terça-feira, 20 de maio de 2025

A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA: UMA CRÍTICA CONSTITUCIONAL AO ENTENDIMENTO DO STF

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Resumo

O presente artigo busca examinar criticamente a relativização da coisa julgada à luz da jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal (STF), com ênfase nos Temas 881 e 885 e na Reclamação 4335/SP.

A análise parte do pressuposto de que a coisa julgada é um direito fundamental protegido expressamente pelo art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988, e que sua relativização compromete a segurança jurídica, a estabilidade das relações jurídicas e o próprio Estado de Direito.

Ao final, sustenta-se que a interpretação dada pelo STF é inconstitucional por violar garantias fundamentais e desfigurar o papel contramajoritário e magno da Constituição.

1. Introdução

A coisa julgada sempre foi considerada um dos pilares do processo civil, não apenas como instituto técnico, mas como garantidora da estabilidade das decisões judiciais e da segurança jurídica afinal, sem ela não há como garantir nada do ponto de vista jurídico e tudo pode ser revisto a qualquer tempo. No entanto, a partir de entendimentos recentes do STF, notadamente nos Temas 881 e 885, tem-se permitido a desconstituição de decisões transitadas em julgado em nome da supremacia da Constituição e da jurisprudência vinculante. Este artigo visa demonstrar que essa postura, embora fundada em preocupações legítimas, é tecnicamente inconstitucional.

2. A Coisa Julgada como Garantia Constitucional

2.1 Texto Constitucional e Cláusula Pétrea

O artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988 dispõe:

"A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada."

A linguagem é direta e categórica, e insere a proteção à coisa julgada no rol dos direitos e garantias fundamentais. Não há muita margem para interpretações visto que o texto é bem taxativo. Por isso, está abarcada pela cláusula pétrea prevista no art. 60, §4º, inciso IV, da própria Constituição, que impede a deliberação de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais.

"Art. 60, §4º, IV – Não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e garantias individuais."

O conceito de cláusula pétrea se refere a um núcleo essencial da Constituição que não pode ser alterado nem mesmo por emenda constitucional. Funciona como uma barreira à mutação constitucional e ao arbítrio dos poderes constituídos, sejam eles de qualquer dos três Poderes. Todos podem tentar mudar a Constituição via Emenda Constitucional, seja especificamente pelo Augusto STF por meio de interpretações que fogem à originalidade pretendida pela Constituição.

A doutrina majoritária entende que esses dispositivos representam limites materiais ao poder de reforma, preservando a identidade da Constituição.

Joaquim José Gomes Canotilho explica que as cláusulas pétreas funcionam como garantias contra a tirania da maioria e asseguram a continuidade do projeto constitucional. Já Ingo Wolfgan Sarlet entende que os direitos fundamentais, sobretudo os processuais, constituem expressão do mínimo existencial da cidadania constitucional.

O próprio STF, ao julgar a ADI 939/DF, reafirmou que as cláusulas pétreas são expressões materiais do Estado de Direito e que sua proteção não se limita ao texto literal, mas alcança também o conteúdo essencial das garantias constitucionais.

Portanto, a proteção à coisa julgada deve ser compreendida como um conteúdo intangível da Constituição, que não pode ser restringido por interpretações judiciais, sob pena de se permitir que o próprio Poder Judiciário se torne um agente de reforma constitucional informal (uma assembleia constituinte não eleita). Ao relativizar a coisa julgada, o STF viola não apenas o art. 5º, XXXVI, mas também o art. 60, §4º, IV, ambos integrantes do bloco de constitucionalidade de defesa das garantias fundamentais.

"A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada."

Trata-se de uma disposição expressa, sem margem para relativizações ou exceções, protegida por cláusula pétrea (art. 60, §4º, IV). A coisa julgada não é mera técnica processual: é elemento estruturante do Estado Democrático de Direito.

2.2 A Função Contramajoritária da Constituição

A função contramajoritária da Constituição consiste em garantir a supremacia dos direitos fundamentais e das normas constitucionais mesmo diante da vontade das maiorias políticas ou sociais momentâneas. Essa função se expressa especialmente nas cláusulas pétreas, nos direitos fundamentais e na atuação do Poder Judiciário como guardião da Constituição. Seu papel é proteger os indivíduos e as minorias contra eventuais abusos legislativos ou decisões populistas que comprometam valores estruturantes do Estado de Direito.

