sexta-feira, 25 de julho de 2025

A Certeza Moral no Julgamento Eclesiástico: Um Pilar da Justiça Canônica e suas Ressonâncias no Direito Secular

 Emanuel de Oliveira Costa Jr. (Advogado canonista e civil, professor, Presidente da UNIJUC – União dos Juristas Católicos de Goiás)

 

 

Em qualquer sistema jurídico, a integridade da decisão judicial repousa sobre a solidez da convicção do magistrado. No Direito Canônico, especialmente nas causas matrimoniais, fala-se frequentemente em "certeza moral" como o patamar probatório a ser alcançado pelo juiz. Longe de ser um critério subjetivo ou um mero arbítrio, essa certeza representa uma convicção robusta e racionalmente fundamentada, essencial para a declaração de um fato ou a imposição de uma obrigação. A compreensão de seus contornos é vital para assegurar que a justiça eclesiástica se fundamente em princípios de equidade e veracidade, compartilhando, inclusive, fundamentos com a formação do juízo em sistemas jurídicos seculares.

I. A Natureza da Certeza Moral no Ordenamento Canônico

A certeza moral, no contexto do Direito Canônico, não se confunde com a certeza matemática ou física, que exige a exclusão de qualquer possibilidade de erro. Em matérias que envolvem a complexidade da intenção humana, da vida íntima ou de fatos pretéritos, como as causas de nulidade matrimonial ou as dispensas por não consumação, tal grau de certeza seria inatingível. A certeza moral, portanto, é uma convicção prudencial, que se forma quando, após uma análise diligente de todas as provas e argumentos, o juiz alcança um estado de espírito no qual a dúvida razoável foi dissipada.

Esse conceito está intrinsecamente ligado ao princípio da busca da verdade, que permeia o processo canônico. O Cânon 1526, §1, do Código de Direito Canônico de 1983, prescreve que o juiz "deve procurar por todos os meios que lhes parecem idôneos a verdade, mesmo sobre fatos que não foram alegados pelas partes". Não se busca uma "verdade formal" – aquela que emerge meramente da correta aplicação das regras processuais, mas que pode não corresponder à realidade material –, mas sim a verdade substancial dos fatos, a fim de proferir uma decisão justa.

II. Os Critérios de Valoração da Prova e a Construção da Certeza Moral

A formação da certeza moral do juiz não é um processo intuitivo, mas um exercício de racionalidade jurídica pautado em critérios objetivos de valoração da prova. O Cânon 1572, ao tratar da força probatória do testemunho, oferece um guia que se estende, por analogia, à avaliação de todas as provas nos autos: "A força probatória do testemunho deve ser avaliada pelo juiz, considerando todas as circunstâncias, principalmente a honestidade do depoente e as outras pessoas de quem pode ter havido conhecimento."

Dentre os critérios que conduzem à formação da certeza moral, destacam-se:

A) Concordância e Convergência das Provas: A força probatória de um conjunto de evidências aumenta exponencialmente quando diversos elementos probatórios, mesmo de naturezas distintas (depoimentos das partes, testemunhos, laudos periciais, documentos), apontam coerentemente para a mesma conclusão. A convergência de indícios, mesmo que isoladamente não constituam prova plena, pode, em seu conjunto, edificar uma convicção robusta.

B) Coerência Interna e Externa: Cada peça probatória, especialmente os depoimentos, deve apresentar uma lógica interna, livre de contradições manifestas. Além disso, as provas devem ser coerentes com os fatos notórios, com as leis naturais e com outras evidências consideradas verídicas nos autos. Descrenças sobre a capacidade de uma testemunha ter conhecimento de um fato, por exemplo, ou inconsistências factuais em um relato, minam sua credibilidade.

