Emanuel de Oliveira Costa Jr.
Estamos aqui tratando do início da era cristã até o século II,
ou seja, estamos em plena época da perseguição aos cristãos antes do edito de
Milão no ano de 313 que concedeu a liberdade de culto aos cristãos.
No início o cristianismo era visto pelos cidadãos romanos
como uma seita do judaísmo, na visão deles alguma divergência interna teria
causado a existência dos cristãos que eram levados com a mesma seriedade com
que os judeus eram tratados, nem mais nem menos, apenas como mais uma religião
de um povo dominado e que poderia ser tolerada caso não causasse problemas.
Essa visão prosperava em Roma mesmo com as diferenças palpitantes entre
cristãos e judeus e com os próprios judeus perseguindo os cristãos.
Por esse e outros motivos foi difícil para o cristianismo se
impor frente ao paganismo da cultura greco-romana, não porque era uma outra
religião, já que os romanos não tinham problema com isso e mais absorviam essas
religiões formando uma sopa relativista de deuses que qualquer outra coisa, mas
sim porque se tratava de uma religião - seita aos olhos deles - que negava os
outros deuses e ainda pregava um Deus morto e ressuscitado, pobre e que
exaltava os humildes. Para eles não era possível explicar a ascensão de uma
crença assim e por isso era algo ameaçador, uma seita que pregava tal
radicalidade moral como é o cristianismo, sem relativismo algum em um meio que
já estava acostumado a acomodar o certo e o errado no mesmo ambiente sem
qualquer dificuldade e que relativizava tudo conforme suas vontades momentâneas,
era algo que causava preocupação. Esse era o cenário do início das perseguições,
isto é, parece algo que não se poderia impedir.
Há que se perceber que as perseguições aos cristãos, no
início, não tinham nenhuma fundamentação jurídica ou legislativa, apenas se
baseava, conforme a maioria dos estudiosos compreende, no chamado odium generis humani (ódio ao gênero
humano ou ódio a humanidade) que Tácito atribuía aos cristãos. Não existiu,
portanto, durante quase dois séculos inteiros, qualquer lei emitida por algum
imperador contra os cristãos.
Ainda com relação ao odium
generis humani, é no mínimo curioso o motivo pelo qual os romanos
consideravam que os cristãos tinham e pregavam ódio à humanidade. O império e
outros tantos locais, assim como hoje a fofoca e a desinformação sempre existiu
com muita força, especialmente no meio político, enfim, todos esses meios
divulgavam que os cristãos praticavam o incesto isso porque, e aí fica a
curiosidade pelo menos cômica, de que os cristãos se tratavam por irmãos e se
casavam entre si; se amavam antes de se conhecer. Outro motivo grande para que
os cristãos fossem tratados como aqueles que tem ódio pelo gênero humano é que
eram canibais e praticavam sacrifício em atos rituais, isso porque dizia-se que
em seus rituais (Sacrifício da Santa Missa) se comia o corpo de Deus. O fato de
os cristãos exaltarem a virgindade também causou um certo problema social,
afinal a sociedade romana era extremamente libertina. Essas conversas causavam
tumulto entre a população que não era cristã e não conhecia o que realmente era
verdade e o que não era e acabavam por achar que tudo era verdade. Essa
situação causava uma certa desordem pública que, em uma das teses, eram os
principais motivos alegados para autorizar a perseguição e assassinato de
cristãos. Claro que, muitas vezes, essas histórias eram criadas
propositalmente, outras o imaginário popular as fazia crescer para todos os
lados que se pode imagina. Só não podemos deixar escapar que se tratavam de
calúnias e que interessavam o império romana, fossem elas “plantadas” ou não.
Entretanto, é fato que as perseguições aconteciam. A
sociedade romana tinha uma ciência jurídica muito evoluída e tal arbitrariedade
em atos como a perseguição a toda uma “seita” deveria constar alguma legislação
que permitisse ou pelo menos alguma tese jurídica que desse solidez a esse tipo
de ato. Foi nesse sentir que vários historiadores e juristas criaram diversas
teses e formularam vários estudos, e ainda criam e formulam, para entender como
foi possível, juridicamente, acontecer tal perseguição dentro do império
romano.
Algumas teses jurídicas que poderiam fundamentar, mesmo que
não juridicamente, a perseguição aos cristãos eram, segundo alguns estudiosos:
o Institutum Neronis (ou Institutum Neroniano) do qual falava
Tertuliano ou o ius coertionis
proposto pelo historiador Mommsen. Havia também outra teoria formulada pelo
arqueólogo Le Blant que alegava o laesae
maistatis.