Segundo o próprio ministro Luis Roberto Barroso do STF:

“a função contramajoritária da Constituição encontra sua razão de ser na necessidade de preservar o núcleo essencial de direitos e garantias, mesmo quando esses direitos são impopulares ou quando há maioria circunstancial contrária à sua preservação.” [2]

Trata-se, assim, de um limite material ao poder político, de modo a assegurar a integridade dos valores constitucionais.

Mais uma vez Joaquim José Gomes Canotilho também destaca que:

“a rigidez constitucional e a função contramajoritária são elementos indissociáveis do constitucionalismo contemporâneo.”[3]

Sem essa função, a Constituição deixa de ser instrumento de limitação do poder e passa a ser objeto da sua manipulação.

Nesse contexto, a coisa julgada — protegida pelo art. 5º, XXXVI da CF/88 — representa um mecanismo de contenção do arbítrio estatal, inclusive do próprio Poder Judiciário. É expressão do devido processo legal e do direito à estabilidade das decisões judiciais. Permitir sua relativização significa abrir caminho para que decisões majoritárias ou interpretações conjunturais tenham o poder de desfazer direitos já definitivamente reconhecidos pelo Judiciário.

Ronald Dworkin já mencionava isso em sua obra no final dos anos 70 do século XX:

“Os direitos individuais são trunfos que os indivíduos possuem contra a maioria.”[4]

No caso concreto analisado (Temas 881 e 885 e Reclamação 4335/SP), a função contramajoritária da Constituição não foi respeitada, pois o STF, ao admitir a relativização da coisa julgada em nome da supremacia da sua própria jurisprudência, atua como poder reformador da Constituição, sem respaldo no texto constitucional. O Judiciário, que deveria limitar o poder, passa a ampliá-lo sobre os próprios direitos fundamentais que deveria proteger. Em vez de exercer sua função contramajoritária, o STF adere à lógica majoritária da conveniência institucional, minando a estabilidade do ordenamento jurídico.

Esse tipo de atuação gera um paradoxo: o guardião da Constituição torna-se agente de sua erosão. O Judiciário, ao interpretar a Constituição em desconformidade com sua literalidade e seus princípios estruturantes, compromete não apenas a coisa julgada, mas o próprio pacto constitucional fundante.

3. Jurisprudência do STF: Temas 881, 885 e Reclamação 4335/SP

3.1 Tema 881

No julgamento do Recurso Extraordinário n.º 949.297/CE, o Supremo Tribunal Federal firmou a seguinte tese de repercussão geral no Tema 881:

"As decisões do STF em controle concentrado ou em repercussão geral devem ser observadas pelos juízes e tribunais, ainda que em detrimento da coisa julgada."

Essa formulação representa, na prática, a autorização para que decisões judiciais transitadas em julgado — que já produziram todos os seus efeitos e se tornaram definitivas — possam ser desconstituídas em razão de posterior entendimento firmado pelo STF, seja no controle concentrado de constitucionalidade, seja em sede de repercussão geral.

A consequência direta da tese é a relativização da coisa julgada, não por força de alteração normativa constitucional, mas por decisão jurisprudencial superveniente. Isso implica dizer que o STF criou, por via interpretativa, uma hipótese nova de rescindibilidade da coisa julgada, fora das hipóteses taxativamente previstas no art. 966 do CPC/2015 e, pior, em violação direta ao art. 5º, XXXVI da Constituição Federal, que garante a coisa julgada como cláusula pétrea.

O problema central é que essa decisão não é compatível com o regime constitucional brasileiro, em que a coisa julgada se encontra protegida contra a atuação legislativa e, com mais razão, contra a atuação jurisdicional extemporânea. Ao permitir que entendimentos posteriores revoguem decisões já estabilizadas, o STF está relativizando um direito fundamental consagrado textualmente e intangível por força do art. 60, §4º, IV da CF/88.

