AO
EPISCOPADO, AO CLERO
ÀS PESSOAS
CONSAGRADAS
E AOS
FIÉIS LEIGOS
ÍNDICE
1. Alegria que se
renova e comunica [2-8]
2. A doce e
reconfortante alegria de evangelizar [9-10]
Uma eterna
novidade [11-13]
3. A nova
evangelização para a transmissão da fé [14-15]
A proposta desta
Exortação e seus contornos [16-18]
Capítulo I
A TRANSFORMAÇÃO
MISSIONÁRIA DA IGREJA
1. Uma Igreja «em
saída» [20-23]
«Primeirear»,
envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar [24]
2. Pastoral em
conversão [25-26]
Uma renovação
eclesial inadiável [27-33]
3. A partir do
coração do Evangelho [34-39]
4. A missão que
se encarna nas limitações humanas [40-45]
5. Uma mãe de
coração aberto [46-49]
Capítulo II
NA CRISE DO
COMPROMISSO COMUNITÁRIO
1. Alguns
desafios do mundo actual [52]
Não a uma
economia da exclusão [53-54]
Não à nova
idolatria do dinheiro [55-56]
Não a um dinheiro
que governa em vez de servir [57-58]
Não à
desigualdade social que gera violência [59-60]
Alguns desafios
culturais [61-67]
Desafios da inculturação
da fé [68-70]
Desafios das
culturas urbanas [71-75]
2. Tentações dos
agentes pastorais [76-77]
Sim ao desafio
duma espiritualidade missionária [78-80]
Não à acédia
egoísta [81-83] Não ao
pessimismo estéril [84-86]
Sim às relações
novas geradas por Jesus Cristo [87-92]
Não ao mundanismo
espiritual [93-97]
Não à guerra
entre nós [98-101]
Outros desafios
eclesiais [102-109]
Capítulo III
O ANÚNCIO DO
EVANGELHO
1. Todo o povo de
Deus anuncia o Evangelho [111]
Um povo para
todos [112-114]
Um povo com
muitos rostos [115-118]
Todos somos discípulos missionários [119-121]
A força
evangelizadora da piedade popular [122-126]
De pessoa a
pessoa [127-129]
Carismas ao
serviço da comunhão evangelizadora [130-131]
Cultura, pensamento e educação [132-134]
2. A homilia [135-136]
O contexto
litúrgico [137-138]
A conversa da mãe [139-141]
Palavras que
abrasam os corações [142-144]
3. A preparação
da pregação [145]
O culto da
verdade [146-148]
A personalização
da Palavra [148-151]
A leitura espiritual [152-153]
À escuta do povo [154-155]
Recursos
pedagógicos [156-159]
4. Uma
evangelização para o aprofundamento do querigma [160-162]
Uma catequese
querigmática e mistagógica [163-168]
O acompanhamento
pessoal dos processos de crescimento [169-173]
Ao redor da
Palavra de Deus [174-175]
Capítulo IV
A DIMENSÃO SOCIAL DA
EVANGELIZAÇÃO
1. As
repercussões comunitárias e sociais do querigma [177]
Confissão da fé e
compromisso social [178-179]
O Reino que nos
chama [180-181]
A doutrina da
Igreja sobre as questões sociais [182-185]
2. A inclusão
social dos pobres [186]
Unidos a Deus,
ouvimos um clamor [187-192]
Fidelidade ao
Evangelho, para não correr em vão [193-196]
O lugar
privilegiado dos pobres no povo de Deus [197-201] Economia e distribuição das entradas [202-208]
Cuidar da
fragilidade [209-216]
3. O bem comum e
a paz social [217-221]
O tempo é
superior ao espaço [222-225]
A unidade
prevalece sobre o conflito [226-230]
A realidade é
mais importante do que a ideia [231-233]
O todo é superior
à parte [234-237]
4. O diálogo
social como contribuição para a paz [238-241]
O diálogo entre a
fé, a razão e as ciências [242-243]
O diálogo
ecuménico [244-246]
As relações com o
Judaísmo [247-249]
O diálogo
inter-religioso [250-254]
O diálogo social
num contexto de liberdade religiosa [255-258]
Capítulo V
EVANGELIZADORES COM
ESPÍRITO
1. Motivações
para um renovado impulso missionário [262-263]
O encontro
pessoal com o amor de Jesus que nos salva [264-267]
O prazer
espiritual de ser povo [268-274]
A acção
misteriosa do Ressuscitado e do seu Espírito [275-280]
A força
missionária da intercessão [281-283]
2. Maria, a Mãe
da evangelização [284]
O dom de Jesus ao
seu povo [285-286]
A Estrela da nova
evangelização [287-288]
SOBRE O ANÚNCIO DO EVANGELHO NO MUNDO ATUAL
1. A ALEGRIA DO
EVANGELHO enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus.
Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do
vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria.
Quero, com esta Exortação, dirigir-me aos fiéis cristãos a fim de os convidar
para uma nova etapa evangelizadora marcada por esta alegria e indicar caminhos
para o percurso da Igreja nos próximos anos.
1. Alegria que se
renova e comunica
2. O grande risco do
mundo actual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza
individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada
de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se
fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não
entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria
do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e
permanente, que correm também os crentes. Muitos caem nele, transformando-se em
pessoas ressentidas, queixosas, sem vida. Esta não é a escolha duma vida digna
e plena, este não é o desígnio que Deus tem para nós, esta não é a vida no
Espírito que jorra do coração de Cristo ressuscitado.
3. Convido todo o
cristão, em qualquer lugar e situação que se encontre, a renovar hoje mesmo o
seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se
deixar encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem cessar. Não há motivo
para alguém poder pensar que este convite não lhe diz respeito, já que «da
alegria trazida pelo Senhor ninguém é excluído». Quem arrisca, o Senhor não o
desilude; e, quando alguém dá um pequeno passo em direcção a Jesus, descobre
que Ele já aguardava de braços abertos a sua chegada. Este é o momento para
dizer a Jesus Cristo: «Senhor, deixei-me enganar, de mil maneiras fugi do vosso
amor, mas aqui estou novamente para renovar a minha aliança convosco. Preciso
de Vós. Resgatai-me de novo, Senhor; aceitai-me mais uma vez nos vossos braços
redentores». Como nos faz bem voltar para Ele, quando nos perdemos! Insisto uma
vez mais: Deus nunca Se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir a
sua misericórdia. Aquele que nos convidou a perdoar «setenta vezes sete» (Mt 18,
22) dá-nos o exemplo: Ele perdoa setenta vezes sete. Volta uma vez e outra a
carregar-nos aos seus ombros. Ninguém nos pode tirar a dignidade que este amor
infinito e inabalável nos confere. Ele permite-nos levantar a cabeça e
recomeçar, com uma ternura que nunca nos defrauda e sempre nos pode restituir a
alegria. Não fujamos da ressurreição de Jesus; nunca nos demos por mortos,
suceda o que suceder. Que nada possa mais do que a sua vida que nos impele para
diante!
4. Os livros do
Antigo Testamento preanunciaram a alegria da salvação, que havia de tornar-se
superabundante nos tempos messiânicos. O profeta Isaías dirige-se ao Messias
esperado, saudando-O com regozijo: «Multiplicaste a alegria, aumentaste o
júbilo» (9, 2). E anima os habitantes de Sião a recebê-Lo com cânticos:
«Exultai de alegria!» (12, 6). A quem já O avistara no horizonte, o profeta
convida-o a tornar-se mensageiro para os outros: «Sobe a um alto monte, arauto
de Sião! Grita com voz forte, arauto de Jerusalém» (40, 9). A criação inteira
participa nesta alegria da salvação: «Cantai, ó céus! Exulta de alegria, ó
terra! Rompei em exclamações, ó montes! Na verdade, o Senhor consola o seu povo
e se compadece dos desamparados» (49, 13).
