com base em instrumento processual e atribuir à Corte Suprema poderes de revogação permanente do passado jurisdicional, sem limitação procedimental ou temporal.

Assim, a Reclamação 4335/SP marca o início de uma jurisprudência que, embora travestida de defesa da Constituição, a enfraquece ao desproteger justamente as garantias que deveriam ser sua pedra angular. Neste precedente paradigmático, o STF entendeu que a decisão judicial transitada em julgado, se baseada em norma posteriormente declarada inconstitucional, pode ser atacada via reclamação, inaugurando a possibilidade da "coisa julgada inconstitucional".

terça-feira, 20 de maio de 2025

A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA: UMA CRÍTICA CONSTITUCIONAL AO ENTENDIMENTO DO STF

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Resumo

O presente artigo busca examinar criticamente a relativização da coisa julgada à luz da jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal (STF), com ênfase nos Temas 881 e 885 e na Reclamação 4335/SP.

A análise parte do pressuposto de que a coisa julgada é um direito fundamental protegido expressamente pelo art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988, e que sua relativização compromete a segurança jurídica, a estabilidade das relações jurídicas e o próprio Estado de Direito.

Ao final, sustenta-se que a interpretação dada pelo STF é inconstitucional por violar garantias fundamentais e desfigurar o papel contramajoritário e magno da Constituição.

1. Introdução

A coisa julgada sempre foi considerada um dos pilares do processo civil, não apenas como instituto técnico, mas como garantidora da estabilidade das decisões judiciais e da segurança jurídica afinal, sem ela não há como garantir nada do ponto de vista jurídico e tudo pode ser revisto a qualquer tempo. No entanto, a partir de entendimentos recentes do STF, notadamente nos Temas 881 e 885, tem-se permitido a desconstituição de decisões transitadas em julgado em nome da supremacia da Constituição e da jurisprudência vinculante. Este artigo visa demonstrar que essa postura, embora fundada em preocupações legítimas, é tecnicamente inconstitucional.

2. A Coisa Julgada como Garantia Constitucional

2.1 Texto Constitucional e Cláusula Pétrea

O artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988 dispõe:

"A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada."

A linguagem é direta e categórica, e insere a proteção à coisa julgada no rol dos direitos e garantias fundamentais. Não há muita margem para interpretações visto que o texto é bem taxativo. Por isso, está abarcada pela cláusula pétrea prevista no art. 60, §4º, inciso IV, da própria Constituição, que impede a deliberação de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais.

"Art. 60, §4º, IV – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e garantias individuais."

O conceito de cláusula pétrea se refere a um núcleo essencial da Constituição que não pode ser alterado nem mesmo por emenda constitucional. Funciona como uma barreira à mutação constitucional e ao arbítrio dos poderes constituídos, sejam eles de qualquer dos três Poderes. Todos podem tentar mudar a Constituição via Emenda Constitucional, seja especificamente pelo Augusto STF por meio de interpretações que fogem à originalidade pretendida pela Constituição.

A doutrina majoritária entende que esses dispositivos representam limites materiais ao poder de reforma, preservando a identidade da Constituição.

Joaquim José Gomes Canotilho explica que as cláusulas pétreas funcionam como garantias contra a tirania da maioria e asseguram a continuidade do projeto constitucional. Já Ingo Wolfgan Sarlet entende que os direitos fundamentais, sobretudo os processuais, constituem expressão do mínimo existencial da cidadania constitucional.

O próprio STF, ao julgar a ADI 939/DF, reafirmou que as cláusulas pétreas são expressões materiais do Estado de Direito e que sua proteção não se limita ao texto literal, mas alcança também o conteúdo essencial das garantias constitucionais.

Portanto, a proteção à coisa julgada deve ser compreendida como um conteúdo intangível da Constituição, que não pode ser restringido por interpretações judiciais, sob pena de se permitir que o próprio Poder Judiciário se torne um agente de reforma constitucional informal (uma assembleia constituinte não eleita). Ao relativizar a coisa julgada, o STF viola não apenas o art. 5º, XXXVI, mas também o art. 60, §4º, IV, ambos integrantes do bloco de constitucionalidade de defesa das garantias fundamentais.