C) Credibilidade das Fontes: O juiz avalia a idoneidade moral e intelectual daqueles que produzem a prova. Fatores como a honestidade do depoente, a ausência de interesse indevido na causa (animus nocendi ou lucrandi), a capacidade de percepção e rememoração dos fatos, e a ausência de motivos para deturpar a verdade são cruciais. No que tange aos parentes como testemunhas, sua admissibilidade é reconhecida (Cân. 1550, §2), mas sua credibilidade é ponderada com especial cautela. A jurisprudência da Rota Romana tem sido clara, como na Sentença coram Wynen, de 27 de novembro de 1980 (RR, vol. LXXII, p. 770, n. 4), ao afirmar que "embora os parentes das partes devam ser ouvidos com cautela, seus depoimentos não devem ser sumariamente rejeitados, especialmente quando se trata de fatos que se desenrolam no âmbito familiar e dos quais dificilmente outras pessoas teriam conhecimento."

D) A Refutação de Presunções Legais: O Direito Canônico estabelece presunções que auxiliam na prova. O Cânon 1061, §2, por exemplo, presume a consumação do matrimônio se os cônjuges coabitaram. Essa é uma presunção iuris tantum, ou seja, admite prova em contrário. A formação da certeza moral pela não consumação, neste caso, exige que a parte interessada apresente provas suficientes para refutar eficazmente essa presunção legal, demonstrando a ausência do ato conjugal.

A persuasão do juiz deve ser um ato racional, ancorado nas provas apresentadas, e não uma mera manifestação de sua subjetividade.

III. A Motivação da Sentença: O Freio ao Arbítrio Judicial

A garantia mais robusta contra o arbítrio na formação da certeza moral reside na exigência de que a sentença seja motivada. O Cânon 1608, §3, impõe ao juiz o dever de "expor os motivos, tanto de direito como de fato, em que se funda a parte dispositiva da sentença".

Essa exigência implica que o juiz não apenas declare sua conclusão, mas demonstre o percurso lógico-jurídico que o levou a ela. Deve-se indicar quais provas foram acolhidas e por quê, como foram valoradas, e, se for o caso, por que outras provas foram descartadas ou consideradas insuficientes. Essa fundamentação exaustiva é a baliza que distingue a certeza moral de uma opinião pessoal. Ela permite que a decisão seja compreendida, verificada e, se necessário, revista por instâncias superiores em caso de recurso, assegurando a transparência e a responsabilidade judicial.

IV. A Certeza Moral no Direito Civil: Uma Analogia Essencial

A formação de uma convicção judicial baseada na razoabilidade e na prova dos autos, distinguindo-se de uma certeza absoluta ou do arbítrio, não é exclusividade do Direito Canônico. Diversos sistemas de Direito Civil, influenciados por princípios iluministas e pela superação da "prova tarifada" (onde o valor da prova era predeterminado por lei), adotam o princípio do livre convencimento motivado do juiz (ou similar).

No Brasil, por exemplo, o Código de Processo Civil de 2015 estabelece que "o juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver produzido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento" (Art. 371, CPC de 2015). Este "livre convencimento" não significa liberdade para decidir sem provas ou contra as provas, mas sim a liberdade de valorar a prova de forma crítica e fundamentada, sem estar atrelado a regras pré-definidas para cada tipo de evidência. A convicção do juiz, em processos civis, também deve ser uma certeza moral, construída sobre o conjunto probatório e expressa na motivação da sentença.

Analogias podem ser traçadas em áreas como o Direito Penal, onde a convicção sobre a autoria e a materialidade de um crime, especialmente o dolo (intenção), é frequentemente uma questão de certeza moral, baseada em indícios e provas circunstanciais, e não em provas diretas e absolutas da mente do réu. No Direito de Família civil, a prova de elementos subjetivos como a "afetividade" ou a "intenção" também depende da capacidade do juiz de formar uma convicção razoável a partir de comportamentos e relatos.

Conclusão

A certeza moral no julgamento canônico, portanto, é um conceito de elevado rigor jurídico. Longe de ser uma prerrogativa arbitrária do juiz, ela é a culminância de um processo metódico de busca da verdade, valoração criteriosa das provas e justificação racional da decisão. Essa abordagem, que busca uma convicção razoável e fundamentada onde a certeza absoluta é inatingível, encontra paralelos nos mais diversos ordenamentos jurídicos seculares, reafirmando o caráter universal dos princípios que regem a formação do juízo judicial em prol da justiça.

 

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