Essa relativização produz efeitos gravíssimos de insegurança jurídica. Situações concretas ilustram isso:

a) Um contribuinte que teve reconhecido, por decisão transitada em julgado, o direito de não pagar determinado tributo, pode ser surpreendido anos depois com a exigência retroativa desse mesmo tributo, em razão de nova tese firmada pelo STF. Claro que o oposto também é verdadeiro, contudo alguém tem alguma dúvida de que isso nunca vai acontecer?

b) Um servidor público que teve seu direito reconhecido por sentença definitiva pode ter sua aposentadoria questionada com base em nova orientação jurisprudencial que vier posteriormente;

c) Empresas que deixaram de recolher encargos com base em decisão judicial com coisa julgada passam a ser cobradas retroativamente, com juros e multa, em cenário de absoluta insegurança.

Além de injusto, esse cenário enfraquece o valor da jurisdição como instrumento de pacificação social e compromete o próprio papel do Poder Judiciário. A coisa julgada, concebida como garantia do jurisdicionado contra a eternização de litígios e contra a instabilidade decisória, torna-se frágil, instável e relativizável por critérios alheios ao devido processo legal.

A tese do Tema 881 rompe com o princípio da segurança jurídica, que é estruturante do Estado de Direito, e também com o princípio da irretroatividade da norma mais gravosa, pois permite que decisões posteriores impactem fatos consumados à luz da jurisprudência então vigente. É, portanto, uma violação múltipla à Constituição: ao art. 5º, XXXVI (coisa julgada), ao art. 60, §4º, IV (cláusula pétrea) e ao devido processo legal substancial (art. 5º, LIV).

Em suma, o Tema 881 inaugura uma lógica segundo a qual nenhuma decisão é, de fato, definitiva, pois está sempre sujeita à revisão por mudança de entendimento jurisprudencial. Essa concepção desfigura o próprio conceito de coisa julgada, transforma o STF em instância recursal eterna e compromete a credibilidade do sistema judicial como um todo.

"As decisões do STF em controle concentrado ou em repercussão geral devem ser observadas pelos juízes e tribunais, ainda que em detrimento da coisa julgada."

O entendimento permite que uma decisão judicial definitiva perca sua eficácia caso contrarie tese posterior do STF.

3.2 Tema 885

No julgamento do Recurso Extraordinário n.º 955.227/SP, o Supremo Tribunal Federal fixou a tese de repercussão geral referente ao Tema 885, com a seguinte redação:

"É legítima a revisão de decisão transitada em julgado, mesmo em desfavor do contribuinte, quando contrária à tese posteriormente firmada em controle concentrado de constitucionalidade ou em sede de repercussão geral."

Esse entendimento, alinhado ao Tema 881, reafirma a possibilidade de que sentenças definitivas possam ser desconstituídas em razão de evolução jurisprudencial. A particularidade do Tema 885 está no seu impacto tributário direto, já que trata expressamente da possibilidade de cobrança retroativa de tributos anteriormente afastados com base em decisão judicial transitada em julgado.

Ao afirmar que é legítima a revisão de decisões definitivas com base em entendimento superveniente do STF, inclusive quando essas decisões beneficiaram o contribuinte, o Tribunal rompe com o princípio da irretroatividade tributária, subverte o art. 150, III, "a" da CF/88 e agrava a instabilidade jurídica no campo fiscal.

Consequência prática direta: contribuintes que confiaram na estabilidade de sentenças favoráveis — por exemplo, para não recolher determinada exação — podem ser cobrados retroativamente, com juros, correção monetária e, eventualmente, penalidades (não precisamos poupar a imaginação quando se trata da fome arrecadatória). Essa medida compromete:

a) O planejamento financeiro de empresas;

b) A boa-fé dos contribuintes que confiaram em decisões transitadas em julgado;

c) O princípio da isonomia, já que os contribuintes que ajuizaram ações são tratados de forma distinta dos que não o fizeram.

Além disso, tal entendimento também ignora a cláusula pétrea do art. 5º, XXXVI da Constituição, que resguarda a coisa julgada contra retrocessos normativos ou institucionais. O argumento da necessidade de proteger o interesse público e a arrecadação não justifica, sob o ponto de vista constitucional, a eliminação de um direito fundamental. A Constituição não autoriza a supressão da coisa julgada nem mesmo por emenda constitucional — com mais razão, não o pode fazer por decisão judicial.