"A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada."

Trata-se de uma disposição expressa, sem margem para relativizações ou exceções, protegida por cláusula pétrea (art. 60, §4º, IV). A coisa julgada não é mera técnica processual: é elemento estruturante do Estado Democrático de Direito.

2.2 A Função Contramajoritária da Constituição

A função contramajoritária da Constituição consiste em garantir a supremacia dos direitos fundamentais e das normas constitucionais mesmo diante da vontade das maiorias políticas ou sociais momentâneas. Essa função se expressa especialmente nas cláusulas pétreas, nos direitos fundamentais e na atuação do Poder Judiciário como guardião da Constituição. Seu papel é proteger os indivíduos e as minorias contra eventuais abusos legislativos ou decisões populistas que comprometam valores estruturantes do Estado de Direito.

Segundo o próprio ministro Luis Roberto Barroso do STF:

“a função contramajoritária da Constituição encontra sua razão de ser na necessidade de preservar o núcleo essencial de direitos e garantias, mesmo quando esses direitos são impopulares ou quando há maioria circunstancial contrária à sua preservação.” [2]

Trata-se, assim, de um limite material ao poder político, de modo a assegurar a integridade dos valores constitucionais.

Mais uma vez Joaquim José Gomes Canotilho também destaca que:

“a rigidez constitucional e a função contramajoritária são elementos indissociáveis do constitucionalismo contemporâneo.”[3]

Sem essa função, a Constituição deixa de ser instrumento de limitação do poder e passa a ser objeto da sua manipulação.

Nesse contexto, a coisa julgada — protegida pelo art. 5º, XXXVI da CF/88 — representa um mecanismo de contenção do arbítrio estatal, inclusive do próprio Poder Judiciário. É expressão do devido processo legal e do direito à estabilidade das decisões judiciais. Permitir sua relativização significa abrir caminho para que decisões majoritárias ou interpretações conjunturais tenham o poder de desfazer direitos já definitivamente reconhecidos pelo Judiciário.

Ronald Dworkin já mencionava isso em sua obra no final dos anos 70 do século XX:

“Os direitos individuais são trunfos que os indivíduos possuem contra a maioria.”[4]

No caso concreto analisado (Temas 881 e 885 e Reclamação 4335/SP), a função contramajoritária da Constituição não foi respeitada, pois o STF, ao admitir a relativização da coisa julgada em nome da supremacia da sua própria jurisprudência, atua como poder reformador da Constituição, sem respaldo no texto constitucional. O Judiciário, que deveria limitar o poder, passa a ampliá-lo sobre os próprios direitos fundamentais que deveria proteger. Em vez de exercer sua função contramajoritária, o STF adere à lógica majoritária da conveniência institucional, minando a estabilidade do ordenamento jurídico.

Esse tipo de atuação gera um paradoxo: o guardião da Constituição torna-se agente de sua erosão. O Judiciário, ao interpretar a Constituição em desconformidade com sua literalidade e seus princípios estruturantes, compromete não apenas a coisa julgada, mas o próprio pacto constitucional fundante.

3. Jurisprudência do STF: Temas 881, 885 e Reclamação 4335/SP

3.1 Tema 881

No julgamento do Recurso Extraordinário n.º 949.297/CE, o Supremo Tribunal Federal firmou a seguinte tese de repercussão geral no Tema 881:

"As decisões do STF em controle concentrado ou em repercussão geral devem ser observadas pelos juízes e tribunais, ainda que em detrimento da coisa julgada."

Essa formulação representa, na prática, a autorização para que decisões judiciais transitadas em julgado — que já produziram todos os seus efeitos e se tornaram definitivas — possam ser desconstituídas em razão de posterior entendimento firmado pelo STF, seja no controle concentrado de constitucionalidade, seja em sede de repercussão geral.

A consequência direta da tese é a relativização da coisa julgada, não por força de alteração normativa constitucional, mas por decisão jurisprudencial superveniente. Isso implica dizer que o STF criou, por via interpretativa, uma hipótese nova de rescindibilidade da coisa julgada, fora das hipóteses taxativamente previstas no art. 966 do CPC/2015 e, pior, em violação direta ao art. 5º, XXXVI da Constituição Federal, que garante a coisa julgada como cláusula pétrea.

