Um ponto que considero crucial nesse Motu Proprio Mitis Iudex Dominus Iesus é
a sugestão ou proposta, que o Papa Francisco faz da criação de uma pastoral
judiciária ou algo que a valha. A ideia é interessante, entretanto é preciso
que paróquias e Dioceses entendam que o statu
quo deve mudar, especialmente referente ao trabalho e atuação da pastoral
familiar.
Ao final do Motu Proprio o Papa abre um adendo específico e anexo ao documento,
embora esteja depois do final dele. Esse conjunto de regras lançadas foi
nomeado de “Regras de procedimento ao tratar das causas de nulidade matrimonial”.
Não há muito o que se explicar quanto a sugestão em si, já que o próprio Papa,
bem resumidamente, já o fez muito bem. Entretanto, há muito o que se comentar
sobre as formas de colocar isso em prática. Vejamos como o Papa introduz essa
parte do documento:
“A III Assembleia Geral
Extraordinária do Sínodo dos Bispos, celebrada no mês de Outubro de 2014,
constatou a dificuldade dos fiéis em chegar aos tribunais da Igreja. Uma vez
que o Bispo, à semelhança do Bom Pastor, tem obrigação de ir ao encontro dos
seus fiéis que precisam de particular cuidado pastoral, dada por certa a
colaboração do Sucessor de Pedro e dos Bispos em difundir o conhecimento da
lei, pareceu oportuno oferecer, juntamente com as normas detalhadas para
a aplicação do processo matrimonial, alguns instrumentos para que a ação dos
tribunais possa dar resposta às exigências daqueles fiéis que pedem
a verificação da verdade sobre a existência ou não do vínculo do seu matrimónio
falido.”
Pois bem, a parte destacada serviu
justamente para mostrar que o Papa está deixando claro que, contrariamente a um
Tribunal secular, o Tribunal Eclesiástico não deve e não pode ficar esperando
que os seus jurisdicionados o procurem, uma vez que o Tribunal Eclesiástico
precisa ser um Tribunal que busca a verdade e a manifesta acima de tudo e, uma
vez que é regido pelo Bispo, deve agir em semelhança ao Bom Pastor que vai em
busca das ovelhas. Enfim, sabemos que na prática nem tudo ocorre como deveria,
entretanto, é assim que deveria ser e é sob esse ponto de vista que o Papa
Francisco diz que está oferecendo “alguns instrumentos para que a ação dos
Tribunais possa dar resposta (...)”. Na sequência, dentro do documento, o Papa
elenca alguns artigos que serão de interessante leitura para a futura pastoral
judiciária.
Art. 1. O Bispo, em virtude do cân.
383 § 1, é obrigado a seguir com ânimo apostólico os esposos separados ou
divorciados que, pela sua condição de vida, tenham eventualmente abandonado a
prática religiosa. Ele partilha, portanto, com os párocos (cf. cân. 529 § 1) a
solicitude pastoral para com esses fiéis em dificuldade.
É regra que o Bispo precisa se
preocupar e buscar os casais que se separaram e/ou tenham abandonado a prática
religiosa. Não é uma questão de visão pastoral de cada Bispo em sua diocese. É
uma regra que deve ser seguida. Obviamente que é impossível para um Bispo
pessoalmente desenvolver esse trabalho, dadas as dimensões e principalmente o
tamanho das populações de suas Dioceses. É para isso que as Dioceses são
divididas em Vicariatos, Foranias ou algo que as valha, e essas são divididas
em paróquias. É necessário que o Bispo tenha um programa pastoral de busca e
aproximação desses fiéis. Essa busca e aproximação é feita, normalmente, através
da pastoral familiar em suas diversas atividades que variam de região para
região e até de paróquia para paróquia. A questão é que é preciso que exista
essa atividade pastoral intensa e cada vez mais intensa, já que esses casos tem
aumentado de uma maneira assustadora nos últimos anos e tende a piorar.
Na sequência o Papa continua o seu
raciocínio:
Art. 2. A investigação preliminar ou
pastoral, dirigida ao acolhimento nas estruturas paroquiais ou diocesanas dos
fiéis separados ou divorciados que duvidam da validade do seu matrimônio ou
estão convencidos da nulidade do mesmo, visa conhecer a sua condição e recolher
elementos úteis para a eventual celebração do processo judicial, ordinário ou
mais breve. Tal investigação desenrolar-se-á no âmbito da pastoral matrimonial
diocesana de conjunto.
Aqui o Papa já desenha não só linhas
gerais, mas deixa claríssimo que é preciso que se desenvolva uma atividade
pastoral paroquial ou diocesana junto aqueles que consideram, duvidam ou mesmo
estão convencidos da invalidade de seus matrimônios. Essa estrutura paroquial e
diocesana simplesmente não existe nesses moldes. O que é corriqueiro é que uma
pessoa ao duvidar da validade de seu matrimônio procure o padre da paróquia ou
comunidade. O paroquiano só fica sabendo que é possível que seu matrimônio
tenha sido nulo porque alguém um dia comentou ou ficou sabendo de alguma forma
diversa da forma correta, ou seja, fora de um grupo que realmente saiba o que
está falando ou fazendo.
