segunda-feira, 16 de junho de 2025

O direito natural apagado do imaginário jurídico afeta a assistência religiosa.

Fazer um resgate psicológico para chegar novamente ao conceito de direito natural no imaginário das pessoas e principalmente dos juristas, é algo que parece cada vez mais distante. Ao que parece estamos em uma era de pós-positivismo o que só complica esse tipo de tentativa.

O pós-positivismo pode até ser visto como um avanço no sentido de resgatar valores e princípios que o positivismo estrito havia, de certa forma, relegado. No entanto, observa-se que o resgate do direito natural no imaginário dos juristas e da população parece cada vez mais distante. Isso aponta para o cerne da dificuldade em resolver questões como a assistência religiosa em hospitais e presídios.

 

1) O Desafio do Resgate do Direito Natural na Era Pós-Positivista 

A era pós-positivista, embora reconheça a importância dos princípios e dos valores na interpretação e aplicação do direito, muitas vezes ainda opera dentro de uma lógica que prioriza a norma posta como ponto de partida.

A busca por um fundamento axiológico, moral ou ético para a lei é presente, mas a linguagem do direito natural, com sua conotação jusnaturalista histórica, pode soar distante ou mesmo "não-científica" para uma parcela significativa da comunidade jurídica.

A secularização da sociedade e o pluralismo de valores também contribuem para a dificuldade de um consenso sobre o que constituiria um "direito natural" universalmente aceito. Se o direito natural remete a uma ordem superior ou a princípios inerentes à razão humana, a diversidade de interpretações sobre essa ordem ou sobre a própria razão pode dificultar sua aceitação como um fundamento inequívoco para a prática jurídica cotidiana.

Assim, o problema não é a ausência de um direito natural, mas a percepção e a aplicação prática desse conceito no dia a dia. Para muitos operadores do direito, mesmo pós-positivistas, o caminho mais cômodo e seguro é o da interpretação da norma positivada, ainda que buscando nela princípios implícitos ou valores constitucionais. Isso, por vezes, leva a uma "acomodação" onde a essência do direito fica submetida à forma de sua positivação.

 

2) Como a Assistência Religiosa se Encaixa Nesse Cenário 

No caso da assistência religiosa em hospitais, a situação é um exemplo emblemático dessa tensão.

O direito é claramente positivado na Constituição (art. 5º, VI), em leis federais (Lei nº 9.982/2000) e até em portarias (Portaria de Consolidação nº 1/2017 do Ministério da Saúde). A questão não é a falta de norma, mas a compreensão e a efetivação dessa norma em sua plenitude, considerando a urgência e a profundidade da necessidade que ela visa atender.

A burocracia e a rigidez na aplicação de regras sobre horários de visita para assistentes religiosos não são resultado de uma falha legislativa em si, mas de uma interpretação que não consegue ir além do texto para abraçar o espírito do direito. O desafio, portanto, reside em como traduzir a importância inegável desse direito – que é natural em sua concepção, fundamental em sua constitucionalização e essencial em sua prática – para uma linguagem que ressoe com a lógica operacional e jurídica predominante.

Talvez o caminho não seja tentar um "resgate psicológico" do direito natural em seu sentido mais clássico, mas sim fortalecer a interpretação humanizadora e principiológica dentro do próprio pós-positivismo. Isso implica enfatizar que a dignidade da pessoa humana e a liberdade de crença, embora positivadas, possuem uma carga axiológica tão poderosa que devem prevalecer sobre formalismos que as esvaziem de conteúdo. Argumentar que a rigidez burocrática leva a uma violação inconstitucional do direito fundamental e a um sofrimento desnecessário pode ser mais eficaz do que uma discussão puramente filosófica sobre o direito natural.

 

3) O Estado não concede um direito que é natural. Deve garantir seu exercício 

Entender que o direito à assistência religiosa em hospitais não é só um mero direito que o Estado em toda a sua amplitude concedeu para as pessoas, ou seja, para os seus súditos é algo essencial. Mas, que parece estar muito longe do que precisamos. Devido ao positivismo extremo as pessoas tendem a acreditar que o Estado está acima de tudo e de todos e que não existe nada que possa delimitá-lo. Entretanto o direito natural é um desses delimitadores.