O Tema 885, ao permitir que o Fisco reabra discussões encerradas com trânsito em julgado, enfraquece a função protetiva da jurisdição, esvazia o instituto da coisa julgada e consolida o risco de que nenhuma decisão judicial seja realmente definitiva. Ainda mais grave: cria-se uma situação de desigualdade estrutural entre o Estado e o cidadão, invertendo a lógica do processo justo e do equilíbrio entre as partes.

3.3 Reclamação 4335/SP

A Reclamação Constitucional n.º 4.335/SP, relatada pelo Min. Gilmar Mendes, é o precedente paradigmático da tese da "coisa julgada inconstitucional". Nesse caso, o STF entendeu que uma decisão judicial transitada em julgado, proferida com base em norma posteriormente declarada inconstitucional, pode ser desconstituída por meio de reclamação, com base na autoridade da decisão proferida em controle concentrado de constitucionalidade.

A partir dessa decisão, o STF reconheceu, na prática, que a declaração de inconstitucionalidade em abstrato (controle concentrado) pode anular os efeitos de decisões judiciais anteriores transitadas em julgado, caso estas tenham aplicado a norma posteriormente invalidada.

O problema dessa compreensão é que ela rompe com a lógica da segurança jurídica, promovendo uma retroação de efeitos que jamais foi admitida pelo próprio sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, que, historicamente, sempre operou com efeitos ex nunc ou modulados. A reclamação, nesse contexto, é usada não para preservar a autoridade de decisões do STF, mas para anular decisões judiciais definitivas que contrariem entendimento posterior.

Essa inversão da finalidade do instrumento constitucional da reclamação transforma a coisa julgada em elemento provisório, sujeita à revisão sempre que houver nova posição do STF. Trata-se de uma mutação profunda da natureza da jurisdição e da lógica do devido processo legal, com repercussões diretas no modelo de Estado de Direito.

A Reclamação 4335/SP abre precedente para um modelo de instabilidade sistêmica, em que a autoridade das decisões judiciais fica subordinada ao fluxo da jurisprudência constitucional. A partir desse caso, a Corte passou a admitir que mesmo sem nova ação, novo recurso ou novo fato, o simples pronunciamento do STF pode revogar o que era tido como indiscutível.

Essa concepção subverte o art. 5º, XXXVI, e também o art. 60, §4º, IV da CF, ao neutralizar uma garantia fundamental com base em instrumento processual e atribuir à Corte Suprema poderes de revogação permanente do passado jurisdicional, sem limitação procedimental ou temporal.

Assim, a Reclamação 4335/SP marca o início de uma jurisprudência que, embora travestida de defesa da Constituição, a enfraquece ao desproteger justamente as garantias que deveriam ser sua pedra angular. Neste precedente paradigmático, o STF entendeu que a decisão judicial transitada em julgado, se baseada em norma posteriormente declarada inconstitucional, pode ser atacada via reclamação, inaugurando a possibilidade da "coisa julgada inconstitucional".

4. Argumentos a favor da relativização

4.1 Supremacia da Constituição

Os defensores da relativização da coisa julgada partem da premissa de que a Constituição ocupa o topo da hierarquia normativa do ordenamento jurídico brasileiro, devendo prevalecer sobre qualquer outra norma ou ato, inclusive decisões judiciais. Dessa forma, entendem que decisões judiciais transitadas em julgado que contrariem frontalmente normas constitucionais ou interpretações vinculantes do STF devem ser corrigidas, ainda que em detrimento da coisa julgada. A segurança jurídica parece ficar fora do contexto para essa tese a favor.

Esse argumento se ancora na ideia de que a Constituição é a norma fundamental do sistema, como realmente o é, (conforme a teoria kelseniana) e que, por isso, nenhum ato estatal pode subsistir se for inconstitucional, ainda que se trate de decisão judicial coberta pela coisa julgada.