O Institutum Neronis (ou
Institutum Neroniano) afirma que esses
institutos seriam um conjunto de leis especiais editadas exclusivamente para
fundamentar a perseguição dos cristãos, entretanto, não seriam leis emitidas
pelos imperadores. Existem alguns defensores dessa tese, especialmente o
liturgista belga Calleaert que teve outros seguidores como Duchense, Monachino
e Zeiller.
O ius coertionis,
que é outra hipótese de fundamentação jurídica para a perseguição dos cristãos
no império romano antes do imperador Sétimo Severo, foi defendida e formulada
por um historiador alemão chamado Theodor Mommsen que viveu no século XIX e
faleceu no início do século XX. A hipótese dizia que não havia mesmo
fundamentação jurídico-legislativa, mas sim uma discricionariedade dos
magistrados e outros funcionários públicos encarregados em agir conforme
considerassem necessário para manter a ordem pública. Como pode ser percebido,
o motivo não tem critérios realmente bem estipulados e poderia levar os
magistrados a considerar qualquer coisa como motivo para a perseguição
fundamentado na ordem pública que poderia ter sido quebrada pelos cristãos.
O Laesae Maistatis
foi uma teoria formulada por Edmond-Frédéric Le Blant que foi um arqueólogo do
século XIX. O sacrilégio de laesae
maistatis e outras leis parecidas com essa que misturavam estado e
religião, como era o mais comum e a única forma concebível dentro do estado
romano, seria a fundamentação para a perseguição dos cristãos, haja vista que
os cristãos negavam o culto aos deuses, uma vez que pregam um único e
verdadeiro Deus e sempre negaram a deificação do imperador e seu consequente
culto. Uma vez que os cristãos agiam dessa forma e a lei laesar maistatis, algo que fundamentou o que viria a ser a lei de
lesa majestade no futuro, e outras leis parecidas já legislavam nesse sentido,
estava fundamentado o crime-sacrilégio dos cristãos e, portanto, sua
perseguição e terríveis penas. Essa teoria encontrou diversos adeptos já que se
esses seguidores entendem que o Insitutum
Neronis (ou Institutum Neroniano)
aludido por Tertuliano, não poderia ser entendido como edito ou lei especial
emanada dos príncipes, assim sendo, inválidas.
O que se percebe é que a problemática que esfumaça toda essa
história das perseguições é devido a uma historiografia mesclada por relatos
cristão e dos pagãos, documentos oficiais e testemunhos presenciais que nem
sempre e confirmam, os relatos posteriormente elaborados para completar
documentos e reaver outros perdidos e, as vezes, lendas criadas em torno de
alguns mártires, além de tantos outros pequenos detalhes.
Fato é que existia, certamente uma série de imprecisões por
parte do conhecimento dos pagãos para com os cristãos, tanto em seus hábitos
como em sua crença em geral. Prova disso é o absurdo pensamento de que os
cristãos odiavam o gênero humano. Por outro lado, o que se tem por parte dos
cristãos não são relatos feitos oficialmente dentro do Estado, com toda a
frieza que só documentos oficiais podem trazer, pelo contrário, trazem na
história o relato daqueles que viveram em sua carne a perseguição, a violência
e o martírio. Afinal, sabe-se que Diocleciano decretou a destruição dos
escritos cristãos. Alguns puderam ser salvos inteiros ou em partes,
fragmentados ou enxertados dentro de outros documentos, mas muito se perdeu de
documentação que hoje poderia elucidar muito das dúvidas e lacunas históricas e
jurídicas que temos.
A fundamentação jurídica para a perseguição aos cristãos só
veio mesmo com o Imperador Sétimo Severo (193-211) e com Diocleciano (284-305),
quando ambos editaram leis especificamente contra os cristãos usando como
pretexto o fato de que eles se negavam ao culto e idolatria aos deuses e a
deificação do imperador. Só então vieram leis que especificamente autorizavam e
até determinavam essas perseguições que não aconteciam só com castigos e
martírios físicos, mas também com uma série de sanções particulares, inclusive
tributárias.
INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA.
- Mons. LIMA, Maurílio Cesar. Introdução a história do direito canônico, Mons. Maurílio Cesar de
Lima, Ed. Loyola, 2017
- DANIEL-ROPS, Henri. História da Igreja de Cristo.
Tradução de Henrique Ruas; revisão de Emérico da Gama - São Paulo: Quadrante,
2006 (coleção).
- DREHER, Martin. A Igreja no Império Romano. São
Leopoldo: Sinodal, 1993.
- GIBBON, Edward. Declínio e Queda do Império Romano. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2005.
- GONZÁLEZ, Justo L. A Era dos Mártires. São Paulo:
Vida Nova, 2002.
- Tácito, Annales, XV.
- Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica 5.1.7
- Luciano de Samósata, Alexandre, o monge-oráculo.
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