Recentemente, a discussão sobre a aplicação da Lei Magnitsky a figuras políticas no Brasil, especialmente a um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), gerou um intenso debate público. A resposta de setores do governo, do próprio STF e de parte da classe política e militância tem sido a defesa intransigente da soberania nacional. Mas o que significa, de fato, soberania neste contexto?
I - O Equívoco do Discurso
Soberanista Atual
O uso do termo "soberania
nacional" por alguns grupos de direita e esquerda, e a preocupação com um
suposto "impacto do globalismo" pelas sanções externas, denota uma
compreensão equivocada do conceito. A ideia de que uma lei estrangeira – com
suas punições como congelamento de bens ou contas bancárias nos Estados Unidos
– "afrontaria a soberania nacional" é um equívoco.
No campo da Ciência Política, soberania
refere-se à capacidade de um povo ou de um país de tomar suas próprias decisões
cruciais, sem interferência externa. Um país é soberano quando suas escolhas
mais importantes são feitas internamente, e não ditadas por forças ou nações
estrangeiras.
II - Soberania Não é Ditadura ou Nacionalismo Tacanho
É fundamental desassociar a ideia
de soberania de um nacionalismo obsoleto e autoritário, como o
"nacionalismo getulista" ou outras vertentes ditatoriais. Getúlio
Vargas, ao se tornar soberano em relação ao povo – ou seja, ao concentrar o
poder e anular a soberania popular –, exemplifica justamente o que deve ser
combatido. Ditadores precisam ser derrubados, e essa derrubada pode e, muitas
vezes, deve contar com forças externas, conforme argumentam autores como Gene
Sharp.
Getúlio Vargas, em sua ditadura
que ele mesmo confirmava ser, era o único soberano. Nem o Estado, nem o povo e
suas decisões, nem o parlamento exerciam essa soberania.
O jurista alemão Carl Schmitt, em
sua conhecida obra "Legalidade e Legitimidade", cunhou a expressão de
que "soberano é aquele que decide sobre a exceção". Um estado de
exceção é precisamente o momento em que a soberania das leis e o funcionamento
natural das instituições são suspensos. Quando as instituições democráticas se
desviam de seu propósito e passam a atuar tiranicamente, a soberania popular é
abolida. Schmitt descreve que o verdadeiro soberano é aquele que, mesmo em meio
a uma crise institucional brutal, mantém-se de pé e detém o poder de comando, inclusive
o poder de polícia do Estado.
A descrição de Schmitt não é uma
defesa de tal poder, mas uma análise de como ele funciona na prática. No
Brasil, se as instituições não operam em harmonia e a decisão final recai sobre
uma única pessoa, o conceito de soberania popular é, na essência, esvaziado. O
verdadeiro soberano pode ser a expressão da vontade popular (como idealizado na
Constituição Americana, que preza a liberdade e os freios e contrapesos), ou,
lamentavelmente, um tirano que se apropria do poder em um estado de exceção –
muitas vezes provocado por ele próprio, como historicamente vimos com Getúlio
Vargas e Hitler.
Quando setores da política
brasileira, tanto da chamada direita quanto da esquerda, utilizam o termo
"soberania" para se opor à Lei Magnitsky, o fazem de forma retórica.
Eles não estão, de fato, defendendo a participação popular ou o poder do povo
decidir seu próprio destino em relação a políticos, ao mercado financeiro ou a
estatais que, por vezes, controlam o país com mão de ferro. Pelo contrário, o
discurso parece ter como objetivo principal apenas rejeitar qualquer
"intromissão" externa.
Mas é preciso questionar: há
condições reais para essa autossuficiência absoluta? Vivemos isolados no mundo?
Temos, como nação, poder moral, bélico e diplomático para ignorar por completo
a comunidade internacional, justificando a ausência de qualquer "intromissão"
em nossas decisões, sejam elas certas ou erradas? A resposta é clara: não.
Nenhum país é uma ilha, e o Brasil, como parte da comunidade global, interage
em diversas frentes. A negação de uma possível intervenção externa – especialmente
quando se trata de violações de direitos humanos ou corrupção – ignora a
realidade das relações internacionais e a interdependência dos Estados.
A realidade brasileira demonstra
que, muitas vezes, a voz do povo é silenciada. Suas decisões e sua voz são
frequentemente censuradas, controladas e ignoradas por quem detém o poder em um
estado de exceção, onde uma única pessoa ou grupo decide de forma autocrática.
Portanto, a Lei Magnitsky, ao
permitir sanções a indivíduos que violam direitos humanos ou cometem atos de
corrupção, não "afronta" a verdadeira soberania de um povo oprimido.
Pelo contrário, ela pode ser uma ferramenta externa essencial para desestabilizar
regimes tirânicos e fortalecer a legitimidade e a capacidade de um povo exercer
sua própria soberania. É um fato histórico que tiranos caem tanto por forças
internas quanto por forças externas. Ao permitir que a comunidade internacional
atue contra abusos sistêmicos, a Lei Magnitsky, de forma crucial, pode
paradoxalmente aumentar a soberania popular, oferecendo um caminho para que o
povo retome o controle de seu próprio destino.
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