Essa percepção de que o Estado e o direito positivado são a instância máxima, sem limites intrínsecos, é de fato um entrave à efetividade de direitos que, em sua essência, precedem a própria norma estatal.

 

4) O Desafio da Soberania Estatal e o Esquecimento do Direito Natural 

É fundamental entender que o direito à assistência religiosa não é uma "concessão" graciosa do Estado aos seus "súditos". Pelo contrário, trata-se de um direito inerente à condição humana, que o Estado tem o dever de reconhecer, proteger e garantir. Essa distinção é vital. Se o direito é visto como algo meramente "concedido", o Estado sente-se no direito de regulá-lo, limitá-lo e até mesmo suspendê-lo conforme sua conveniência ou sua interpretação burocrática, sem se submeter a um limite superior.

Essa visão deriva, em grande parte, de uma leitura extrema do positivismo jurídico, onde a lei válida é aquela posta pelo poder soberano do Estado, e não há autoridade superior que possa contestá-la ou delimitá-la. Nesse cenário, a Constituição se torna o ápice da pirâmide normativa, mas seu conteúdo pode ser interpretado de forma literal e restritiva, esvaziando a força de princípios que, embora positivados, têm uma raiz mais profunda.

Entretanto, o direito natural surge precisamente como um desses delimitadores inalienáveis do poder estatal. Ele argumenta que existem valores, princípios e direitos que são inerentes à natureza humana e à justiça, válidos universalmente e independentemente de serem escritos em leis. A liberdade de consciência, a dignidade, a busca por amparo espiritual – esses são direitos que, para os jusnaturalistas, não são criados pelo Estado, mas apenas por ele reconhecidos e protegidos. O Estado, portanto, não está "acima de tudo e de todos"; ele está limitado por esses direitos preexistentes.

 

5) A Consequência: Burocracia versus Dignidade 

A desconsideração ou o "esquecimento" do direito natural no imaginário jurídico e social é o que gera as "brechas legalistas" e os problemas burocráticos. Quando a assistência religiosa é tratada como um mero item de "serviço" regulado por portarias, sujeita a horários rígidos e à conveniência administrativa, ignora-se sua dimensão existencial e a urgência que ela representa para o paciente em seu momento de fragilidade máxima.

A burocracia, nesse contexto, deixa de ser uma ferramenta de organização para se tornar uma barreira à efetivação de um direito fundamental. A prioridade da "rotina hospitalar" sobre a necessidade de um último sacramento ou de uma oração de conforto em face da morte iminente não é uma falha operacional; é uma falha conceitual, um reflexo da incapacidade de reconhecer que certos direitos não podem ser subjugados à conveniência administrativa, pois sua violação atinge a própria essência da dignidade humana.

Resgatar a percepção do direito natural como um limite intrínseco ao poder do Estado e um fundamento para a interpretação de todas as leis é, sim, um desafio complexo na era pós-positivista. Contudo, é um passo essencial para garantir que a justiça e a humanidade prevaleçam sobre a mera formalidade legal, especialmente em contextos tão sensíveis como a saúde e a vida.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Assistência religiosa em hospitais negada. O que fazer, quem pode fazer, quando e onde.


No complexo ambiente hospitalar, onde a ciência médica se entrelaça com a vulnerabilidade humana, o direito à assistência religiosa transcende a mera formalidade legal, consolidando-se como uma prerrogativa essencial da dignidade da pessoa humana e da liberdade de crença, ambos direitos naturais e constitucionais.

No Brasil, a ausência de clareza nas normativas pode transformar essa prerrogativa fundamental em uma fonte de insegurança jurídica, intensificando o sofrimento psíquico e espiritual do paciente e de seus familiares. Não raro, a rigidez burocrática impede que a fé, tão vital em momentos de crise, cumpra seu papel de amparo e consolo.

 

Quem Pode Agir e Por Quê?

Quando o direito à assistência religiosa é negado ou mitigado em ambiente hospitalar, tanto o enfermo e sua família quanto o assistente religioso têm legitimidade para agir.

