domingo, 3 de fevereiro de 2019

A fundamentação no direito romano para a perseguição dos cristãos.


Emanuel de Oliveira Costa Jr.

Estamos aqui tratando do início da era cristã até o século II, ou seja, estamos em plena época da perseguição aos cristãos antes do edito de Milão no ano de 313 que concedeu a liberdade de culto aos cristãos.

No início o cristianismo era visto pelos cidadãos romanos como uma seita do judaísmo, na visão deles alguma divergência interna teria causado a existência dos cristãos que eram levados com a mesma seriedade com que os judeus eram tratados, nem mais nem menos, apenas como mais uma religião de um povo dominado e que poderia ser tolerada caso não causasse problemas. Essa visão prosperava em Roma mesmo com as diferenças palpitantes entre cristãos e judeus e com os próprios judeus perseguindo os cristãos.

Por esse e outros motivos foi difícil para o cristianismo se impor frente ao paganismo da cultura greco-romana, não porque era uma outra religião, já que os romanos não tinham problema com isso e mais absorviam essas religiões formando uma sopa relativista de deuses que qualquer outra coisa, mas sim porque se tratava de uma religião - seita aos olhos deles - que negava os outros deuses e ainda pregava um Deus morto e ressuscitado, pobre e que exaltava os humildes. Para eles não era possível explicar a ascensão de uma crença assim e por isso era algo ameaçador, uma seita que pregava tal radicalidade moral como é o cristianismo, sem relativismo algum em um meio que já estava acostumado a acomodar o certo e o errado no mesmo ambiente sem qualquer dificuldade e que relativizava tudo conforme suas vontades momentâneas, era algo que causava preocupação. Esse era o cenário do início das perseguições, isto é, parece algo que não se poderia impedir.

Há que se perceber que as perseguições aos cristãos, no início, não tinham nenhuma fundamentação jurídica ou legislativa, apenas se baseava, conforme a maioria dos estudiosos compreende, no chamado odium generis humani (ódio ao gênero humano ou ódio a humanidade) que Tácito atribuía aos cristãos. Não existiu, portanto, durante quase dois séculos inteiros, qualquer lei emitida por algum imperador contra os cristãos.

Ainda com relação ao odium generis humani, é no mínimo curioso o motivo pelo qual os romanos consideravam que os cristãos tinham e pregavam ódio à humanidade. O império e outros tantos locais, assim como hoje a fofoca e a desinformação sempre existiu com muita força, especialmente no meio político, enfim, todos esses meios divulgavam que os cristãos praticavam o incesto isso porque, e aí fica a curiosidade pelo menos cômica, de que os cristãos se tratavam por irmãos e se casavam entre si; se amavam antes de se conhecer. Outro motivo grande para que os cristãos fossem tratados como aqueles que tem ódio pelo gênero humano é que eram canibais e praticavam sacrifício em atos rituais, isso porque dizia-se que em seus rituais (Sacrifício da Santa Missa) se comia o corpo de Deus. O fato de os cristãos exaltarem a virgindade também causou um certo problema social, afinal a sociedade romana era extremamente libertina. Essas conversas causavam tumulto entre a população que não era cristã e não conhecia o que realmente era verdade e o que não era e acabavam por achar que tudo era verdade. Essa situação causava uma certa desordem pública que, em uma das teses, eram os principais motivos alegados para autorizar a perseguição e assassinato de cristãos. Claro que, muitas vezes, essas histórias eram criadas propositalmente, outras o imaginário popular as fazia crescer para todos os lados que se pode imagina. Só não podemos deixar escapar que se tratavam de calúnias e que interessavam o império romana, fossem elas “plantadas” ou não.

Entretanto, é fato que as perseguições aconteciam. A sociedade romana tinha uma ciência jurídica muito evoluída e tal arbitrariedade em atos como a perseguição a toda uma “seita” deveria constar alguma legislação que permitisse ou pelo menos alguma tese jurídica que desse solidez a esse tipo de ato. Foi nesse sentir que vários historiadores e juristas criaram diversas teses e formularam vários estudos, e ainda criam e formulam, para entender como foi possível, juridicamente, acontecer tal perseguição dentro do império romano.