O problema central é que essa decisão não é compatível com o regime constitucional brasileiro, em que a coisa julgada se encontra protegida contra a atuação legislativa e, com mais razão, contra a atuação jurisdicional extemporânea. Ao permitir que entendimentos posteriores revoguem decisões já estabilizadas, o STF está relativizando um direito fundamental consagrado textualmente e intangível por força do art. 60, §4º, IV da CF/88.

Essa relativização produz efeitos gravíssimos de insegurança jurídica. Situações concretas ilustram isso:

a) Um contribuinte que teve reconhecido, por decisão transitada em julgado, o direito de não pagar determinado tributo, pode ser surpreendido anos depois com a exigência retroativa desse mesmo tributo, em razão de nova tese firmada pelo STF. Claro que o oposto também é verdadeiro, contudo alguém tem alguma dúvida de que isso nunca vai acontecer?

b) Um servidor público que teve seu direito reconhecido por sentença definitiva pode ter sua aposentadoria questionada com base em nova orientação jurisprudencial que vier posteriormente;

c) Empresas que deixaram de recolher encargos com base em decisão judicial com coisa julgada passam a ser cobradas retroativamente, com juros e multa, em cenário de absoluta insegurança.

Além de injusto, esse cenário enfraquece o valor da jurisdição como instrumento de pacificação social e compromete o próprio papel do Poder Judiciário. A coisa julgada, concebida como garantia do jurisdicionado contra a eternização de litígios e contra a instabilidade decisória, torna-se frágil, instável e relativizável por critérios alheios ao devido processo legal.

A tese do Tema 881 rompe com o princípio da segurança jurídica, que é estruturante do Estado de Direito, e também com o princípio da irretroatividade da norma mais gravosa, pois permite que decisões posteriores impactem fatos consumados à luz da jurisprudência então vigente. É, portanto, uma violação múltipla à Constituição: ao art. 5º, XXXVI (coisa julgada), ao art. 60, §4º, IV (cláusula pétrea) e ao devido processo legal substancial (art. 5º, LIV).

Em suma, o Tema 881 inaugura uma lógica segundo a qual nenhuma decisão é, de fato, definitiva, pois está sempre sujeita à revisão por mudança de entendimento jurisprudencial. Essa concepção desfigura o próprio conceito de coisa julgada, transforma o STF em instância recursal eterna e compromete a credibilidade do sistema judicial como um todo.

"As decisões do STF em controle concentrado ou em repercussão geral devem ser observadas pelos juízes e tribunais, ainda que em detrimento da coisa julgada."

O entendimento permite que uma decisão judicial definitiva perca sua eficácia caso contrarie tese posterior do STF.

3.2 Tema 885

No julgamento do Recurso Extraordinário n.º 955.227/SP, o Supremo Tribunal Federal fixou a tese de repercussão geral referente ao Tema 885, com a seguinte redação:

"É legítima a revisão de decisão transitada em julgado, mesmo em desfavor do contribuinte, quando contrária à tese posteriormente firmada em controle concentrado de constitucionalidade ou em sede de repercussão geral."

Esse entendimento, alinhado ao Tema 881, reafirma a possibilidade de que sentenças definitivas possam ser desconstituídas em razão de evolução jurisprudencial. A particularidade do Tema 885 está no seu impacto tributário direto, já que trata expressamente da possibilidade de cobrança retroativa de tributos anteriormente afastados com base em decisão judicial transitada em julgado.

Ao afirmar que é legítima a revisão de decisões definitivas com base em entendimento superveniente do STF, inclusive quando essas decisões beneficiaram o contribuinte, o Tribunal rompe com o princípio da irretroatividade tributária, subverte o art. 150, III, "a" da CF/88 e agrava a instabilidade jurídica no campo fiscal.

Consequência prática direta: contribuintes que confiaram na estabilidade de sentenças favoráveis — por exemplo, para não recolher determinada exação — podem ser cobrados retroativamente, com juros, correção monetária e, eventualmente, penalidades (não precisamos poupar a imaginação quando se trata da fome arrecadatória). Essa medida compromete:

a) O planejamento financeiro de empresas;

b) A boa-fé dos contribuintes que confiaram em decisões transitadas em julgado;

c) O princípio da isonomia, já que os contribuintes que ajuizaram ações são tratados de forma distinta dos que não o fizeram.