  • O direito à assistência religiosa é, primariamente, um direito fundamental do paciente (ou de sua vontade presumida, expressa pela família em caso de impossibilidade). A eles, a violação impacta diretamente a liberdade de crença (art. 5º, VI, da Constituição Federal de 1988), a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988) e o direito à assistência espiritual, que são bens jurídicos personalíssimos. A negativa pode causar um sofrimento psíquico e moral incalculável, especialmente em face da terminalidade.
  • O assistente religioso, por sua vez, age em representação de sua fé e em cumprimento de sua missão. A negativa de acesso viola o direito de exercer o ministério religioso em conformidade com a lei, além de frustrar o direito do fiel de receber o suporte. A violação aqui recai sobre a liberdade de exercício de culto e a garantia do direito de acesso, conforme previsto na legislação específica sobre assistência religiosa.

 

Quais Vias de Ação Podem Ser Tomadas?

Não existe um único caminho, e a escolha dependerá da urgência da situação e da gravidade da negativa à assistência.

1.      Diálogo Imediato com a Instituição Hospitalar:

o    Com quem falar: Tentar conversar com a equipe de enfermagem, o médico responsável ou, idealmente, a direção da unidade hospitalar ou a ouvidoria do hospital. É a via mais rápida para resolver uma situação pontual e urgente.

o    O que argumentar: Reforçar a previsão legal do direito à assistência religiosa, mencionando expressamente a Lei Federal nº 9.982, de 14 de julho de 2000, que "Dispõe sobre a prestação de assistência religiosa nas entidades hospitalares públicas e privadas, bem como nos estabelecimentos prisionais civis e militares" (art. 1º), e a Portaria de Consolidação nº 1, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde, que garante o "recebimento de visita de religiosos de qualquer credo" (Art. 4º, Parágrafo Único, XIV). Deve-se, também, salientar a necessidade do paciente, especialmente se a situação for de urgência ou fim de vida, onde a restrição poderia configurar lesão à dignidade.

2.      Denúncia Formal aos Órgãos de Controle e Fiscalização:

o    Ministério Público: O Ministério Público, em suas esferas estadual e federal (MPF), tem o papel de defensor da ordem jurídica e dos direitos sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da Constituição Federal). Denúncias de violação à assistência religiosa podem ser encaminhadas a promotorias ou procuradorias de Justiça especializadas em Direitos Humanos ou Defesa da Saúde, com base na violação do direito à liberdade de religião.

o    Secretarias de Saúde: As Secretarias de Saúde (Municipal e Estadual) são responsáveis pela fiscalização das unidades de saúde sob sua jurisdição (art. 198 da Constituição Federal). Uma denúncia formal à Ouvidoria da Secretaria pode gerar uma investigação e, se for o caso, a aplicação de medidas administrativas.

o    Conselhos Profissionais: Conselhos Regionais de Medicina (CRM) e de Enfermagem (Coren) podem ser acionados para avaliar se houve alguma conduta antiética por parte de profissionais de saúde que, por ação ou omissão, impediram o exercício de um direito legalmente garantido (códigos de ética das respectivas profissões).

o    Disque 100: O Disque Direitos Humanos, coordenado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, é um canal nacional para denúncias de violações de direitos humanos, incluindo discriminação e violações de liberdade religiosa (Lei nº 12.527/2011 - Lei de Acesso à Informação, que visa a transparência e defesa de direitos).

3.      Registro de Boletim de Ocorrência (B.O.):

o    Quando fazer: Embora não haja um crime específico de "negativa de assistência religiosa", a situação pode, em tese, configurar outros tipos de crimes, como abuso de autoridade (Lei nº 13.869/2019, se a conduta for de um agente público sem respaldo legal e com finalidade específica de prejudicar ou beneficiar) ou constrangimento ilegal (art. 146 do Código Penal, se alguém for privado de sua liberdade ou do exercício de um direito mediante violência ou grave ameaça), dependendo das circunstâncias concretas. O BO serve como um registro oficial do fato e pode ser o primeiro passo para uma investigação criminal.

o    Direitos Violados no B.O.: O B.O. documentará a violação da liberdade de crença e da dignidade do paciente, o que pode ser enquadrado nas previsões constitucionais (art. 5º, VI) e nas leis específicas que garantem esse direito.

