quarta-feira, 23 de julho de 2025

A dissolução do vínculo matrimonial não consumado: Aspectos canônicos e jurisprudenciais.

 

Por Emanuel de Oliveira Costa Jr. (Advogado, professor, Presidente da UNIJUC – União dos Juristas Católicos de Goiás)

 

O matrimônio na Igreja Católica é uma instituição de profunda relevância teológica e jurídica. Compreendido como um sacramento entre batizados, ou como um contrato válido de direito natural e divino para os não batizados, o vínculo conjugal possui características de unidade e indissolubilidade. Contudo, em determinadas circunstâncias, o próprio Direito Canônico prevê a possibilidade de sua dissolução, destacando-se, nesse contexto, a dispensa do matrimônio não consumado. Este artigo busca explorar a natureza dessa dispensa, suas implicações jurídicas e as nuances conceituais que a cercam, especialmente no que tange aos casamentos com disparidade de culto.

I. O Matrimônio no Ordenamento Canônico: Vínculo e Sacramento

A Igreja Católica define o matrimônio pelo Cânon 1055, §1, como "o pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o consórcio de toda a vida, ordenado por sua própria índole natural ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, entre batizados foi elevado por Cristo Senhor à dignidade de sacramento."

Essa definição revela duas dimensões cruciais:

1.      Dimensão Natural: O matrimônio é, em sua essência, uma realidade de direito natural e divino, fundado na própria natureza humana e instituído por Deus. Isso significa que suas propriedades essenciais (unidade e indissolubilidade) e seus fins são inerentes a qualquer união conjugal válida, independentemente da fé dos contraentes. É um pacto pelo qual o homem e a mulher se entregam e se aceitam mutuamente.

2.      Dimensão Sacramental: Para que o matrimônio seja elevado à dignidade de sacramento, é indispensável que ambos os contraentes sejam batizados (Cân. 1055, §2). Um matrimônio entre dois batizados é, por definição, um sacramento, sendo chamado de "matrimônio rato" (matrimonium ratum). Se esse matrimônio sacramental for consumado, ele se torna "rato e consumado" (ratum et consummatum), adquirindo uma indissolubilidade absoluta, que "nenhuma autoridade humana pode dissolver" (Cân. 1141).

Ainda que o foco principal da atenção canônica recaia sobre o matrimônio sacramental, a Igreja reconhece e regulamenta os casamentos válidos entre batizados e não batizados, desde que obtida a necessária dispensa do impedimento de disparidade de culto (Cân. 1086). Tais uniões, embora válidas e geradoras de um vínculo legítimo, não são consideradas sacramentos.

II. A Não Consumação: Conceito e Consequências Jurídicas

A consumação do matrimônio é um ato de singular importância para o Direito Canônico. O Cânon 1061, §1, esclarece que a consumação se dá "pelo ato conjugal, realizado de modo humano, de que o matrimônio é apto por sua própria natureza para a geração da prole, ao qual os cônjuges livremente se dedicaram". Em termos práticos, refere-se à primeira realização do ato sexual completo e penetrativo após a celebração do casamento, que por si mesmo seja apto à geração da prole.

A não consumação impede que um matrimônio rato e válido se torne absolutamente indissolúvel. É justamente essa ausência de consumação que abre a porta para a possibilidade de sua dissolução, por um ato de graça pontifícia.

III. A Dispensa do Matrimônio Não Consumado (Dispensatio Super Rato)

Ao contrário da declaração de nulidade matrimonial, que reconhece que o vínculo nunca existiu validamente desde o início, a dispensa do matrimônio não consumado pressupõe a existência de um vínculo matrimonial válido que, por não ter sido consumado, pode ser dissolvido pela autoridade suprema da Igreja.

O Cânon 1142 expressa essa prerrogativa: "O matrimônio não consumado, entre batizados ou entre parte batizada e parte não batizada, pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice por justa causa, a pedido de ambas as partes ou de uma delas, mesmo que a outra não queira."

É crucial notar que essa dispensa aplica-se a:

  • Matrimônio rato e não consumado: Onde ambos são batizados, e o casamento é sacramental. A dissolução do vínculo sacramental não consumado é uma prerrogativa única do Papa.
  • Matrimônio válido com disparidade de culto e não consumado: Onde um é batizado e o outro não. Apesar de não ser sacramental, este matrimônio é válido, e a não consumação também abre a possibilidade da dispensa.

O objeto da dispensa não são meramente as "obrigações naturais" do casamento. Ao contrário, a dispensa visa e efetivamente dissolve o vínculo matrimonial em si. Isso significa que a união existente entre as duas pessoas é desfeita de forma plena e definitiva para a Igreja, permitindo que as partes contraiam um novo matrimônio canonicamente válido, caso assim desejem e as demais condições sejam atendidas.

IV. A Questão da Jurisdição em Casos de Disparidade de Culto

A discussão sobre a aplicabilidade da dispensa do vínculo a uma parte não batizada é de grande acuidade conceitual. A objeção de que a parte não batizada não está sujeita às leis meramente eclesiásticas da Igreja é, em princípio, correta (Cân. 11). No entanto, a capacidade da Santa Sé de dissolver um matrimônio válido não consumado que envolve uma parte não batizada não se baseia na submissão geral do não batizado a todas as leis canônicas.