Hans Kelsen já nos informava em sua Teoria pura do Direito que:

“A norma fundamental não é posta, ela é pressuposta como condição de toda a imposição do direito”[5]

Contudo, essa compreensão ignora que a própria Constituição protege expressamente a coisa julgada como garantia fundamental (art. 5º, XXXVI) e, portanto, não pode haver hierarquia interna que autorize o sacrifício de um direito fundamental em nome da própria supremacia constitucional. Em outras palavras, a supremacia da Constituição não pode ser usada como argumento para violar a própria Constituição, sob pena de paradoxalmente se destruírem os direitos que ela pretende resguardar.

4.2 Efetividade do controle concentrado

Outro argumento utilizado é o de que o STF, como guardião da Constituição (art. 102, caput, da CF), deve garantir que suas decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade ou em repercussão geral tenham efetividade plena e imediata. Assim, decisões judiciais anteriores que estejam em desacordo com esses entendimentos devem ser afastadas, mesmo que cobertas pela coisa julgada.

A lógica é a de que não faria sentido atribuir efeito vinculante às decisões do STF se estas não pudessem prevalecer sobre decisões judiciais contrárias, mesmo que definitivas. Para os defensores dessa posição, permitir a subsistência de decisões que afrontam a atual leitura constitucional enfraqueceria o papel do Supremo como intérprete máximo da Constituição e comprometeria a unidade do direito.

Gilmar Ferreira Mendes, ministro do STF, ao tratar dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, afirma que:

“A declaração de inconstitucionalidade, em regra, opera efeitos ex tunc, isto é, retroage à data de vigência do ato declarado inconstitucional.”[6]

No entanto, esse raciocínio esvazia a função da coisa julgada como instrumento de pacificação social e cria uma instabilidade permanente, em que decisões judiciais podem ser revistas indefinidamente, sempre que houver mudança na jurisprudência. A jurisprudência, por sua natureza, é dinâmica, e submeter a coisa julgada às oscilações interpretativas compromete a previsibilidade e a confiança no sistema jurídico. A efetividade do controle de constitucionalidade não pode ser construída ao custo da destruição da segurança jurídica.

4.3 Interesse público e economia

Por fim, a defesa da relativização também se apoia no argumento de que a manutenção de decisões inconstitucionais transitadas em julgado pode gerar prejuízos relevantes ao interesse público, especialmente na seara tributária. Situações em que o contribuinte obtém decisões favoráveis à não incidência de tributos, posteriormente julgados constitucionais pelo STF, são frequentemente citadas como exemplo de desequilíbrio orçamentário e violação da isonomia tributária.

A ideia é que o Estado deve poder reaver receitas indevidamente perdidas e restaurar a ordem constitucional, ainda que para isso seja necessário superar decisões definitivas. A coletividade não pode arcar com o ônus de decisões judiciais que se demonstraram inconstitucionais, dizem os defensores desse ponto de vista.

Contudo, esse raciocínio parte de uma concepção utilitarista e consequencialista do Direito, que não encontra amparo no texto constitucional. A Constituição não admite a supressão de garantias fundamentais com base em argumentos de conveniência financeira ou administrativa. O interesse público, embora relevante, não se sobrepõe automaticamente aos direitos fundamentais, pois, se assim o fosse, qualquer direito poderia ser sacrificado em nome da razão de Estado.

A adoção desse tipo de raciocínio abre precedente perigoso: se a eficiência fiscal justifica a quebra da coisa julgada hoje, amanhã poderá justificar a suspensão de outros direitos, como o devido processo legal, a ampla defesa ou o direito de propriedade. A Constituição não é um instrumento de conveniência, mas um limite ao poder. Especialmente em matéria tributária, a manutenção de sentenças inconstitucionais causaria desequilíbrio orçamentário e injustiças fiscais.

5. Críticas à relativização da coisa julgada

5.1 Violação ao art. 5º, XXXVI da CF

A relativização da coisa julgada confronta diretamente o texto expresso do art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988:

"A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada."

