Por Emanuel de Oliveira Costa Jr. (Advogado,
professor, Presidente da UNIJUC – União dos Juristas Católicos de Goiás)
O matrimônio na Igreja Católica é uma instituição de profunda
relevância teológica e jurídica. Compreendido como um sacramento entre
batizados, ou como um contrato válido de direito natural e divino para os não
batizados, o vínculo conjugal possui características de unidade e
indissolubilidade. Contudo, em determinadas circunstâncias, o próprio Direito
Canônico prevê a possibilidade de sua dissolução, destacando-se, nesse
contexto, a dispensa do matrimônio não consumado. Este artigo busca explorar a
natureza dessa dispensa, suas implicações jurídicas e as nuances conceituais
que a cercam, especialmente no que tange aos casamentos com disparidade de
culto.
I. O Matrimônio no Ordenamento Canônico: Vínculo e Sacramento
A Igreja Católica define o matrimônio pelo Cânon 1055, §1,
como "o pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre
si o consórcio de toda a vida, ordenado por sua própria índole natural ao bem
dos cônjuges e à geração e educação da prole, entre batizados foi elevado por
Cristo Senhor à dignidade de sacramento."
Essa definição revela duas dimensões cruciais:
1. Dimensão Natural: O matrimônio é, em sua essência, uma
realidade de direito natural e divino, fundado na própria natureza humana e
instituído por Deus. Isso significa que suas propriedades essenciais (unidade e
indissolubilidade) e seus fins são inerentes a qualquer união conjugal válida,
independentemente da fé dos contraentes. É um pacto pelo qual o homem e a
mulher se entregam e se aceitam mutuamente.
2. Dimensão Sacramental: Para que o matrimônio seja elevado à
dignidade de sacramento, é indispensável que ambos os contraentes sejam
batizados (Cân. 1055, §2). Um matrimônio entre dois batizados é, por definição,
um sacramento, sendo chamado de "matrimônio rato" (matrimonium
ratum). Se esse matrimônio sacramental for consumado, ele se torna
"rato e consumado" (ratum et consummatum), adquirindo uma
indissolubilidade absoluta, que "nenhuma autoridade humana pode
dissolver" (Cân. 1141).
Ainda que o foco principal da atenção canônica recaia sobre o
matrimônio sacramental, a Igreja reconhece e regulamenta os casamentos válidos
entre batizados e não batizados, desde que obtida a necessária dispensa do
impedimento de disparidade de culto (Cân. 1086). Tais uniões, embora válidas e
geradoras de um vínculo legítimo, não são consideradas sacramentos.
II. A Não Consumação: Conceito e Consequências Jurídicas
A consumação do matrimônio é um ato de singular importância
para o Direito Canônico. O Cânon 1061, §1, esclarece que a consumação se dá
"pelo ato conjugal, realizado de modo humano, de que o matrimônio é apto
por sua própria natureza para a geração da prole, ao qual os cônjuges
livremente se dedicaram". Em termos práticos, refere-se à primeira
realização do ato sexual completo e penetrativo após a celebração do casamento,
que por si mesmo seja apto à geração da prole.
A não consumação impede que um matrimônio rato e válido se
torne absolutamente indissolúvel. É justamente essa ausência de consumação que
abre a porta para a possibilidade de sua dissolução, por um ato de graça
pontifícia.
III. A Dispensa do Matrimônio Não Consumado (Dispensatio
Super Rato)
Ao contrário da declaração de nulidade matrimonial, que
reconhece que o vínculo nunca existiu validamente desde o início, a dispensa do
matrimônio não consumado pressupõe a existência de um vínculo matrimonial
válido que, por não ter sido consumado, pode ser dissolvido pela autoridade
suprema da Igreja.
O Cânon 1142 expressa essa prerrogativa: "O matrimônio
não consumado, entre batizados ou entre parte batizada e parte não batizada,
pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice por justa causa, a pedido de ambas as
partes ou de uma delas, mesmo que a outra não queira."
É crucial notar que essa dispensa aplica-se a:
- Matrimônio
rato e não consumado: Onde ambos são batizados, e o casamento é sacramental. A dissolução
do vínculo sacramental não consumado é uma prerrogativa única do Papa.
- Matrimônio
válido com disparidade de culto e não consumado: Onde um é batizado e o outro
não. Apesar de não ser sacramental, este matrimônio é válido, e a
não consumação também abre a possibilidade da dispensa.
O objeto da dispensa não são meramente as "obrigações
naturais" do casamento. Ao contrário, a dispensa visa e efetivamente dissolve
o vínculo matrimonial em si. Isso significa que a união existente entre as
duas pessoas é desfeita de forma plena e definitiva para a Igreja, permitindo
que as partes contraiam um novo matrimônio canonicamente válido, caso assim
desejem e as demais condições sejam atendidas.
IV. A Questão da Jurisdição em Casos de Disparidade de Culto
A discussão sobre a aplicabilidade da dispensa do vínculo a
uma parte não batizada é de grande acuidade conceitual. A objeção de que a
parte não batizada não está sujeita às leis meramente eclesiásticas da Igreja
é, em princípio, correta (Cân. 11). No entanto, a capacidade da Santa Sé de
dissolver um matrimônio válido não consumado que envolve uma parte não batizada
não se baseia na submissão geral do não batizado a todas as leis canônicas.