4.      Ação Judicial:

o    Em casos mais graves ou de reincidência, ou quando as vias administrativas não surtem efeito, pode ser cabível uma ação judicial, seja para garantir o acesso imediato (como um mandado de segurança, previsto no art. 5º, LXIX, da Constituição Federal, para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus ou habeas data, ou uma ação com pedido de tutela de urgência/liminar, conforme art. 300 do Código de Processo Civil), ou para buscar reparação por danos morais (art. 5º, X, da Constituição Federal, e art. 186 do Código Civil).

 

A Perspectiva do "Porquê"

Independentemente de quem tome a iniciativa, a essência do problema reside na colisão entre o direito fundamental do indivíduo de buscar conforto espiritual e a rigidez administrativa das instituições. A efetividade do direito à assistência religiosa em momentos cruciais não deveria depender da força argumentativa de um assistente religioso ou da determinação de uma família em lutar por um direito que já lhes é garantido pela Constituição Federal e por leis específicas. A humanização do cuidado e a interpretação constitucional das normas impõem que os hospitais atuem proativamente para facilitar o acesso, reconhecendo a urgência da fé que, para muitos, é tão vital quanto a urgência médica.

A ausência de clareza nas normativas que prevejam a flexibilização do acesso para assistentes religiosos em situações de urgência e terminalidade continua sendo um desafio a ser superado para a plena efetivação dos direitos fundamentais.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Assistência religiosa e as “brechas legalistas” para impedir um direito constitucional.

Quando um indivíduo se encontra na fragilidade do leito hospitalar, o direito à assistência religiosa emerge como um pilar essencial da dignidade da pessoa humana. No entanto, a ausência de clareza nas normativas pode transformar essa prerrogativa fundamental em uma fonte de insegurança jurídica, intensificando o sofrimento psíquico e espiritual do paciente e de seus familiares. Não raro, a rigidez burocrática impede que a fé, tão vital em momentos de crise, cumpra seu papel de amparo e consolo.

1) A Essência do Direito e Sua Fundamentação Normativa

A garantia da assistência religiosa em ambientes de saúde não se restringe a uma mera liberalidade institucional; ela encontra seu alicerce em múltiplos níveis do ordenamento jurídico brasileiro. Em sua tessitura mais elevada, a Constituição Federal de 1988 eleva a liberdade de crença a um patamar de direito fundamental e cláusula pétrea, irradiando seus efeitos protetivos para todas as esferas da vida civil e, notadamente, para o contexto de reclusão ou de internação hospitalar. Em conformidade com esse preceito magno, a Lei Federal nº 9.982, de 14 de julho de 2000, dispõe especificamente sobre a prestação de assistência religiosa em entidades hospitalares, tanto públicas quanto privadas, e em estabelecimentos prisionais, civis e militares. Adicionalmente, em um nível de regulamentação administrativa do Sistema Único de Saúde (SUS), a Portaria de Consolidação nº 1, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde, ao consolidar normas sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde, reforça explicitamente o direito ao "recebimento de visita de religiosos de qualquer credo". Embora essa Portaria condicione tal direito a que "não acarrete mudança da rotina de tratamento e do estabelecimento e ameaça à segurança ou perturbações a si ou aos outros" (Art. 4º, Parágrafo Único, XIV), a interpretação dessa condição deve ser sempre teleológica, buscando preservar a finalidade do direito fundamental, e não sua restrição desmedida.

2) As Consequências das "Brechas Legalistas": Violação e Angústia Injustificadas

É precisamente na lacuna operacional entre o direito fundamental assegurado pela lei e a ausência de diretrizes administrativas claras para sua efetivação que emergem as "brechas legalistas". Essas não são meras imperfeições técnicas; elas representam pontos de fragilidade que podem levar à violação do direito e à imposição de sofrimento adicional a pacientes e familiares em momentos de extrema vulnerabilidade.

Quando as normativas deixam a critério exclusivo da unidade hospitalar a definição de horários e condições de acesso para assistentes religiosos, sem contemplar a urgência da fé, abre-se espaço para interpretações restritivas que desconsideram a natureza imprevisível da doença e da morte. Em um cenário onde a vida e a morte não seguem agendas pré-estabelecidas, a imposição de horários rígidos para a entrada de assistentes religiosos, desprovida de flexibilidade para casos de urgência ou terminalidade, pode configurar um impedimento efetivo e inconstitucional do direito.