Além disso, tal entendimento também ignora a cláusula pétrea do art. 5º, XXXVI da Constituição, que resguarda a coisa julgada contra retrocessos normativos ou institucionais. O argumento da necessidade de proteger o interesse público e a arrecadação não justifica, sob o ponto de vista constitucional, a eliminação de um direito fundamental. A Constituição não autoriza a supressão da coisa julgada nem mesmo por emenda constitucional — com mais razão, não o pode fazer por decisão judicial.

O Tema 885, ao permitir que o Fisco reabra discussões encerradas com trânsito em julgado, enfraquece a função protetiva da jurisdição, esvazia o instituto da coisa julgada e consolida o risco de que nenhuma decisão judicial seja realmente definitiva. Ainda mais grave: cria-se uma situação de desigualdade estrutural entre o Estado e o cidadão, invertendo a lógica do processo justo e do equilíbrio entre as partes.

3.3 Reclamação 4335/SP

A Reclamação Constitucional n.º 4.335/SP, relatada pelo Min. Gilmar Mendes, é o precedente paradigmático da tese da "coisa julgada inconstitucional". Nesse caso, o STF entendeu que uma decisão judicial transitada em julgado, proferida com base em norma posteriormente declarada inconstitucional, pode ser desconstituída por meio de reclamação, com base na autoridade da decisão proferida em controle concentrado de constitucionalidade.

A partir dessa decisão, o STF reconheceu, na prática, que a declaração de inconstitucionalidade em abstrato (controle concentrado) pode anular os efeitos de decisões judiciais anteriores transitadas em julgado, caso estas tenham aplicado a norma posteriormente invalidada.

O problema dessa compreensão é que ela rompe com a lógica da segurança jurídica, promovendo uma retroação de efeitos que jamais foi admitida pelo próprio sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, que, historicamente, sempre operou com efeitos ex nunc ou modulados. A reclamação, nesse contexto, é usada não para preservar a autoridade de decisões do STF, mas para anular decisões judiciais definitivas que contrariem entendimento posterior.

Essa inversão da finalidade do instrumento constitucional da reclamação transforma a coisa julgada em elemento provisório, sujeita à revisão sempre que houver nova posição do STF. Trata-se de uma mutação profunda da natureza da jurisdição e da lógica do devido processo legal, com repercussões diretas no modelo de Estado de Direito.

A Reclamação 4335/SP abre precedente para um modelo de instabilidade sistêmica, em que a autoridade das decisões judiciais fica subordinada ao fluxo da jurisprudência constitucional. A partir desse caso, a Corte passou a admitir que mesmo sem nova ação, novo recurso ou novo fato, o simples pronunciamento do STF pode revogar o que era tido como indiscutível.

Essa concepção subverte o art. 5º, XXXVI, e também o art. 60, §4º, IV da CF, ao neutralizar uma garantia fundamental com base em instrumento processual e atribuir à Corte Suprema poderes de revogação permanente do passado jurisdicional, sem limitação procedimental ou temporal.

Assim, a Reclamação 4335/SP marca o início de uma jurisprudência que, embora travestida de defesa da Constituição, a enfraquece ao desproteger justamente as garantias que deveriam ser sua pedra angular. Neste precedente paradigmático, o STF entendeu que a decisão judicial transitada em julgado, se baseada em norma posteriormente declarada inconstitucional, pode ser atacada via reclamação, inaugurando a possibilidade da "coisa julgada inconstitucional".

4. Argumentos a favor da relativização

4.1 Supremacia da Constituição

Os defensores da relativização da coisa julgada partem da premissa de que a Constituição ocupa o topo da hierarquia normativa do ordenamento jurídico brasileiro, devendo prevalecer sobre qualquer outra norma ou ato, inclusive decisões judiciais. Dessa forma, entendem que decisões judiciais transitadas em julgado que contrariem frontalmente normas constitucionais ou interpretações vinculantes do STF devem ser corrigidas, ainda que em detrimento da coisa julgada. A segurança jurídica parece ficar fora do contexto para essa tese a favor.