Algumas teses jurídicas que poderiam fundamentar, mesmo que não juridicamente, a perseguição aos cristãos eram, segundo alguns estudiosos: o Institutum Neronis (ou Institutum Neroniano) do qual falava Tertuliano ou o ius coertionis proposto pelo historiador Mommsen. Havia também outra teoria formulada pelo arqueólogo Le Blant que alegava o laesae maistatis.

O Institutum Neronis (ou Institutum Neroniano) afirma que esses institutos seriam um conjunto de leis especiais editadas exclusivamente para fundamentar a perseguição dos cristãos, entretanto, não seriam leis emitidas pelos imperadores. Existem alguns defensores dessa tese, especialmente o liturgista belga Calleaert que teve outros seguidores como Duchense, Monachino e Zeiller.

O ius coertionis, que é outra hipótese de fundamentação jurídica para a perseguição dos cristãos no império romano antes do imperador Sétimo Severo, foi defendida e formulada por um historiador alemão chamado Theodor Mommsen que viveu no século XIX e faleceu no início do século XX. A hipótese dizia que não havia mesmo fundamentação jurídico-legislativa, mas sim uma discricionariedade dos magistrados e outros funcionários públicos encarregados em agir conforme considerassem necessário para manter a ordem pública. Como pode ser percebido, o motivo não tem critérios realmente bem estipulados e poderia levar os magistrados a considerar qualquer coisa como motivo para a perseguição fundamentado na ordem pública que poderia ter sido quebrada pelos cristãos.

O Laesae Maistatis foi uma teoria formulada por Edmond-Frédéric Le Blant que foi um arqueólogo do século XIX. O sacrilégio de laesae maistatis e outras leis parecidas com essa que misturavam estado e religião, como era o mais comum e a única forma concebível dentro do estado romano, seria a fundamentação para a perseguição dos cristãos, haja vista que os cristãos negavam o culto aos deuses, uma vez que pregam um único e verdadeiro Deus e sempre negaram a deificação do imperador e seu consequente culto. Uma vez que os cristãos agiam dessa forma e a lei laesar maistatis, algo que fundamentou o que viria a ser a lei de lesa majestade no futuro, e outras leis parecidas já legislavam nesse sentido, estava fundamentado o crime-sacrilégio dos cristãos e, portanto, sua perseguição e terríveis penas. Essa teoria encontrou diversos adeptos já que se esses seguidores entendem que o Insitutum Neronis (ou Institutum Neroniano) aludido por Tertuliano, não poderia ser entendido como edito ou lei especial emanada dos príncipes, assim sendo, inválidas.

O que se percebe é que a problemática que esfumaça toda essa história das perseguições é devido a uma historiografia mesclada por relatos cristão e dos pagãos, documentos oficiais e testemunhos presenciais que nem sempre e confirmam, os relatos posteriormente elaborados para completar documentos e reaver outros perdidos e, as vezes, lendas criadas em torno de alguns mártires, além de tantos outros pequenos detalhes.

Fato é que existia, certamente uma série de imprecisões por parte do conhecimento dos pagãos para com os cristãos, tanto em seus hábitos como em sua crença em geral. Prova disso é o absurdo pensamento de que os cristãos odiavam o gênero humano. Por outro lado, o que se tem por parte dos cristãos não são relatos feitos oficialmente dentro do Estado, com toda a frieza que só documentos oficiais podem trazer, pelo contrário, trazem na história o relato daqueles que viveram em sua carne a perseguição, a violência e o martírio. Afinal, sabe-se que Diocleciano decretou a destruição dos escritos cristãos. Alguns puderam ser salvos inteiros ou em partes, fragmentados ou enxertados dentro de outros documentos, mas muito se perdeu de documentação que hoje poderia elucidar muito das dúvidas e lacunas históricas e jurídicas que temos.

A fundamentação jurídica para a perseguição aos cristãos só veio mesmo com o Imperador Sétimo Severo (193-211) e com Diocleciano (284-305), quando ambos editaram leis especificamente contra os cristãos usando como pretexto o fato de que eles se negavam ao culto e idolatria aos deuses e a deificação do imperador. Só então vieram leis que especificamente autorizavam e até determinavam essas perseguições que não aconteciam só com castigos e martírios físicos, mas também com uma série de sanções particulares, inclusive tributárias.

INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA.
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- Luciano de Samósata, Alexandre, o monge-oráculo.