A proteção à coisa julgada não é meramente programática ou simbólica — ela está inserida no catálogo dos direitos e garantias fundamentais e, portanto, goza da proteção da cláusula pétrea prevista no art. 60, §4º, IV da CF, que impede a deliberação de emendas constitucionais tendentes a abolir direitos e garantias individuais. Isso significa que nem mesmo o poder constituinte derivado pode revogar essa garantia, quanto mais o Judiciário, por interpretação extensiva.

José Rogério Cruz e Tucci na obra Segurança jurídica e coisa julgada: eficácia temporal da sentença civil e seus limites objetivos e subjetivos defende que "a intangibilidade da coisa julgada representa um dos elementos fundantes do Estado de Direito e da própria noção de processo justo".

Caso ilustrativo para entender a profundidade do problema: Imagine-se um servidor público que teve reconhecido judicialmente, por decisão transitada em julgado, o direito à incorporação de gratificação em sua aposentadoria. Anos depois, o STF fixa tese em sentido contrário e, com base nela, o Estado busca rever os proventos do servidor, provavelmente com juros e correção monetária, quem sabe até multa. Essa conduta não apenas viola a coisa julgada, mas também compromete a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF) e a confiança legítima, para não mencionar a segurança jurídica.

5.2 Fragilização da segurança jurídica

A segurança jurídica é princípio estruturante do Estado de Direito (art. 1º, caput, da CF) e se manifesta na previsibilidade, estabilidade e confiança no ordenamento jurídico. A relativização da coisa julgada desestrutura esse princípio, pois torna incerta a definitividade das decisões judiciais.

Lênio Streck aponta em sua obra Jurisdição constitucional e decisão jurídica: entre a política e o direito que

"o Direito não pode ser uma promessa não cumprida: se a decisão judicial não é mais definitiva, o Direito deixa de cumprir sua função pacificadora".[7]

Exemplo prático disso é a seguinte situação: Empresas que obtiveram decisão transitada em julgado afastando determinada exigência tributária (ex.: contribuição previdenciária sobre parcelas indenizatórias) podem, anos depois, ser compelidas a pagar o tributo com efeitos retroativos. Isso desincentiva o uso do Judiciário e destrói a confiabilidade da tutela jurisdicional.

Além disso, art. 6º do CPC/2015 estabelece que o processo deve garantir "a duração razoável do processo e a segurança jurídica". Como garantir segurança se toda decisão pode ser revista indefinidamente?

5.3 Risco de retroatividade judicial

A jurisprudência que relativiza a coisa julgada rompe com o princípio da irretroatividade, estabelecido no art. 5º, XXXVI, e também no art. 150, inciso III, alínea "a", da CF, no campo tributário:

"É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça; cobrar tributos: a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os instituiu ou aumentou."

A mesma lógica deve valer para decisões judiciais: um novo entendimento não pode retroagir para desfazer efeitos produzidos sob a égide de decisões válidas à época em que proferidas.

Exemplo concreto da situação: Após o julgamento da tese de repercussão geral (Tema 69 do STF), que afastou a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/COFINS, o STJ estabeleceu a limitação temporal dos efeitos da decisão, para proteger a segurança jurídica e evitar colapso fiscal. O mesmo raciocínio deveria ser aplicado à coisa julgada, pois sua quebra retroativa afeta expectativas legítimas e compromissos jurídicos consolidados.

5.4 Subversão do papel do STF

A Constituição outorga ao STF a função de guardião da Constituição (art. 102 da CF), não de poder constituinte permanente como parece ser o caso atual. Ao relativizar a coisa julgada sem previsão normativa, o STF extrapola os limites de sua competência e atua como legislador e reformador da própria Constituição.

Canotilho em sua obra Direito constitucional e teoria da constituição alerta que o Judiciário não pode ser "revisor informal do texto constitucional sob o pretexto de realizar sua máxima efetividade".

Exemplo ilustrativo é a Corte Suprema passar a ter o poder de invalidar qualquer decisão, de qualquer juiz ou tribunal, a qualquer tempo, com base em mutações interpretativas. Isso retira dos demais tribunais sua função jurisdicional própria e centraliza, de forma autoritária, todo o poder decisório no STF.

Essa prática corrompe a separação de poderes (art. 2º da CF) e inverte a lógica de controle de constitucionalidade, pois passa a permitir o controle de sentenças anteriores com base em entendimentos posteriores — sem previsão legal ou constitucional para isso.