Esse argumento se ancora na ideia de que a Constituição é a norma fundamental do sistema, como realmente o é, (conforme a teoria kelseniana) e que, por isso, nenhum ato estatal pode subsistir se for inconstitucional, ainda que se trate de decisão judicial coberta pela coisa julgada.

Hans Kelsen já nos informava em sua Teoria pura do Direito que:

“A norma fundamental não é posta, ela é pressuposta como condição de toda a imposição do direito”[5]

Contudo, essa compreensão ignora que a própria Constituição protege expressamente a coisa julgada como garantia fundamental (art. 5º, XXXVI) e, portanto, não pode haver hierarquia interna que autorize o sacrifício de um direito fundamental em nome da própria supremacia constitucional. Em outras palavras, a supremacia da Constituição não pode ser usada como argumento para violar a própria Constituição, sob pena de paradoxalmente se destruírem os direitos que ela pretende resguardar.

4.2 Efetividade do controle concentrado

Outro argumento utilizado é o de que o STF, como guardião da Constituição (art. 102, caput, da CF), deve garantir que suas decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade ou em repercussão geral tenham efetividade plena e imediata. Assim, decisões judiciais anteriores que estejam em desacordo com esses entendimentos devem ser afastadas, mesmo que cobertas pela coisa julgada.

A lógica é a de que não faria sentido atribuir efeito vinculante às decisões do STF se estas não pudessem prevalecer sobre decisões judiciais contrárias, mesmo que definitivas. Para os defensores dessa posição, permitir a subsistência de decisões que afrontam a atual leitura constitucional enfraqueceria o papel do Supremo como intérprete máximo da Constituição e comprometeria a unidade do direito.

Gilmar Ferreira Mendes, ministro do STF, ao tratar dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, afirma que:

“A declaração de inconstitucionalidade, em regra, opera efeitos ex tunc, isto é, retroage à data de vigência do ato declarado inconstitucional.”[6]

No entanto, esse raciocínio esvazia a função da coisa julgada como instrumento de pacificação social e cria uma instabilidade permanente, em que decisões judiciais podem ser revistas indefinidamente, sempre que houver mudança na jurisprudência. A jurisprudência, por sua natureza, é dinâmica, e submeter a coisa julgada às oscilações interpretativas compromete a previsibilidade e a confiança no sistema jurídico. A efetividade do controle de constitucionalidade não pode ser construída ao custo da destruição da segurança jurídica.

4.3 Interesse público e economia

Por fim, a defesa da relativização também se apoia no argumento de que a manutenção de decisões inconstitucionais transitadas em julgado pode gerar prejuízos relevantes ao interesse público, especialmente na seara tributária. Situações em que o contribuinte obtém decisões favoráveis à não incidência de tributos, posteriormente julgados constitucionais pelo STF, são frequentemente citadas como exemplo de desequilíbrio orçamentário e violação da isonomia tributária.

A ideia é que o Estado deve poder reaver receitas indevidamente perdidas e restaurar a ordem constitucional, ainda que para isso seja necessário superar decisões definitivas. A coletividade não pode arcar com o ônus de decisões judiciais que se demonstraram inconstitucionais, dizem os defensores desse ponto de vista.

Contudo, esse raciocínio parte de uma concepção utilitarista e consequencialista do Direito, que não encontra amparo no texto constitucional. A Constituição não admite a supressão de garantias fundamentais com base em argumentos de conveniência financeira ou administrativa. O interesse público, embora relevante, não se sobrepõe automaticamente aos direitos fundamentais, pois, se assim o fosse, qualquer direito poderia ser sacrificado em nome da razão de Estado.

A adoção desse tipo de raciocínio abre precedente perigoso: se a eficiência fiscal justifica a quebra da coisa julgada hoje, amanhã poderá justificar a suspensão de outros direitos, como o devido processo legal, a ampla defesa ou o direito de propriedade. A Constituição não é um instrumento de conveniência, mas um limite ao poder. Especialmente em matéria tributária, a manutenção de sentenças inconstitucionais causaria desequilíbrio orçamentário e injustiças fiscais.