Enfim, o fiel busca o padre e esse,
muitas vezes sem ter a mínima ideia do que realmente é uma nulidade, o que é
uma triste realidade, encaminha para o Tribunal ou Câmara Eclesiástica mais
próxima e se livra do problema como se tivesse lavado as mãos depois de uma
refeição gordurosa. Esse fiel, firme no que o “seu padre” afirmou, chega no
Tribunal cheio de confiança de que seu matrimônio é nulo, sendo que na maioria
das vezes sequer existe a mínima possibilidade de ser.
O que mais se vê são pessoas,
encaminhadas pelos padres ou não, chegarem aos Tribunais alegando nulidade por
adultério que iniciou depois de anos de casados; incompatibilidade de gênios;
homossexualismo após anos de matrimônio e por aí vai. A lista é realmente muito
grande.
A proposta do Santo Padre é
justamente que exista nas paróquias, preferencialmente, mas nas Dioceses se não
for possível em âmbito menor, um grupo de pessoas que possam trabalhar, atender
e acompanhar essas pessoas e fazer uma espécie de filtragem. Para isso, é
obvio, é preciso muita formação e empenho de todos para que não piorem uma
situação que já é delicada em seu nascedouro.
Esse ponto colocado pelo Papa é de
crucial importância e de interessante prática porque, uma vez que o Bispo não
tem liberdade para se movimentar dentro do processo judicial, já que são regras
jurídico-canônicas não competem a ele, Bispo, modificar, suprimir ou adicionar,
no âmbito pastoral o Bispo é amplamente livre para trabalhar conforme considere
melhor para a realidade local.
Na sequência o Santo Padre começa até
mesmo a delimitar alguns pontos e formatos para esse tipo de trabalho.
Art. 3. A mesma investigação será
confiada a pessoas consideradas idóneas pelo Ordinário do lugar, dotadas de
competências mesmo se não exclusivamente jurídico-canônicas. Entre elas,
conta-se em primeiro lugar o pároco próprio ou aquele que preparou os cônjuges
para a celebração das núpcias. Esta função de consulta pode ser confiada também
a outros clérigos, consagrados ou leigos aprovados pelo Ordinário do lugar.
Certamente que não é qualquer pessoa
que poderá fazer parte de um grupo como esse. É preciso vivência religiosa,
conhecimento católico e especialmente idoneidade reconhecidamente considerada.
É importante que essas coisas existam. Claro que será preciso um certo
conhecimento jurídico-canônico já que estamos falando de questões jurídico-canônicas,
entretanto, o próprio Papa informa que esse não é o essencial, mas o restante
é. Não basta ser idôneo e não parecer idôneo, infelizmente é assim que as
coisas funcionam. As pessoas não vão confiar em outras pessoas leigas como elas
para abrir suas vidas, contar problemas familiares que são, muitas vezes, extremamente
particulares, sendo que essas pessoas podem não ter uma fama lá muito boa. A
idoneidade das pessoas que servirão em uma pastoral assim é essencial.
Na sequência, dentro desse mesmo
artigo, fica claro que esse trabalho deve ser iniciado até mesmo antes do
matrimônio acontecer. Esse é um problema antigo que paróquias de todo o mundo
sofrem. Os casais fazem um “curso de noivos” ou “encontro de noivos” que dura
uma tarde ou um final de semana. Esse acompanhamento deve ser muito mais extenso
e muito mais próximo que poucas horas de obrigação em uma sala fechada. As
pessoas precisam se casar sabendo o que é o sacramento do matrimônio. É preciso
entender claramente a dimensão religiosa e a importância para a salvação de
cada um dos noivos a atitude de buscar o sacramento.
Voltando agora para a pastoral
familiar e os reflexos que nela podem causar essa outra forma pastoral que o
Papa Francisco propõe, é preciso, antes de tudo, entender que as pastorais
familiares estão defasadas em sua estrutura quando pensam em ser um grupo
fechado de formação fechada em uma sala fechada de uma paróquia ou comunidade.
A pastoral familiar, segundo novas normas do Papa, deve ser uma pastoral de
saída. Diferente de outras que trabalham internamente, a pastoral familiar deve
buscar as famílias, estejam elas inteiras, dilaceradas, machucadas ou
totalmente esmagadas por conceitos que passam ao largo do que é realmente uma
família.
É nesse ponto que a pastoral familiar
deve abrigar esse novo grupo que precisa acompanhar de perto os noivos, não
para dar dicas de um bom relacionamento, mas mais que isso, mostrar o
verdadeiro significado da família e a profundidade santificadora do sacramento
do matrimônio. Da mesma forma deve abrigar o grupo que irá acompanhar e discernir
com o casal que pensa e entende que seu matrimônio é nulo.
Portanto, a pastoral judiciária é
essencial para um mundo em que as coisas acontecem cada vez mais rápido e as
relações e relacionamentos, não acompanhando essa velocidade, tendem a ficar
para trás e obsoletos. Ela servirá para resgatar esses conceitos, mostrar o
caráter essencial da família e sua profundidade santificadora.
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