Zacarias, vendo o
dia do Senhor, convida a vitoriar o Rei que chega «humilde, montado num
jumento»: «Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de
Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti. Ele é justo e vitorioso» (9, 9). Mas o
convite mais tocante talvez seja o do profeta Sofonias, que nos mostra o
próprio Deus como um centro irradiante de festa e de alegria, que quer
comunicar ao seu povo este júbilo salvífico. Enche-me de vida reler este texto:
«O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso salvador! Ele exulta de
alegria por tua causa, pelo seu amor te renovará. Ele dança e grita de alegria
por tua causa» (3, 17).
É a alegria que se
vive no meio das pequenas coisas da vida quotidiana, como resposta ao amoroso
convite de Deus nosso Pai: «Meu filho, se tens com quê, trata-te bem (...). Não
te prives da felicidade presente» (Sir 14, 11.14). Quanta ternura
paterna se vislumbra por detrás destas palavras!
5. O Evangelho, onde
resplandece gloriosa a Cruz de Cristo, convida insistentemente à alegria. Apenas
alguns exemplos: «Alegra-te» é a saudação do anjo a Maria (Lc 1,
28). A visita de Maria a Isabel faz com que João salte de alegria no ventre de
sua mãe (cf. Lc 1, 41). No seu cântico, Maria proclama: «O meu
espírito se alegra em Deus, meu Salvador» (Lc 1, 47). E, quando
Jesus começa o seu ministério, João exclama: «Esta é a minha alegria! E
tornou-se completa!» (Jo 3, 29). O próprio Jesus «estremeceu de
alegria sob a acção do Espírito Santo» (Lc 10, 21). A sua mensagem
é fonte de alegria: «Manifestei-vos estas coisas, para que esteja em vós a
minha alegria, e a vossa alegria seja completa» (Jo 15, 11). A
nossa alegria cristã brota da fonte do seu coração transbordante. Ele promete
aos seus discípulos: «Vós haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza há-de
converter-se em alegria» (Jo 16, 20). E insiste: «Eu hei-de ver-vos
de novo! Então, o vosso coração há-de alegrar-se e ninguém vos poderá tirar a
vossa alegria» (Jo 16, 22). Depois, ao verem-No ressuscitado,
«encheram-se de alegria» (Jo 20, 20). O livro dos Actos dos
Apóstolos conta que, na primitiva comunidade, «tomavam o alimento com alegria»
(2, 46). Por onde passaram os discípulos, «houve grande alegria» (8, 8); e
eles, no meio da perseguição, «estavam cheios de alegria» (13, 52). Um eunuco,
recém-baptizado, «seguiu o seu caminho cheio de alegria» (8, 39); e o
carcereiro «entregou-se, com a família, à alegria de ter acreditado em Deus»
(16, 34). Porque não havemos de entrar, também nós, nesta torrente de alegria?
6. Há cristãos que parecem
ter escolhido viver uma Quaresma sem Páscoa. Reconheço, porém, que a alegria
não se vive da mesma maneira em todas as etapas e circunstâncias da vida, por
vezes muito duras. Adapta-se e transforma-se, mas sempre permanece pelo menos
como um feixe de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o contrário,
sermos infinitamente amados. Compreendo as pessoas que se vergam à tristeza por
causa das graves dificuldades que têm de suportar, mas aos poucos é preciso
permitir que a alegria da fé comece a despertar, como uma secreta mas firme
confiança, mesmo no meio das piores angústias: «A paz foi desterrada da minha
alma, já nem sei o que é a felicidade (…). Isto, porém, guardo no meu coração;
por isso, mantenho a esperança. É que a misericórdia do Senhor não acaba, não
se esgota a sua compaixão. Cada manhã ela se renova; é grande a tua fidelidade.
(...) Bom é esperar em silêncio a salvação do Senhor» (Lm 3,
17.21-23.26).