5.5 Impactos econômicos e institucionais

A quebra da coisa julgada gera impactos profundos nas relações contratuais, fiscais, previdenciárias e trabalhistas, impondo insegurança e instabilidade às instituições públicas e privadas. Além dos prejuízos diretos aos jurisdicionados, há risco sistêmico para o próprio funcionamento da Justiça, que passa a ser vista como instância provisória e falível.

Fredie Didier Jr. observa em suas obras que a autoridade da coisa julgada é tão importante quanto a própria decisão de mérito, pois sem estabilidade, não há confiança; sem confiança, não há respeito ao processo civil.

A coisa julgada, conforme conseguimos ver definido no artigo 502 do Código de Processo Civil de 2015, é a característica que faz uma decisão final ser imutável e indiscutível. Isso quer dizer que, a partir do momento que a decisão atinge o ponto em que não cabe mais nenhum recurso, ela não pode ser alterada ou discutida novamente.

A estabilidade da coisa julgada é um ponto considerado crucial para que haja garantia da segurança jurídica e confiança no sistema judicial vigente. A partir do momento em que não há mais a certeza de que as decisões finais são realmente finais, ou seja, que são definitivas, a sociedade passa a não ter mais nenhuma confiança na Justiça e, consequentemente, passa a não respeitar o processo civil e o próprio Poder Judiciário.

Exemplo prático disso será quando empresas que foram desoneradas judicialmente de determinados encargos podem, com a quebra da coisa julgada, acumular dívidas retroativas impagáveis, gerando falências em massa, demissões e quebra de contratos. O risco social cresce e, do ponto de vista institucional, a Advocacia Pública e os Tribunais serão sobrecarregados com ações revisórias, execuções fiscais reabertas e milhares de processos administrativos reanalisado. Tudo isso compromete a eficiência do sistema judicial e administrativo.

Quanto ao impacto previdenciário, temos que beneficiários de decisões favoráveis, com base nas quais se aposentaram ou receberam revisões, podem ter rendimentos reduzidos ou exigidos de volta. Isso ofende os princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF) e da proteção da confiança legítima.

Em todos os exemplos mencionados, vê-se que a relativização da coisa julgada transforma o Poder Judiciário em um sistema de revisão contínua, incompatível com os valores constitucionais da segurança, estabilidade e previsibilidade.

A coisa julgada não existe apenas para encerrar litígios: ela é a expressão do limite do poder do Estado sobre o indivíduo. Sua relativização sem critério normativo rompe a lógica do processo justo, introduzindo um regime de instabilidade permanente.

6. Direito Comparado: A coisa julgada em sistemas jurídicos semelhantes

A análise do tratamento conferido à coisa julgada em outros países com sistemas jurídicos semelhantes ao brasileiro — majoritariamente de tradição romano-germânica — permite observar que, em geral, prevalece a valorização da estabilidade das decisões judiciais e a limitação de hipóteses de revisão. A seguir, apresentam-se breves exposições sobre como alguns ordenamentos jurídicos tratam a matéria.

6.1 Alemanha

O ordenamento alemão, regido pelo Zivilprozessordnung (ZPO), considera a coisa julgada como elemento essencial para a segurança jurídica. A decisão judicial com trânsito em julgado é tida como imutável e definitiva, exceto nas hipóteses excepcionais de revisão (Wiederaufnahmeverfahren), previstas nos §§ 578 a 591 do ZPO. Essas hipóteses incluem, por exemplo, dolo da parte vencedora, falsidade documental ou descoberta de fato novo relevante — mas não incluem mudança posterior de jurisprudência ou declaração de inconstitucionalidade.

A doutrina alemã reconhece a coisa julgada como uma garantia do cidadão frente ao Estado, enfatizando sua função pacificadora e estabilizadora. O respeito à coisa julgada é condição para a legitimação do próprio Estado de Direito. Nada parecido, portanto, com o que a jurisprudência do STF tem feito no Brasil.