5. Críticas à relativização da coisa julgada

5.1 Violação ao art. 5º, XXXVI da CF

A relativização da coisa julgada confronta diretamente o texto expresso do art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988:

"A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada."

A proteção à coisa julgada não é meramente programática ou simbólica — ela está inserida no catálogo dos direitos e garantias fundamentais e, portanto, goza da proteção da cláusula pétrea prevista no art. 60, §4º, IV da CF, que impede a deliberação de emendas constitucionais tendentes a abolir direitos e garantias individuais. Isso significa que nem mesmo o poder constituinte derivado pode revogar essa garantia, quanto mais o Judiciário, por interpretação extensiva.

José Rogério Cruz e Tucci na obra Segurança jurídica e coisa julgada: eficácia temporal da sentença civil e seus limites objetivos e subjetivos defende que "a intangibilidade da coisa julgada representa um dos elementos fundantes do Estado de Direito e da própria noção de processo justo".

Caso ilustrativo para entender a profundidade do problema: Imagine-se um servidor público que teve reconhecido judicialmente, por decisão transitada em julgado, o direito à incorporação de gratificação em sua aposentadoria. Anos depois, o STF fixa tese em sentido contrário e, com base nela, o Estado busca rever os proventos do servidor, provavelmente com juros e correção monetária, quem sabe até multa. Essa conduta não apenas viola a coisa julgada, mas também compromete a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF) e a confiança legítima, para não mencionar a segurança jurídica.

5.2 Fragilização da segurança jurídica

A segurança jurídica é princípio estruturante do Estado de Direito (art. 1º, caput, da CF) e se manifesta na previsibilidade, estabilidade e confiança no ordenamento jurídico. A relativização da coisa julgada desestrutura esse princípio, pois torna incerta a definitividade das decisões judiciais.

Lênio Streck aponta em sua obra Jurisdição constitucional e decisão jurídica: entre a política e o direito que

"o Direito não pode ser uma promessa não cumprida: se a decisão judicial não é mais definitiva, o Direito deixa de cumprir sua função pacificadora".[7]

Exemplo prático disso é a seguinte situação: Empresas que obtiveram decisão transitada em julgado afastando determinada exigência tributária (ex.: contribuição previdenciária sobre parcelas indenizatórias) podem, anos depois, ser compelidas a pagar o tributo com efeitos retroativos. Isso desincentiva o uso do Judiciário e destrói a confiabilidade da tutela jurisdicional.

Além disso, art. 6º do CPC/2015 estabelece que o processo deve garantir "a duração razoável do processo e a segurança jurídica". Como garantir segurança se toda decisão pode ser revista indefinidamente?

5.3 Risco de retroatividade judicial

A jurisprudência que relativiza a coisa julgada rompe com o princípio da irretroatividade, estabelecido no art. 5º, XXXVI, e também no art. 150, inciso III, alínea "a", da CF, no campo tributário:

"É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os instituiu ou aumentou."

A mesma lógica deve valer para decisões judiciais: um novo entendimento não pode retroagir para desfazer efeitos produzidos sob a égide de decisões válidas à época em que proferidas.

Exemplo concreto da situação: Após o julgamento da tese de repercussão geral (Tema 69 do STF), que afastou a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/COFINS, o STJ estabeleceu a limitação temporal dos efeitos da decisão, para proteger a segurança jurídica e evitar colapso fiscal. O mesmo raciocínio deveria ser aplicado à coisa julgada, pois sua quebra retroativa afeta expectativas legítimas e compromissos jurídicos consolidados.

5.4 Subversão do papel do STF

A Constituição outorga ao STF a função de guardião da Constituição (art. 102 da CF), não de poder constituinte permanente como parece ser o caso atual. Ao relativizar a coisa julgada sem previsão normativa, o STF extrapola os limites de sua competência e atua como legislador e reformador da própria Constituição.

Canotilho em sua obra Direito constitucional e teoria da constituição alerta que o Judiciário não pode ser "revisor informal do texto constitucional sob o pretexto de realizar sua máxima efetividade".

Exemplo ilustrativo é a Corte Suprema passar a ter o poder de invalidar qualquer decisão, de qualquer juiz ou tribunal, a qualquer tempo, com base em mutações interpretativas. Isso retira dos demais tribunais sua função jurisdicional própria e centraliza, de forma autoritária, todo o poder decisório no STF.