7. A tentação
apresenta-se, frequentemente, sob forma de desculpas e queixas, como se tivesse
de haver inúmeras condições para ser possível a alegria. Habitualmente isto
acontece, porque «a sociedade técnica teve a possibilidade de multiplicar as
ocasiões de prazer; no entanto ela encontra dificuldades grandes no engendrar
também a alegria». Posso dizer que as alegrias mais belas e espontâneas, que vi
ao longo da minha vida, são as alegrias de pessoas muito pobres que têm pouco a
que se agarrar. Recordo também a alegria genuína daqueles que, mesmo no meio de
grandes compromissos profissionais, souberam conservar um coração crente,
generoso e simples. De várias maneiras, estas alegrias bebem na fonte do amor
maior, que é o de Deus, a nós manifestado em Jesus Cristo. Não me cansarei de
repetir estas palavras de Bento XVI que nos levam ao centro do Evangelho: «Ao
início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o
encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte
e, desta forma, o rumo decisivo».
8. Somente graças a
este encontro – ou reencontro – com o amor de Deus, que se converte em amizade
feliz, é que somos resgatados da nossa consciência isolada e da
auto-referencialidade. Chegamos a ser plenamente humanos, quando somos mais do
que humanos, quando permitimos a Deus que nos conduza para além de nós mesmos a
fim de alcançarmos o nosso ser mais verdadeiro. Aqui está a fonte da acção
evangelizadora. Porque, se alguém acolheu este amor que lhe devolve o sentido
da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar aos outros?
2. A doce e reconfortante
alegria de evangelizar
9. O bem tende
sempre a comunicar-se. Toda a experiência autêntica de verdade e de beleza
procura, por si mesma, a sua expansão; e qualquer pessoa que viva uma
libertação profunda adquire maior sensibilidade face às necessidades dos
outros. E, uma vez comunicado, o bem radica-se e desenvolve-se. Por isso, quem
deseja viver com dignidade e em plenitude, não tem outro caminho senão
reconhecer o outro e buscar o seu bem. Assim, não nos deveriam surpreender
frases de São Paulo como estas: «O amor de Cristo nos absorve completamente» (2
Cor 5, 14); «ai de mim, se eu não evangelizar!» (1 Cor 9,
16).
10. A proposta é
viver a um nível superior, mas não com menor intensidade: «Na doação, a vida se
fortalece; e se enfraquece no comodismo e no isolamento. De facto, os que mais
desfrutam da vida são os que deixam a segurança da margem e se apaixonam pela
missão de comunicar a vida aos demais». Quando a Igreja faz apelo ao
compromisso evangelizador, não faz mais do que indicar aos cristãos o
verdadeiro dinamismo da realização pessoal: «Aqui descobrimos outra profunda
lei da realidade: “A vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para
dar vida aos outros”. Isto é, definitivamente, a missão». Consequentemente, um
evangelizador não deveria ter constantemente uma cara de funeral. Recuperemos e
aumentemos o fervor de espírito, «a suave e reconfortante alegria de
evangelizar, mesmo quando for preciso semear com lágrimas! (...) E que o mundo
do nosso tempo, que procura ora na angústia ora com esperança, possa receber a
Boa Nova dos lábios, não de evangelizadores tristes e descoroçoados,
impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie
fervor, pois foram quem recebeu primeiro em si a alegria de Cristo».
Uma eterna
novidade
11. Um anúncio
renovado proporciona aos crentes, mesmo tíbios ou não praticantes, uma nova
alegria na fé e uma fecundidade evangelizadora. Na realidade, o seu centro e a
sua essência são sempre o mesmo: o Deus que manifestou o seu amor imenso em
Cristo morto e ressuscitado. Ele torna os seus fiéis sempre novos; ainda que
sejam idosos, «renovam as suas forças. Têm asas como a águia, correm sem se
cansar, marcham sem desfalecer» (Is 40, 31). Cristo é a «Boa-Nova
de valor eterno» (Ap 14, 6), sendo «o mesmo ontem, hoje e pelos
séculos» (Heb 13, 8), mas a sua riqueza e a sua beleza são
inesgotáveis. Ele é sempre jovem, e fonte de constante novidade. A Igreja não
cessa de se maravilhar com a «profundidade de riqueza, de sabedoria e de
ciência de Deus» (Rm 11, 33). São João da Cruz dizia: «Esta
espessura de sabedoria e ciência de Deus é tão profunda e imensa, que, por mais
que a alma saiba dela, sempre pode penetrá-la mais profundamente». Ou ainda,
como afirmava Santo Ireneu: «Na sua vinda, [Cristo] trouxe consigo toda a
novidade». Com a sua novidade, Ele pode sempre renovar a nossa vida e a nossa
comunidade, e a proposta cristã, ainda que atravesse períodos obscuros e
fraquezas eclesiais, nunca envelhece. Jesus Cristo pode romper também os
esquemas enfadonhos em que pretendemos aprisioná-Lo, e surpreende-nos com a sua
constante criatividade divina. Sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar
o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos,
outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado
significado para o mundo actual. Na realidade, toda a acção evangelizadora
autêntica é sempre «nova».
