segunda-feira, 7 de maio de 2012

Os efeitos civis do casamento religioso a partir do Código Civil de 2002 por Pe. Demétrio Gomes.


Introdução
Segundo a doutrina católica, há uma estreita implicação entre as leis naturais, divinas e humanas ao tratar-se do casamento. Neste sentido escreve Santo Tomás de Aquino: “Matrimonium, in quantum est sacramentum, statuitur iure divino; in quantum est officium naturae, statuitur lege naturae; in quantum est officium communitatis, statuitur iure civile”[i]. Este fundamento doutrinário, fundamenta a existencia de uma implicação entre as diversos âmbitos – social, religioso, etc. -, quando se aborda o tema do casamento.
Nos dias atuais, onde se está muito em voga também no Brasil o debate sobre as relações entre a religião e o Estado laico, faz-se interessante destacar a atual legislação a respeito deste tema especificamente nos que diz respeito ao casamento, já que é um assunto, como mencionamos acima, que toca tanto a esfera religiosa, quanto a esfera civil.
Ainda com todas as críticas daqueles que identificam na prática o Estado laico com um Estado anti-religião, pode-se dizer que na atual legislação brasileira a separação entre religião e Estado é bem atenuada, fazendo-se justiça à história do país, e à realidade profundamente religiosa da população em sua maioria.
Essa atenuação aparece, por exemplo, em vários dispositivos da Constituição de 1988, vigente atualmente: o art. 5º, VI, estabelece ser inviolável a liberdade de consciência de de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos, e garantindo a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; o art. 5º, VII, garante a assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação; o art. 226, § 2º, garante a eficácia civil de matrimônios religiosos transcritos.
O regime de casamento no Brasil e sua evolução histórica[ii]
Para contextualizar as disposições do atualmente vigente Código Civil de 2002, é interessante ter em conta a evolução histórica do regime de casamento no Brasil até a promulgação deste Código.
Até o ano de 1890 o casamento no Brasil obedeceu unicamente a legislação canônica. O próprio imperador, D. Pedro I, odenava, por decreto, a observância das disposições do Concílio de Trento sobre o matrimônio e das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Tenha-se em conta que a religião católica era a religião oficial do Império.
Em 1858, o então Ministro da Justiça Diogo de Vasconcelos encaminhou um projeto estabelecendo o casamento civil, obrigatório aos não católicos, e facultativo entre um acatólico e um católico que não quisessem casar-se segundo as normas canônicas. Este projeto foi aprovado e transformado na lei n. 1.144, de 11 de setembro de 1861, regulamentada pelo decreto n. 3.069, de 17 de abril de 1863. Essa lei retirou da Igreja a exclusividade do casamento religioso permitindo que outras religiões tivessem seus casamentos reconhecidos pelo Estado, produzindo efeitos civis.
O decreto 181, de 24 de janeiro de 1890 instituiu o casamento civil no Brasil. Assim rezava o seu artigo 108: “Fica, em todo o caso, salvo aos contaentes observar, antes ou depois do casamento civil, as formalidades e cerimônias prescriptas para celebração do matrimônio pela religião deles”. O art. 109: “Desta mesma data por diante todas as causas matrimoniais ficarão competindo exclusivamente à jurisdição civil”. Nesta lei fala-se pela primeira vez em divórcio, para indicar a separação de corpos. Certamente, tal decreto é um reflexo do espírito positivista que entrava em vigos com a instituição da República no Brasil.
Não tardou em aparecer vozes contrárias às disposições do Estado da parte dos católicos. Aquele ordenava a “obrigatoriedade da precedência do ato civil a qualquer ritual religioso”[iii].
Muitos sacerdotes descumpriam as determinações do Estado, e eram punidos, de acordo com o primeiro Código Penal da República, que no art. 284 contemplava com prisão e multa os infratores que celebrassem “as cerimônias religiosas do csento antes do ato civil”. É necessário ter em conta que, nesta época, a mesma Igreja proibía a celebração civil antes da canônica. Hoje a Igreja determina que não se celebre o casamento se este não puder ser reconhecido ou celebrado de acordo com as leis civis (CIC 83, c. 1071, n.2).
A Constituição outorgada pelo Executivo, votada e promulgada pela Assembléia Constituinte, retirou do texto a obrigatoriedade da precedência da celebração civil do casamento tornando assim inconstitucionais as disposições respectivas do Código Penal.
