O livro A Constituição e os Valores da Nacionalidade, de José Pedro Galvão de Sousa, que foi publicado no ano de 1971, constitui uma reflexão sobre o papel da Constituição no ordenamento jurídico brasileiro e sua relação com os valores fundamentais da nacionalidade.
O livro foi escrito no contexto do regime militar instaurado em 1964 e o autor busca compreender as razões da instabilidade constitucional do Brasil propondo alternativas para a construção de uma ordem política mais sólida e alinhada com as características históricas e culturais do país. Sua principal crítica reside na adoção de modelos estrangeiros sem a devida adaptação à realidade nacional, o que teria gerado um ciclo contínuo de crises institucionais. O que pode ser facilmente conferido revisitando mesmo que superficialmente a história brasileira recente.
Galvão de Sousa inicia sua análise enfatizando a necessidade de a Constituição ser um instrumento de estabilidade política e jurídica, evitando o excesso de detalhamento e a inclusão de disposições que deveriam estar reservadas à legislação infraconstitucional. Tal situação se percebe ao ver o tamanho da nota atual Constituição que sequer existia no contexto da redação do livro. Para o autor, a Constituição deve se limitar a princípios fundamentais e possuir a plasticidade necessária para se adaptar às transformações sociais sem comprometer sua essência normativa. Ele ilustra essa ideia ao comparar a experiência dos Estados Unidos, cuja Constituição se mantém desde o século XVIII com um reduzido número de emendas, e da França, que passou por sucessivas mudanças constitucionais devido à instabilidade política. No Brasil, a constante necessidade de reformas e a sucessão de diferentes modelos constitucionais evidenciam, segundo o autor, a falta de um pensamento político autônomo, resultando na importação de sistemas jurídicos desconectados da realidade social e cultural do país.
Dentre os exemplos históricos que fundamentam sua crítica, destaca-se a Constituição de 1891, inspirada no modelo norte-americano, que introduziu o federalismo e o presidencialismo sem considerar as particularidades nacionais. Para Galvão de Sousa, essa abordagem abstracionista gerou um federalismo artificial, inaplicável às condições brasileiras, e comprometeu a estabilidade institucional ao longo das décadas seguintes. Esse erro teria sido reiterado nas constituições subsequentes, culminando no colapso político da década de 1960 e na necessidade de uma nova ordem institucional que, para o autor, deveria estar alinhada aos valores históricos e culturais do Brasil. Coisa aos até hoje estamos esperando.
O pensamento jurídico de Galvão de Sousa se aproxima do conceito de democracia orgânica, na qual a representação política não se dá exclusivamente pelo sufrágio universal, mas também por meio de grupos sociais e instituições tradicionais, como a família, a Igreja e as Forças Armadas. Ele argumenta que a exclusão desses elementos da organização política contribui para o distanciamento entre o povo e o Estado, favorecendo um modelo de democracia liberal que, na sua visão, seria inadequado à realidade nacional. Além disso, o autor critica o intervencionismo estatal excessivo e defende o princípio da subsidiariedade (praticamente desconhecido da maioria dos Juristas brasileiros), segundo o qual o Estado deve intervir apenas quando as instituições sociais e os corpos intermediários não forem capazes de solucionar os problemas por conta própria.
A Constituição Federal de 1988, promulgada anos após a publicação do livro, representa um contraponto à visão de Galvão de Sousa. Caracterizada por seu extenso rol de direitos fundamentais e pela forte presença de princípios, a CF/88 estabeleceu uma estrutura jurídica detalhista e principiológica, em contraste com o modelo mais conciso e pragmático defendido pelo autor. Entre os princípios estruturantes da atual Constituição, destacam-se o da dignidade da pessoa humana, o da função social da propriedade, o do pluralismo político e o da separação dos poderes, todos sujeitos a múltiplas interpretações pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Para Galvão de Sousa, esse detalhamento excessivo que o livro não menciona por ser anterior mas que vemos na constituição que se seguiu, isto é, a de 1988, compromete a segurança jurídica e fomenta a instabilidade institucional, na medida em que amplia as margens para interpretações variáveis e mutáveis conforme o contexto político.
Um dos principais reflexos dessa característica da CF/88 é o protagonismo do STF na definição dos rumos jurídicos e políticos do país. A Corte, ao interpretar princípios constitucionais de forma expansiva, muitas vezes atua como legislador positivo, preenchendo lacunas normativas e estabelecendo diretrizes que, em alguns casos, ultrapassam os limites da separação dos poderes. Esse ativismo judicial tem gerado controvérsias e alimentado o debate sobre a legitimidade das decisões do STF, que frequentemente são questionadas por outros poderes e setores da sociedade. O fenômeno da judicialização da política evidencia um problema já apontado por Galvão de Sousa naquela época: a dificuldade de se estabelecer uma ordem jurídica previsível e estável em um sistema constitucional demasiadamente aberto à reinterpretação constante.
Além da questão do STF, outras temáticas abordadas por Galvão de Sousa continuam relevantes no cenário atual. A crise de representatividade política, o distanciamento entre governantes e governados e a dificuldade de equilibrar os poderes da República são desafios que persistem. A reforma política, frequentemente discutida mas nunca plenamente implementada, reflete a necessidade de repensar o modelo de representação e participação popular, algo que o autor já alertava ao sugerir a incorporação de mecanismos de democracia orgânica. Também se mantém vigente a discussão sobre o papel do Estado na economia e na garantia de direitos sociais, especialmente diante das dificuldades fiscais enfrentadas pelo país para sustentar o amplo rol de prestações positivas previstas na CF/88 (artigo 5° que o diga).
Por fim, a visão de Galvão de Sousa sobre a relação entre a Constituição e os valores nacionais levanta um questionamento essencial: até que ponto a ordem constitucional brasileira reflete a identidade e as necessidades reais da sociedade? A Constituição de 1988, com seu caráter abrangente e inclusivo, buscou assegurar direitos fundamentais e promover um modelo democrático pluralista. No entanto, a sua operacionalização tem gerado desafios, como a dificuldade de harmonizar interesses diversos e garantir um funcionamento institucional estável. Nesse contexto, as reflexões do autor permanecem relevantes, ainda que sob novas perspectivas, ao apontarem a necessidade de um ordenamento jurídico que seja simultaneamente sólido, funcional e ajustado às especificidades da realidade nacional.
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