Tal restrição acarreta consequências graves: primeiro, uma violação da dignidade humana, pois nega-se o amparo espiritual no momento de maior necessidade, desrespeitando a totalidade do ser humano, que compreende dimensões físicas, psicológicas e espirituais. Segundo, um aumento do sofrimento psíquico e espiritual, pois para muitos pacientes e suas famílias, a impossibilidade de receber os últimos sacramentos, orações ou o conforto de sua fé em momentos críticos pode gerar profunda angústia, desespero e a sensação de que um direito essencial para sua concepção de salvação ou transição espiritual está sendo negado. Por fim, uma insegurança jurídica para o cidadão, visto que a ausência de clareza gera incerteza quanto à efetivação de um direito fundamental, deixando o paciente e sua família à mercê de interpretações variáveis e, por vezes, discricionárias das normas internas hospitalares.

A efetividade do direito à assistência religiosa demanda, portanto, que as normativas administrativas transcendam o mero formalismo e incorporem a sensibilidade necessária para garantir que a urgência da fé seja reconhecida e atendida. Somente assim o apoio espiritual será sempre acessível, especialmente nos momentos mais delicados da jornada de saúde do indivíduo.

  

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Assistência religiosa e as “brechas legalistas” para impedir um direito constitucional.

 

Quando um indivíduo se encontra na fragilidade do leito hospitalar, o direito à assistência religiosa emerge como um pilar essencial da dignidade da pessoa humana. No entanto, a ausência de clareza nas normativas pode transformar essa prerrogativa fundamental em uma fonte de insegurança jurídica, intensificando o sofrimento psíquico e espiritual do paciente e de seus familiares. Não raro, a rigidez burocrática impede que a fé, tão vital em momentos de crise, cumpra seu papel de amparo e consolo.

A Essência do Direito e Sua Fundamentação Normativa

A garantia da assistência religiosa em ambientes de saúde não se restringe a uma mera liberalidade institucional; ela encontra seu alicerce em múltiplos níveis do ordenamento jurídico brasileiro. Em sua tessitura mais elevada, a Constituição Federal de 1988 eleva a liberdade de crença a um patamar de direito fundamental e cláusula pétrea, irradiando seus efeitos protetivos para todas as esferas da vida civil e, notadamente, para o contexto de reclusão ou de internação hospitalar. Em conformidade com esse preceito magno, a Lei Federal nº 9.982, de 14 de julho de 2000, dispõe especificamente sobre a prestação de assistência religiosa em entidades hospitalares, tanto públicas quanto privadas, e em estabelecimentos prisionais, civis e militares. Adicionalmente, em um nível de regulamentação administrativa do Sistema Único de Saúde (SUS), a Portaria de Consolidação nº 1, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde, ao consolidar normas sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde, reforça explicitamente o direito ao "recebimento de visita de religiosos de qualquer credo". Embora essa Portaria condicione tal direito a que "não acarrete mudança da rotina de tratamento e do estabelecimento e ameaça à segurança ou perturbações a si ou aos outros" (Art. 4º, Parágrafo Único, XIV), a interpretação dessa condição deve ser sempre teleológica, buscando preservar a finalidade do direito fundamental, e não sua restrição desmedida.

As Consequências das "Brechas Legalistas": Violação e Angústia Injustificadas

É precisamente na lacuna operacional entre o direito fundamental assegurado pela lei e a ausência de diretrizes administrativas claras para sua efetivação que emergem as "brechas legalistas". Essas não são meras imperfeições técnicas; elas representam pontos de fragilidade que podem levar à violação do direito e à imposição de sofrimento adicional a pacientes e familiares em momentos de extrema vulnerabilidade.

Quando as normativas deixam a critério exclusivo da unidade hospitalar a definição de horários e condições de acesso para assistentes religiosos, sem contemplar a urgência da fé, abre-se espaço para interpretações restritivas que desconsideram a natureza imprevisível da doença e da morte. Em um cenário onde a vida e a morte não seguem agendas pré-estabelecidas, a imposição de horários rígidos para a entrada de assistentes religiosos, desprovida de flexibilidade para casos de urgência ou terminalidade, pode configurar um impedimento efetivo e inconstitucional do direito.