Até 1934, o casamento canônico, de único e exclusivo, passa a não ter nenhum valor jurídico. “Passou-se a conviver com duas realidades: o casamento religioso e o casamento civil (…). Face às duas jurisdições, o povo brasileiro passou a valorizá-las mantendo a sua crença e acatando a obrigação legal (…). Casam-se duas vezes, sob as duas jurisdições: a da Igreja e a do Estado”[iv].
Com a Constituição de 34, permitindo com que o casamento de qualquer confissão religiosoa, cujo rito não contrariasse a ordem pública e os bons costumes, produzisse os mesmos efeitos que o casamento civil, desde que se observasse as disposições civis na habilitação dos nubentes, na verificação de impedimentos, no processo de oposição e na inscrição no Registro Civil. Não havia, no entanto, possibilidade de habilitação posterior à celebração religiosa do casamento.
Na Constituição de 1946, já se permitia o Registro Civil após a celebração religiosa, produzindo efeitos civis ex tunc. A Constituição de 1967 não trouxe alterações substanciais frente à anterior.
A vigente Constituição de 1988 confirma a liberdade religiosa em todo o território nacional:
Art. 5. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias
(…)
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º – O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º – O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
O casamento religioso com efeitos civis hoje: o Código Civil de 2002[v]
A relação entre casamento religioso e seus efeitos civis estão regulados no atual Código Civil nos artigos 1.515 e 1.516:
Art. 1.515. O casamento religioso, que atender às exigências da lei para a validade do casamento civil, equipara-se a este, desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua celebração.
Art. 1.516. O registro do casamento religioso submete-se aos mesmos requisitos exigidos para o casamento civil. § 1º O registro civil do casamento religioso deverá ser promovido dentro de noventa dias de sua realização, mediante comunicação do celebrante ao ofício competente, ou por iniciativa de qualquer interessado, desde que haja sido homologada previamente a habilitação regulada neste Código. Após o referido prazo, o registro dependerá de nova habilitação.
§ 2º O casamento religioso, celebrado sem as formalidades exigidas neste Código, terá efeitos civis se, a requerimento do casal, for registrado, a qualquer tempo, no registro civil, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente e observado o prazo do art. 1.532 .
§ 3º Será nulo o registro civil do casamento religioso se, antes dele, qualquer dos consorciados houver contraído com outrem casamento civil.
“O casamento religioso recebe esta denominação porque a autoridade que preside a cerimônia é ministro eclesiástico. Contudo, as normas que o disciplinam são civis, cogentes, de ordem pública. Isto quer dizer que a autoridade religiosa não pode dispensar as formalidades exigidas por lei civil. Deve observá-las e, em obediência a elas, celebrar o matrimônio”.[vi]
Qual é o procedimento para que um casamento religioso hoje possua efeitos civis?
Exitem duas modalidades de realização do casamento religioso com efeito civil. A primeira é através de habilitação prévia, a segunda, de posterior. O art. 1.516, no § 1º, cuida da habilitação prévia e no 2º da habilitação posterior:
Com relação à habilitação prévia, primeiramente os nubentes deverão proceder à habilitação perante o Cartório do Registro Civil das Pessoas naturais, da mesma maneira como se dá as exigências para o casamento civil.
Este procedimento tem o objetivo de declarar e certificar que os nubentes não possuem impedimentos, estando aptos para o casamento. Para tanto, devem apresentar a documentação exigida pelo art. 180, do CC/2002:
Art. 180 – A habilitação para casamento faz-se perante o oficial do registro civil, apresentando-se os seguintes documentos:
I – certidão de idade ou prova equivalente;
II – declaração do estado, do domicílio e da residência atual dos contraentes e de seus pais, se forem conhecidos;
III – autorização das pessoas sob cuja dependência legal estiverem, ou ato judicial que a supra (arts. 183, XI, 188 e 196);
IV – declaração de duas testemunhas maiores, parentes, ou estranhos, que atestem conhecê-los e afirmem não existir impedimento, que os iniba de casar;
V – certidão de óbito do cônjuge falecido, da anulação do casamento anterior ou do registro da sentença de divórcio.