Pelo contrário, essa autoridade deriva de um poder específico sobre o vínculo matrimonial em si, que a Igreja entende ter por instituição divina. O matrimônio, mesmo na disparidade de culto, é visto como uma instituição de direito natural e divino, e as propriedades essenciais deste vínculo (unidade e indissolubilidade) são consideradas de origem divina e natural, não meramente eclesiástica.

Assim, quando o Romano Pontífice concede a dispensa, ele age sobre uma realidade jurídica (o vínculo válido) que, por sua própria natureza, afeta ambas as partes. A dissolução do vínculo, para a Igreja, tem o efeito de liberar ambas as partes daquela união específica. Para a parte batizada, isso significa a plena liberdade para um novo matrimônio canônico. Para a parte não batizada, embora não esteja sujeita às demais leis eclesiásticas, a dispensa papal significa que, do ponto de vista da Igreja, seu casamento anterior com o católico não mais existe, o que teria implicações caso ela quisesse, no futuro, casar-se com outro católico, por exemplo. Não se trata de impor uma lei eclesiástica sobre o não batizado, mas de exercer uma prerrogativa divina sobre um vínculo válido que foi estabelecido e que envolve um fiel da Igreja. A dissolução é um ato que atinge a própria raiz da união, eliminando-a para todos os efeitos canônicos.

V. A Prova da Não Consumação: Desafios e Meios Processuais

A prova da não consumação é um dos aspectos mais delicados do processo de dispensa, dada a natureza íntima do ato conjugal. A busca da verdade, contudo, é um princípio basilar do Direito Canônico (Cân. 1526 §1), e o ordenamento prevê meios para essa apuração.

A. Depoimento das Partes

Os depoimentos da parte demandante e demandada são a base da prova. O juiz ou instrutor deve conduzir o interrogatório com a máxima discrição e sensibilidade, mas com a profundidade necessária para apurar os fatos. Perguntas específicas sobre a vida íntima, as razões para a não consumação (seja por impedimento físico, psicológico, recusa ou outros motivos), as tentativas realizadas e as reações de cada cônjuge são essenciais. A coerência interna dos relatos e a consistência entre os depoimentos de ambos os cônjuges são fatores-chave para a credibilidade.

B. Prova Testemunhal

Embora a intimidade da relação conjugal limite o conhecimento direto de terceiros, as testemunhas podem fornecer "provas morais" ou circunstanciais da não consumação. Familiares próximos, amigos íntimos ou confidentes podem depor sobre:

  • Confidências diretas de uma das partes acerca da ausência de relações ou dificuldades na intimidade.
  • Comportamentos observados no casal que sugeriam falta de intimidade (dormir em quartos separados, ausência de afeto público, queixas sobre a vida conjugal).
  • Conhecimento de problemas de saúde (físicos ou psicológicos) que pudessem impedir a consumação.
  • Admissibilidade de Parentes: É importante ressaltar que o Direito Canônico não exclui os parentes de depor (Cân. 1550 §2). A jurisprudência da Rota Romana tem reiteradamente afirmado que, embora seus depoimentos devam ser avaliados com cautela, eles não devem ser sumariamente rejeitados, especialmente em matérias que se desenrolam no âmbito familiar e das quais poucos outros teriam conhecimento. Como se lê em uma Sentença Rotalis coram Wynen, de 27 de novembro de 1980 (RR, vol. LXXII, p. 770, n. 4): "Embora os parentes das partes devam ser ouvidos com cautela, seus depoimentos não devem ser sumariamente rejeitados, especialmente quando se trata de fatos que se desenrolam no âmbito familiar e dos quais dificilmente outras pessoas teriam conhecimento." A força probatória é avaliada pelo juiz, considerando todas as circunstâncias (Cân. 1572).

C. Prova Pericial

Em casos onde a não consumação é atribuída a um impedimento físico (ex: vaginismo, anomalias físicas) ou psicológico (ex: aversão sexual grave, bloqueios), a perícia médica ou psicológica (realizada por peritos nomeados pelo Tribunal) pode ser fundamental para corroborar as alegações das partes e das testemunhas.

D. Prova Documental

Registros médicos, laudos de terapia de casais ou aconselhamento conjugal focados em disfunções sexuais ou ausência de intimidade, e até mesmo correspondências ou mensagens (com a devida cautela em relação à autenticidade e contextualização) podem ser anexados para reforçar a prova da não consumação.

VI. Conclusão

A dispensa do matrimônio não consumado, seja ele sacramental ou válido com disparidade de culto, é um instrumento do Direito Canônico que reflete a pastoralidade da Igreja e sua busca pela verdade e pelo bem das almas. Embora a prova da não consumação seja um desafio intrínseco à sua natureza íntima, o processo canônico oferece um arcabouço sólido de meios probatórios, que, quando avaliados com diligência e prudência pelo Tribunal, permitem alcançar a certeza moral necessária para a dissolução do vínculo. Compreender as distinções conceituais entre sacramento, vínculo válido de direito natural e divino, e a jurisdição da Igreja sobre esses elementos é essencial para a correta aplicação e interpretação dessa importante figura do Direito Matrimonial Canônico.

 

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