12. Embora esta
missão nos exija uma entrega generosa, seria um erro considerá-la como uma
heróica tarefa pessoal, dado que ela é, primariamente e acima de tudo o que
possamos sondar e compreender, obra de Deus. Jesus é «o primeiro e o maior
evangelizador». Em qualquer forma de evangelização, o primado é sempre de Deus,
que quis chamar-nos para cooperar com Ele e impelir-nos com a força do seu
Espírito. A verdadeira novidade é aquela que o próprio Deus misteriosamente
quer produzir, aquela que Ele inspira, aquela que Ele provoca, aquela que Ele
orienta e acompanha de mil e uma maneiras. Em toda a vida da Igreja, deve-se sempre
manifestar que a iniciativa pertence a Deus, «porque Ele nos amou primeiro» (1
Jo 4, 19) e é «só Deus que faz crescer» (1 Cor 3, 7). Esta
convicção permite-nos manter a alegria no meio duma tarefa tão exigente e
desafiadora que ocupa inteiramente a nossa vida. Pede-nos tudo, mas ao mesmo
tempo dá-nos tudo.
13. E também não
deveremos entender a novidade desta missão como um desenraizamento, como um
esquecimento da história viva que nos acolhe e impele para diante. A memória é
uma dimensão da nossa fé, que, por analogia com a memória de Israel, poderíamos
chamar «deuteronómica». Jesus deixa-nos a Eucaristia como memória quotidiana da
Igreja, que nos introduz cada vez mais na Páscoa (cf. Lc 22,
19). A alegria evangelizadora refulge sempre sobre o horizonte da memória
agradecida: é uma graça que precisamos de pedir. Os Apóstolos nunca mais
esqueceram o momento em que Jesus lhes tocou o coração: «Eram as quatro horas
da tarde» (Jo 1, 39). A memória faz-nos presente, juntamente com
Jesus, uma verdadeira «nuvem de testemunhas» (Heb 12, 1). De entre
elas, distinguem-se algumas pessoas que incidiram de maneira especial para
fazer germinar a nossa alegria crente: «Recordai-vos dos vossos guias, que vos
pregaram a palavra de Deus» (Heb 13, 7). Às vezes, trata-se de
pessoas simples e próximas de nós, que nos iniciaram na vida da fé: «Trago à
memória a tua fé sem fingimento, que se encontrava já na tua avó Lóide e na tua
mãe Eunice» (2 Tm 1, 5). O crente é, fundamentalmente, «uma pessoa
que faz memória».
3. A nova evangelização
para a transmissão da fé
14. À escuta do
Espírito, que nos ajuda a reconhecer comunitariamente os sinais dos tempos,
celebrou-se de 7 a 28 de Outubro de 2012 a XIII Assembleia Geral Ordinária do
Sínodo dos Bispos, sobre o tema A nova evangelização para a transmissão
da fé cristã. Lá foi recordado que a nova evangelização interpela a todos,
realizando-se fundamentalmente em três âmbitos. Em primeiro lugar, mencionamos
o âmbito da pastoral ordinária, «animada pelo fogo do Espírito a
fim de incendiar os corações dos fiéis que frequentam regularmente a
comunidade, reunindo-se no dia do Senhor, para se alimentarem da sua Palavra e
do Pão de vida eterna». Devem ser incluídos também neste âmbito os fiéis que
conservam uma fé católica intensa e sincera, exprimindo-a de diversos modos,
embora não participem frequentemente no culto. Esta pastoral está orientada
para o crescimento dos crentes, a fim de corresponderem cada vez melhor e com
toda a sua vida ao amor de Deus.