Essa prática corrompe a separação de poderes (art. 2º da CF) e inverte a lógica de controle de constitucionalidade, pois passa a permitir o controle de sentenças anteriores com base em entendimentos posteriores — sem previsão legal ou constitucional para isso.

5.5 Impactos econômicos e institucionais

A quebra da coisa julgada gera impactos profundos nas relações contratuais, fiscais, previdenciárias e trabalhistas, impondo insegurança e instabilidade às instituições públicas e privadas. Além dos prejuízos diretos aos jurisdicionados, há risco sistêmico para o próprio funcionamento da Justiça, que passa a ser vista como instância provisória e falível.

Fredie Didier Jr. observa em suas obras que a autoridade da coisa julgada é tão importante quanto a própria decisão de mérito, pois sem estabilidade, não há confiança; sem confiança, não há respeito ao processo civil.

A coisa julgada, conforme conseguimos ver definido no artigo 502 do Código de Processo Civil de 2015, é a característica que faz uma decisão final ser imutável e indiscutível. Isso quer dizer que, a partir do momento que a decisão atinge o ponto em que não cabe mais nenhum recurso, ela não pode ser alterada ou discutida novamente.

A estabilidade da coisa julgada é um ponto considerado crucial para que haja garantia da segurança jurídica e confiança no sistema judicial vigente. A partir do momento em que não há mais a certeza de que as decisões finais são realmente finais, ou seja, que são definitivas, a sociedade passa a não ter mais nenhuma confiança na Justiça e, consequentemente, passa a não respeitar o processo civil e o próprio Poder Judiciário.

Exemplo prático disso será quando empresas que foram desoneradas judicialmente de determinados encargos podem, com a quebra da coisa julgada, acumular dívidas retroativas impagáveis, gerando falências em massa, demissões e quebra de contratos. O risco social cresce e, do ponto de vista institucional, a Advocacia Pública e os Tribunais serão sobrecarregados com ações revisórias, execuções fiscais reabertas e milhares de processos administrativos reanalisado. Tudo isso compromete a eficiência do sistema judicial e administrativo.

Quanto ao impacto previdenciário, temos que beneficiários de decisões favoráveis, com base nas quais se aposentaram ou receberam revisões, podem ter rendimentos reduzidos ou exigidos de volta. Isso ofende os princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF) e da proteção da confiança legítima.

Em todos os exemplos mencionados, vê-se que a relativização da coisa julgada transforma o Poder Judiciário em um sistema de revisão contínua, incompatível com os valores constitucionais da segurança, estabilidade e previsibilidade.

A coisa julgada não existe apenas para encerrar litígios: ela é a expressão do limite do poder do Estado sobre o indivíduo. Sua relativização sem critério normativo rompe a lógica do processo justo, introduzindo um regime de instabilidade permanente.

6. Direito Comparado: A coisa julgada em sistemas jurídicos semelhantes

A análise do tratamento conferido à coisa julgada em outros países com sistemas jurídicos semelhantes ao brasileiro — majoritariamente de tradição romano-germânica — permite observar que, em geral, prevalece a valorização da estabilidade das decisões judiciais e a limitação de hipóteses de revisão. A seguir, apresentam-se breves exposições sobre como alguns ordenamentos jurídicos tratam a matéria.

6.1 Alemanha

O ordenamento alemão, regido pelo Zivilprozessordnung (ZPO), considera a coisa julgada como elemento essencial para a segurança jurídica. A decisão judicial com trânsito em julgado é tida como imutável e definitiva, exceto nas hipóteses excepcionais de revisão (Wiederaufnahmeverfahren), previstas nos §§ 578 a 591 do ZPO. Essas hipóteses incluem, por exemplo, dolo da parte vencedora, falsidade documental ou descoberta de fato novo relevante — mas não incluem mudança posterior de jurisprudência ou declaração de inconstitucionalidade.

A doutrina alemã reconhece a coisa julgada como uma garantia do cidadão frente ao Estado, enfatizando sua função pacificadora e estabilizadora. O respeito à coisa julgada é condição para a legitimação do próprio Estado de Direito. Nada parecido, portanto, com o que a jurisprudência do STF tem feito no Brasil.