Tal restrição acarreta consequências graves: primeiro, uma violação da dignidade humana, pois nega-se o amparo espiritual no momento de maior necessidade, desrespeitando a totalidade do ser humano, que compreende dimensões físicas, psicológicas e espirituais. Segundo, um aumento do sofrimento psíquico e espiritual, pois para muitos pacientes e suas famílias, a impossibilidade de receber os últimos sacramentos, orações ou o conforto de sua fé em momentos críticos pode gerar profunda angústia, desespero e a sensação de que um direito essencial para sua concepção de salvação ou transição espiritual está sendo negado. Por fim, uma insegurança jurídica para o cidadão, visto que a ausência de clareza gera incerteza quanto à efetivação de um direito fundamental, deixando o paciente e sua família à mercê de interpretações variáveis e, por vezes, discricionárias das normas internas hospitalares.

A efetividade do direito à assistência religiosa demanda, portanto, que as normativas administrativas transcendam o mero formalismo e incorporem a sensibilidade necessária para garantir que a urgência da fé seja reconhecida e atendida. Somente assim o apoio espiritual será sempre acessível, especialmente nos momentos mais delicados da jornada de saúde do indivíduo.

 

terça-feira, 3 de junho de 2025

Assistência religiosa não é uma mera formalidade legal.

No cenário hospitalar, onde a ciência médica se entrelaça com a vulnerabilidade humana, o direito à assistência religiosa transcende a mera formalidade legal, consolidando-se como uma prerrogativa essencial da dignidade da pessoa humana e da liberdade de crença. Em uma nação com a vasta e plural religiosidade do Brasil, a dimensão espiritual e a fé representam, para incontáveis indivíduos, um pilar inestimável de suporte psíquico e emocional diante do sofrimento, da enfermidade e da finitude da existência.

A Essência Inalienável do Direito e Sua Ampla Fundamentação Normativa

A garantia da assistência religiosa em ambientes de cuidado à saúde não se restringe a uma mera liberalidade institucional ou a uma concessão administrativa; ela encontra seu alicerce em múltiplos níveis do ordenamento jurídico brasileiro. Em sua tessitura mais elevada, a Constituição Federal de 1988 eleva a liberdade de crença a um patamar de direito fundamental e cláusula pétrea, irradiando seus efeitos protetivos para todas as esferas da vida civil e, notadamente, para o contexto de reclusão ou de internação hospitalar. Em conformidade com esse preceito magno, a Lei Federal nº 9.982, de 14 de julho de 2000, dispõe especificamente sobre a prestação de assistência religiosa em entidades hospitalares, tanto públicas quanto privadas, e em estabelecimentos prisionais, civis e militares.

Em âmbito estadual uma enormidade de leis em quase todos os Estados reitera e aprofunda essa garantia, consolidando a matéria no âmbito do Estado. Adicionalmente, em um nível de regulamentação administrativa do Sistema Único de Saúde (SUS), a Portaria de Consolidação nº 1, de 28 de setembro de 2017, do Ministério da Saúde, ao consolidar normas sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde, reforça explicitamente o direito ao "recebimento de visita de religiosos de qualquer credo" (artigo 6º, VIII). Embora essa Portaria condicione tal direito a que "não acarrete mudança da rotina de tratamento e do estabelecimento e ameaça à segurança ou perturbações a si ou aos outros" (Art. 4º, Parágrafo Único, XIV), a interpretação dessa condição deve ser sempre teleológica, buscando preservar a finalidade do direito fundamental.

A Dimensão Profunda da Fé no Processo de Cuidado e as Consequências das Lacunas Operacionais

Para o indivíduo hospitalizado, a fé e a espiritualidade não constituem meros acessórios; são, frequentemente, componentes intrínsecos de sua identidade, de sua resiliência e de seu bem-estar integral. Em face da vulnerabilidade imposta pela doença grave ou crônica, e da confrontação com a própria finitude, a presença e o suporte de um assistente religioso oferecem um consolo existencial que transcende o âmbito da terapêutica convencional. Esse amparo auxilia no processamento da dor, na busca por sentido, na expressão de arrependimentos, na realização de ritos de passagem essenciais para sua cosmogonia, ou simplesmente na presença compassiva que alivia a solidão e o medo.

