quarta-feira, 13 de abril de 2016

O fim da dupla sentença concordante no Motu Proprio Mitis Iudex Dominus Iesus.

Um ponto que elevou os debates sobre essas mudanças no processo de nulidade matrimonial foi a extinção da necessidade de dupla sentença concordante a partir do Motu Proprio Mitis Iudex Dominus Iesus. Tratava-se de um princípio processual canônico que foi consagrado no Código de Direito Canônico de 1917 e continuou no Código de 1983.

Primeiro vamos à explicação do que vem a ser essa dupla sentença concordante. O conceito não é complicado e se assemelha muito ao duplo grau de jurisdição que temos no Direito Estatal. Basicamente é a ideia, mais que isso, a regra, que após uma sentença que decida declarar a nulidade do matrimônio deve vir outra sentença que concorde com a primeira. Só a partir daí é que a decisão passa a ser executiva, ou seja, passa a vigorar.

A discussão que muitos trouxeram foi que a retirada dessa exigência passa a inverter a ótica no processo de nulidade matrimonial. Passaria, na visão desses, a vigorar a primazia da vontade dos cônjuges sobre a verdade real do matrimônio. Veremos que não se trata de uma verdade tão inconteste assim como querem fazer parecer, até porque, mesmo que fosse como dizem, nossos Bispos também são sucessores dos apóstolos assim como o Papa, mesmo que não tenham o poder entregue a Pedro.

Relatórios publicados no ano de 2014 referentes a 2012 revelaram que nos EUA e Canadá 99% dos processos com procedência pela nulidade foram confirmados na segunda sentença. Na Europa esse número vai para 93%, e no resto do mundo, como um todo, cerca de 97%, ou seja, muito dificilmente uma segunda sentença não confirma a primeira. Os dados podem ser confirmados em sites especializados e facilmente encontrados pela internet. Os motivos são os mais diversos possíveis e não é possível nem necessário ficar especulando esses motivos. O fato é que na média apenas 3 a 4% dos casos não eram confirmados em segunda sentença. Não se trata apenas de estatística, se trata de questão de ordem prática: a segunda decisão passou a ser um entrave para o natural andamento processual.

Quando foi consagrado o princípio da dupla sentença concordante no Código de 1917 o mundo era outro, literalmente outro. As pessoas tinham muito mais entendimento do que significava um matrimônio do que hoje e as que não tinham consciência disso eram muito mais claramente identificadas e em número muito menor. Enfim, em 1917 existiam muito menos pessoas, portanto muito menos matrimônios. Com muitos menos matrimônios e muitos mais consciências formadas, os processos eram em número muito menor. Havia também uma disposição muito menor em buscar a nulidade dos matrimônios já que ninguém que se casava estava disposto a se separar. Não existir essa cultura do descartável como hoje e as pessoas se casavam realmente no intuito de viver juntas até o final da vida de um dos dois, ao contrário de hoje que estão dispostos a viver juntos até o primeiro desentendimento. Fora o fato de que existiam muito mais sacerdotes e juízes para trabalharem em tribunais.

O contesto histórico não pode ser isolado e fingir que não existem diferenças é no mínimo uma falta de bom senso. Naquela época, mesmo que se quisesse uma nulidade matrimonial devido a novo relacionamento que poderia se confirmar depois caso o primeiro fosse reconhecido como nulo, além de extremamente raro, essas pessoas entendiam perfeitamente o que era comunhão e o valor da Eucaristia. Não havia nenhuma polêmica ao negar a comunhão a quem vivia em segunda união e isso não causava escândalo algum, pelo contrário, era considerado um zelo com a eucaristia necessário e básico que qualquer sacerdote teria naturalmente. Do outro lado, as pessoas entendiam perfeitamente que não poderiam receber a comunhão, bem como sequer se aproximavam da eucaristia, já que sabiam estar em pecado mortal e, portanto desabilitadas a comungar. Hoje em dia sabemos que muitos entendem que a comunhão é uma forma inclusão social através da religião e que todos podem comungar como se isso fosse um direito antes de qualquer coisa.

Outra questão que não é levada em consideração quando se argumenta que não foi o correto eliminar com a dupla sentença concordante, é que as pessoas precisam de uma resposta célere para sua situação perante as coisas de Deus. A falta de celeridade nos processos sempre foi o argumento principal e a fonte de todas essas mudanças. Quanto mais as pessoas esperam para que a Igreja defina sua situação, mais elas se tornam descrentes e se aproximam do pecado. Não há a mínima necessidade disso, bem como agindo dessa forma a Igreja deixa de ser fonte de graça para ser fonte de perdição. A função primordial da Igreja é salvar almas e a falta de celeridade nos processos de nulidade matrimonial acaba por levá-las à perdição. A busca pela verdade é sempre necessária e essencial, mas buscar a verdade não significa torná-la burocrática em busca de um sem número de pareceres e concordâncias sobre um mesmo tema.

Mais uma questão a ser suportada é que o juiz único sob responsabilidade do Bispo não é nenhuma novidade. O cânon 1425, §4º extraordinariamente já fazia essa autorização, vejamos:

§4. No juízo de primeiro grau, não sendo eventualmente possível constituir um colégio,a Conferência dos Bispos, enquanto perdurar tal impossibilidade, pode permitir ao Bispo, confiar a causa a um único juiz clérigo que escolha para si, onde for possível, um assessor e um auditor.

A única diferença para o que esse Motu Proprio estabeleceu é que antes essa possibilidade ou necessidade conforme consta, era julgada pela Conferência Episcopal e agora passa a ser discricionário do Bispo Diocesano, ou seja, está muito menos burocrático.

Por fim, é necessário deixar claro que o segundo grau nunca serviu para controlar o primeiro. A função é e sempre foi garantir o direito a recurso que é patente em qualquer sistema jurídico.

Juntando esses e outros argumentos que possam surgir, concluímos, a partir das reflexões do Papa, que um "duplo grau de jurisdição", a chamada dupla sentença concordante na verdade foi se tornando inútil com o passar dos anos e só servia para procrastinar, mesmo que involuntariamente, o processo de nulidade matrimonial. A partir de agora, que se eliminou essa exigência, a tendência é que os processos tenham um fôlego maior e maior celeridade em suas decisões executivas.

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