Pelo contrário, essa autoridade deriva de um poder
específico sobre o vínculo matrimonial em si, que a Igreja entende ter por
instituição divina. O matrimônio, mesmo na disparidade de culto, é visto como
uma instituição de direito natural e divino, e as propriedades
essenciais deste vínculo (unidade e indissolubilidade) são consideradas de
origem divina e natural, não meramente eclesiástica.
Assim, quando o Romano Pontífice concede a dispensa, ele age
sobre uma realidade jurídica (o vínculo válido) que, por sua própria natureza,
afeta ambas as partes. A dissolução do vínculo, para a Igreja, tem o efeito de
liberar ambas as partes daquela união específica. Para a parte batizada,
isso significa a plena liberdade para um novo matrimônio canônico. Para a parte
não batizada, embora não esteja sujeita às demais leis eclesiásticas, a
dispensa papal significa que, do ponto de vista da Igreja, seu casamento
anterior com o católico não mais existe, o que teria implicações caso ela
quisesse, no futuro, casar-se com outro católico, por exemplo. Não se trata de
impor uma lei eclesiástica sobre o não batizado, mas de exercer uma
prerrogativa divina sobre um vínculo válido que foi estabelecido e que envolve
um fiel da Igreja. A dissolução é um ato que atinge a própria raiz da união,
eliminando-a para todos os efeitos canônicos.
V. A Prova da Não Consumação: Desafios e Meios Processuais
A prova da não consumação é um dos aspectos mais delicados do
processo de dispensa, dada a natureza íntima do ato conjugal. A busca da
verdade, contudo, é um princípio basilar do Direito Canônico (Cân. 1526 §1), e
o ordenamento prevê meios para essa apuração.
A. Depoimento das Partes
Os depoimentos da parte demandante e demandada são a base da
prova. O juiz ou instrutor deve conduzir o interrogatório com a máxima
discrição e sensibilidade, mas com a profundidade necessária para apurar os
fatos. Perguntas específicas sobre a vida íntima, as razões para a não
consumação (seja por impedimento físico, psicológico, recusa ou outros
motivos), as tentativas realizadas e as reações de cada cônjuge são essenciais.
A coerência interna dos relatos e a consistência entre os depoimentos de ambos
os cônjuges são fatores-chave para a credibilidade.
B. Prova Testemunhal
Embora a intimidade da relação conjugal limite o conhecimento
direto de terceiros, as testemunhas podem fornecer "provas morais" ou
circunstanciais da não consumação. Familiares próximos, amigos íntimos ou
confidentes podem depor sobre:
- Confidências
diretas de uma das partes acerca da ausência de relações ou dificuldades
na intimidade.
- Comportamentos
observados no casal que sugeriam falta de intimidade (dormir em quartos
separados, ausência de afeto público, queixas sobre a vida conjugal).
- Conhecimento
de problemas de saúde (físicos ou psicológicos) que pudessem impedir a
consumação.
- Admissibilidade
de Parentes: É
importante ressaltar que o Direito Canônico não exclui os parentes de
depor (Cân. 1550 §2). A jurisprudência da Rota Romana tem reiteradamente
afirmado que, embora seus depoimentos devam ser avaliados com cautela,
eles não devem ser sumariamente rejeitados, especialmente em matérias que
se desenrolam no âmbito familiar e das quais poucos outros teriam
conhecimento. Como se lê em uma Sentença Rotalis coram Wynen, de 27 de
novembro de 1980 (RR, vol. LXXII, p. 770, n. 4): "Embora os
parentes das partes devam ser ouvidos com cautela, seus depoimentos não
devem ser sumariamente rejeitados, especialmente quando se trata de fatos
que se desenrolam no âmbito familiar e dos quais dificilmente outras
pessoas teriam conhecimento." A força probatória é avaliada pelo
juiz, considerando todas as circunstâncias (Cân. 1572).
C. Prova Pericial
Em casos onde a não consumação é atribuída a um impedimento
físico (ex: vaginismo, anomalias físicas) ou psicológico (ex: aversão sexual
grave, bloqueios), a perícia médica ou psicológica (realizada por peritos
nomeados pelo Tribunal) pode ser fundamental para corroborar as alegações das
partes e das testemunhas.
D. Prova Documental
Registros médicos, laudos de terapia de casais ou
aconselhamento conjugal focados em disfunções sexuais ou ausência de
intimidade, e até mesmo correspondências ou mensagens (com a devida cautela em
relação à autenticidade e contextualização) podem ser anexados para reforçar a
prova da não consumação.
VI. Conclusão
A dispensa do matrimônio não consumado, seja ele sacramental
ou válido com disparidade de culto, é um instrumento do Direito Canônico que
reflete a pastoralidade da Igreja e sua busca pela verdade e pelo bem das
almas. Embora a prova da não consumação seja um desafio intrínseco à sua
natureza íntima, o processo canônico oferece um arcabouço sólido de meios
probatórios, que, quando avaliados com diligência e prudência pelo Tribunal,
permitem alcançar a certeza moral necessária para a dissolução do vínculo. Compreender
as distinções conceituais entre sacramento, vínculo válido de direito natural e
divino, e a jurisdição da Igreja sobre esses elementos é essencial para a
correta aplicação e interpretação dessa importante figura do Direito
Matrimonial Canônico.
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