É nesse contexto de profunda necessidade que as "brechas legalistas" ou a carência de detalhamento operacional nas normativas, que por vezes transferem para as unidades hospitalares a prerrogativa quase exclusiva de definir horários e condições de acesso para assistentes religiosos, revelam-se mais do que uma mera omissão técnica. Essa delegação, sem diretrizes claras para situações de urgência e terminalidade, pode levar a uma restrição indevida e potencialmente inconstitucional de um direito fundamental. A vida e a morte não se subordinam a agendas administrativas ou a horários fixos de visitação.

Impedir ou dificultar o acesso a esse suporte espiritual em momentos cruciais de um processo de saúde-doença, sob a égide de uma interpretação excessivamente rígida da "rotina hospitalar", pode configurar uma limitação arbitrária de um direito fundamental. Tal conduta desconsidera a urgência intrínseca da dimensão espiritual que, para muitos, se manifesta com maior intensidade justamente quando a vida se aproxima de seu desfecho. A efetividade plena do direito à assistência religiosa demanda, portanto, uma interpretação e aplicação das normas que sejam permeadas pela sensibilidade, pela humanização e pelo reconhecimento da premente necessidade humana de amparo espiritual, que não se submete a meras conveniências administrativas. A dignidade do paciente exige que sua fé seja respeitada e facilitada em todos os momentos, especialmente nos mais delicados.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Assistência religiosa e os desafios além da constitucionalidade.

 

Em momentos de fragilidade humana, como a doença e a iminência da morte, a assistência religiosa assume um papel que transcende o mero legalismo, tocando a essência da dignidade e da liberdade individual. No Brasil, embora a Constituição de 1988 em seu artigo 5, VI e VII e leis como a Federal Nº 9.982/2000 e tantas outras estaduais garantam o direito à assistência religiosa em hospitais e presídios, a prática revela uma complexidade que vai muito além da letra fria da lei.

O Direito que Transcende o Legalismo

O direito à assistência religiosa não é apenas uma prerrogativa jurídica; ele é um direito fundamental e pétreo, enraizado na própria natureza humana e na profunda religiosidade de nossa população. Para milhões de brasileiros, a fé é um pilar essencial que oferece consolo, esperança e um senso de propósito diante do sofrimento e da finitude. Em um leito hospitalar, a busca por significado na vida e na morte, a necessidade de ritos de passagem e a crença na salvação espiritual tornam a presença de um ministro religioso não apenas um conforto, mas uma necessidade vital.

A Lacuna da Prática e Suas Consequências

As normativas existentes, como a Portaria de Consolidação nº 1/2017 do Ministério da Saúde (artigo 6º, VIII), asseguram o direito à visita religiosa, desde que não "acarrete mudança da rotina de tratamento e do estabelecimento e ameaça à segurança ou perturbações". Essa ressalva, embora compreensível do ponto de vista administrativo, na prática, transfere para as unidades hospitalares a prerrogativa de definir horários e condições de acesso.

É precisamente nessa delegação que reside uma das maiores fragilidades do sistema. Em um cenário onde a vida e a morte não seguem agendas pré-estabelecidas, a imposição de horários rígidos para a entrada de assistentes religiosos pode resultar em um impedimento efetivo do direito em seus momentos de maior urgência. Negar a um paciente gravemente enfermo o suporte de sua fé nos seus últimos instantes é, em última análise, um ato que fere a dignidade humana e desconsidera a dimensão espiritual que para muitos é indissociável da sua própria existência.

Humanização e o Desafio da Efetivação

A questão, portanto, não é apenas de "lacuna legal", mas de uma brecha de sensibilidade e humanização. A burocracia e a rigidez administrativa não podem sobrepor-se ao desespero de um paciente e sua família em busca de amparo espiritual, especialmente quando o tempo é o recurso mais escasso.

Para que o direito à assistência religiosa seja plenamente efetivado, é crucial que as normativas administrativas do setor da saúde transcendam o "legalismo" e incorporem a compreensão profunda do porquê esse direito existe. Isso exigiria a elaboração de diretrizes mais claras e sensíveis que garantam o acesso irrestrito de assistentes religiosos em situações de urgência e terminalidade, sem comprometer a segurança, mas reconhecendo a prioridade da dimensão espiritual em momentos tão críticos. Somente assim o sistema de saúde poderá, de fato, acolher o indivíduo em sua totalidade, respeitando sua fé e sua dignidade até o último suspiro.