Parágrafo único – Se algum dos contraentes houver residido a maior parte do último ano em outro Estado, apresentará prova de que o deixou sem impedimento para casar, ou de que cessou o existente.
Regularmente processado e não havendo impedimentos, o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais expede o certificado de habilitação, que deverá ser entregue à autoridade religiosa, para que o arquive após anotar a data da celebração, conforme preceitua o art. 73, da Lei n. 6.015/73. Esse casamento deverá ser celebrado num prazo mínimo de três meses a contar da data do certificado de habilitação.
Com respeito à habilitação posterior – ainda desconhecida para a maioria da população brasileira -, primeiro se realiza a cerimônia religiosa, para após haver a competente habilitação e, por fim, a inscrição do casamento religioso no registro público.
“Para compreender o processo de consolidação do princípio da liberdade religiosa, no âmbito do Código Civil de 2002, necessário destacar que a lei se utilizou, no art. 1.516, § 1º, do termo “celebrante”, sem vincular a qualquer religião específica, ou seja, não estabeleceu qual seria a autoridade religiosa competente para a celebração. Isto porque, uma vez desregulada a religião pelo Estado, cabe aos indivíduos nomearem as autoridades religiosas e forças religiosas, a partir das suas práticas devocionais, e não mais ao Estado, ao qual cabe apenas verificar se estão presentes os requisitos postos, no art. 1.516, pelo legislador”[vii].
Conclusão
Cabe observar que a nova codificação não fala mais de “casamento religioso com efeitos civis”. O que se admite agora é que o casamento religioso possa produzir efeitos civis como se fosse casamento civil[viii].
Não existe nas denominações religiosas, por outro lado, duas formas de casamento: um meramente religioso e outro religioso com efeitos civis. O casamento religioso é único, podendo produzir ou não efeitos civis, desde que o desejam e satisfaçam os nubentes as exigências legais[ix].
Resumindo a normativa atual do CC/2002, pode-se dizer que: “a atribuição de efeitos civis ao casamento religioso continua a exigir três requisitos principais: vontade do casal, satisfação das exigências para o casamento segundo a lei civil e inscrição do casamento religioso no registro público. E dois são os momentos em que esses requisitos podem ser demonstrados à autoridade civil: antes ou depois da celebração do casamento religioso, portanto, com habilitação prévia ou posterior. Em quaisquer das modalidades, habilitação antecedente ou posterior, os efeitos civis são produzidos a partir da data da celebração”.[x]
Para complementar o que afirmamos até aqui, com o novo Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil, cabe mencionar o que está referido no art. 12 do mesmo. Isto é, que o casamento celebrado em conformidade com as leis canônicas, que atender também as exigências estabelecidas pelo direito brasileiro para contrair o casamento, produz os efeitos civis, desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data da celebração. O que está em pleno acordo com o afirmado no Código Civil. O § 1º afirma que a homologação das sentenças eclesiásticas em matéria matrimonial, confirmadas pelo órgão de controle superior da Santa Sé, será efetuada nos termos da legislação brasileira sobre homologação de sentenças estrangeiras.

[i] In IV. Sent. Dist. 34. a.2. q. I. ad.4.
[ii] Para esta parte do trabalho: VASCONCELOS, A.S. Direito matrimonial comparado. Canônico-Civil. Maanaim. Rio de Janeiro, 2007. pp. 173-180.
[iii] Constituição de 1890, art. 72, § 4º.
[iv] CARVALHO, C.C., Efeitos civis do casamento religioso, Revista Direito e Pastoral, n. 48, p.25. Rio de Janeiro, 2004. In: VASCONCELOS, A.S. Ibidem.
[v] Para este tema: Cf. BRANDÃO, D.V.C., Do casamento religioso com efeitos civis e o novo Código Civil, in Ius Navegandi, http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2662.
[vi] Idem.
[vii] Kowalik, A., Efeitos civis do casamento religioso no Brasil. Arquivo pessoal.
[viii] Cf. VASCONCELOS, A.S., Direito matrimonial comparado. Canônico-Civil. Maanaim. Rio de Janeiro, 2007. p. 180.
[ix] Cf. Kowalik, A., Ibidem.
[x] CUNHA, C., Efeito Civil do Casamento Religioso, in Direito&Pastoral, Ano XVIII (2004), n° 48, p. 33.

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