6.2 França

Na França, a coisa julgada é regida pelo Code de procédure civile, que estabelece que uma decisão transitada em julgado adquire a autorité de la chose jugée. Ela vincula as partes e só pode ser rescindida em hipóteses expressamente previstas pela lei, como erro material, falsidade ou fraude.

O controle de constitucionalidade é difuso e concentrado na Conseil Constitutionnel, e mesmo quando há declaração de inconstitucionalidade, os efeitos são, via de regra, prospectivos. Assim, decisões judiciais anteriores não são automaticamente invalidadas pela mutação jurisprudencial, respeitando-se a autoridade da coisa julgada.

6.3 Itália

O Código de Processo Civil italiano também valoriza fortemente a coisa julgada. A revisão de sentença (revisione) é limitada a hipóteses taxativas previstas no artigo 395 do Codice di Procedura Civile, como erro de fato, falsidade, dolo da parte vencedora ou surgimento de prova nova decisiva. Não se admite, portanto, rescisão com base em mudanças jurisprudenciais posteriores ou novas interpretações constitucionais com tem feito o STF aqui no Brasil.

A Corte Constitucional Italiana modula os efeitos de suas decisões com cuidado, e a doutrina reconhece que a revisão da coisa julgada deve ser restrita para garantir a credibilidade da jurisdição.

6.4 Portugal

O Código de Processo Civil português também trata a coisa julgada como inviolável, salvo em casos muito restritos, como dolo, coação, erro ou surgimento de documento novo (arts. 696 a 702 do CPC português). A jurisprudência do Tribunal Constitucional de Portugal reconhece a primazia dos direitos fundamentais, mas não admite a revisão de coisa julgada com base apenas em evolução jurisprudencial.

Canotilho, que é português, destaca que o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança impede que se revisitem decisões judiciais com base em alterações casuísticas de interpretação.

6.5 Estados Unidos (sistema anglo-saxão - common law)

Embora com sistema diverso, o direito norte-americano também reconhece e protege fortemente o instituto da coisa julgada sob as doutrinas de res judicata e collateral estoppel. O precedente é uma norma obrigatória, mas mesmo sua modificação não implica necessariamente a revisão de decisões passadas.

A Suprema Corte dos EUA admite a revisão de decisões transitadas em julgado em situações excepcionais, como erro processual gravíssimo, provas novas e fraude — não sendo permitida a simples revisão por mudança de interpretação jurisprudencial.

6.6 Considerações finais

O exame comparado revela que nenhum dos principais países do mundo com tradição jurídica semelhante à brasileira adota um modelo tão amplo de relativização da coisa julgada quanto o atualmente praticado pelo STF. Em todos os ordenamentos analisados, a imutabilidade da coisa julgada é vista como corolário da segurança jurídica e da limitação do poder estatal.

A prática brasileira atual, especialmente com os Temas 881 e 885 e a Reclamação 4335/SP, configura uma anomalia no direito comparado. Enquanto os demais países preservam a coisa julgada contra mutações jurisprudenciais, o Brasil trilha um caminho que, ao invés de fortalecer a Constituição, termina por enfraquecê-la em nome de uma interpretação funcional e pragmática, mas incompatível com os valores do Estado de Direito.

7. Conclusão

A relativização da coisa julgada, nos moldes praticados pelo STF, é materialmente inconstitucional. Ainda que se compreenda a necessidade de efetividade das decisões do Supremo, o caminho para compatibilizar os princípios constitucionais não pode ser a negação expressa de um direito fundamental. O Supremo, ao permitir a desconstituição de sentenças transitadas em julgado com base em entendimentos supervenientes, extrapola sua função jurisdicional e desrespeita o texto constitucional. É necessário restabelecer os limites do controle judicial e reafirmar a força normativa da Constituição como garantia verdadeira do Estado de Direito.

Referências Bibliográficas

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[1] Advogado, Professor, Colunista em diversos sites jurídicos e de notícias, especialista em Direito Público, Mestre em Direito Canônico, Graduando em História.

[2] BARROSO, Luís Roberto. O novo direito constitucional brasileiro. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

[3] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

[4] DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1977. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[5] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito.. Trad. João Baptista Machado, Martins Fontes. 2009.

[6] MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva.

[7] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica: entre a política e o direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.

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