6.2 França

Na França, a coisa julgada é regida pelo Code de procédure civile, que estabelece que uma decisão transitada em julgado adquire a autorité de la chose jugée. Ela vincula as partes e só pode ser rescindida em hipóteses expressamente previstas pela lei, como erro material, falsidade ou fraude.

O controle de constitucionalidade é difuso e concentrado na Conseil Constitutionnel, e mesmo quando há declaração de inconstitucionalidade, os efeitos são, via de regra, prospectivos. Assim, decisões judiciais anteriores não são automaticamente invalidadas pela mutação jurisprudencial, respeitando-se a autoridade da coisa julgada.

6.3 Itália

O Código de Processo Civil italiano também valoriza fortemente a coisa julgada. A revisão de sentença (revisione) é limitada a hipóteses taxativas previstas no artigo 395 do Codice di Procedura Civile, como erro de fato, falsidade, dolo da parte vencedora ou surgimento de prova nova decisiva. Não se admite, portanto, rescisão com base em mudanças jurisprudenciais posteriores ou novas interpretações constitucionais com tem feito o STF aqui no Brasil.

A Corte Constitucional Italiana modula os efeitos de suas decisões com cuidado, e a doutrina reconhece que a revisão da coisa julgada deve ser restrita para garantir a credibilidade da jurisdição.

6.4 Portugal

O Código de Processo Civil português também trata a coisa julgada como inviolável, salvo em casos muito restritos, como dolo, coação, erro ou surgimento de documento novo (arts. 696 a 702 do CPC português). A jurisprudência do Tribunal Constitucional de Portugal reconhece a primazia dos direitos fundamentais, mas não admite a revisão de coisa julgada com base apenas em evolução jurisprudencial.

Canotilho, que é português, destaca que o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança impede que se revisitem decisões judiciais com base em alterações casuísticas de interpretação.

6.5 Estados Unidos (sistema anglo-saxão - common law)

Embora com sistema diverso, o direito norte-americano também reconhece e protege fortemente o instituto da coisa julgada sob as doutrinas de res judicata e collateral estoppel. O precedente é uma norma obrigatória, mas mesmo sua modificação não implica necessariamente a revisão de decisões passadas.

A Suprema Corte dos EUA admite a revisão de decisões transitadas em julgado em situações excepcionais, como erro processual gravíssimo, provas novas e fraude — não sendo permitida a simples revisão por mudança de interpretação jurisprudencial.

6.6 Considerações finais

O exame comparado revela que nenhum dos principais países do mundo com tradição jurídica semelhante à brasileira adota um modelo tão amplo de relativização da coisa julgada quanto o atualmente praticado pelo STF. Em todos os ordenamentos analisados, a imutabilidade da coisa julgada é vista como corolário da segurança jurídica e da limitação do poder estatal.

A prática brasileira atual, especialmente com os Temas 881 e 885 e a Reclamação 4335/SP, configura uma anomalia no direito comparado. Enquanto os demais países preservam a coisa julgada contra mutações jurisprudenciais, o Brasil trilha um caminho que, ao invés de fortalecer a Constituição, termina por enfraquecê-la em nome de uma interpretação funcional e pragmática, mas incompatível com os valores do Estado de Direito.

7. Conclusão

A relativização da coisa julgada, nos moldes praticados pelo STF, é materialmente inconstitucional. Ainda que se compreenda a necessidade de efetividade das decisões do Supremo, o caminho para compatibilizar os princípios constitucionais não pode ser a negação expressa de um direito fundamental. O Supremo, ao permitir a desconstituição de sentenças transitadas em julgado com base em entendimentos supervenientes, extrapola sua função jurisdicional e desrespeita o texto constitucional. É necessário restabelecer os limites do controle judicial e reafirmar a força normativa da Constituição como garantia verdadeira do Estado de Direito.

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[1] Advogado, Professor, Colunista em diversos sites jurídicos e de notícias, especialista em Direito Público, Mestre em Direito Canônico, Graduando em História.

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[6] MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva.

[7] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica: entre a política e o direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.