Em segundo lugar,
lembramos o âmbito das «pessoas baptizadas que, porém, não vivem
as exigências do Baptismo», não sentem uma pertença cordial à Igreja e já
não experimentam a consolação da fé. Mãe sempre solícita, a Igreja esforça-se
para que elas vivam uma conversão que lhes restitua a alegria da fé e o desejo
de se comprometerem com o Evangelho.
Por fim, frisamos
que a evangelização está essencialmente relacionada com a proclamação do
Evangelho àqueles que não conhecem Jesus Cristo ou que sempre O
recusaram. Muitos deles buscam secretamente a Deus, movidos pela nostalgia
do seu rosto, mesmo em países de antiga tradição cristã. Todos têm o direito de
receber o Evangelho. Os cristãos têm o dever de o anunciar, sem excluir
ninguém, e não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma
alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível. A
Igreja não cresce por proselitismo, mas «por atracção».
15. João Paulo II
convidou-nos a reconhecer que «não se pode perder a tensão para o anúncio»
àqueles que estão longe de Cristo, «porque esta é a tarefa primária da
Igreja». A actividade missionária «ainda hoje representa o máximo
desafio para a Igreja» e «a causa missionáriadeve ser (…) a
primeira de todas as causas». Que sucederia se tomássemos realmente a
sério estas palavras? Simplesmente reconheceríamos que a acção missionária
é o paradigma de toda a obra da Igreja. Nesta linha, os Bispos
latino-americanos afirmaram que «não podemos ficar tranquilos, em espera
passiva, em nossos templos», sendo necessário passar «de uma pastoral de mera
conservação para uma pastoral decididamente missionária». Esta tarefa continua
a ser a fonte das maiores alegrias para a Igreja: «Haverá mais alegria no Céu
por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não necessitam
de conversão» (Lc 15, 7).
A proposta desta
Exortação e seus contornos
16. Com prazer,
aceitei o convite dos Padres sinodais para redigir esta Exortação. Para o
efeito, recolho a riqueza dos trabalhos do Sínodo; consultei também várias
pessoas e pretendo, além disso, exprimir as preocupações que me movem neste
momento concreto da obra evangelizadora da Igreja. Os temas relacionados com a
evangelização no mundo actual, que se poderiam desenvolver aqui, são
inumeráveis. Mas renunciei a tratar detalhadamente esta multiplicidade de
questões que devem ser objecto de estudo e aprofundamento cuidadoso. Penso,
aliás, que não se deve esperar do magistério papal uma palavra definitiva ou
completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao mundo. Não
convém que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as
problemáticas que sobressaem nos seus territórios. Neste sentido, sinto a
necessidade de proceder a uma salutar «descentralização».
17. Aqui escolhi
propor algumas directrizes que possam encorajar e orientar, em toda a Igreja,
uma nova etapa evangelizadora, cheia de ardor e dinamismo. Neste quadro e com
base na doutrina da Constituição dogmática Lumen gentium, decidi,
entre outros temas, de me deter amplamente sobre as seguintes questões:
a) A reforma da
Igreja em saída missionária.
b) As tentações dos
agentes pastorais.
c) A Igreja vista
como a totalidade do povo de Deus que evangeliza.
d) A homilia e a sua
preparação.
e) A inclusão social
dos pobres.
f) A paz e o diálogo
social.
g) As motivações
espirituais para o compromisso missionário.
18. Demorei-me
nestes temas, desenvolvendo-os dum modo que talvez possa parecer excessivo. Mas
não o fiz com a intenção de oferecer um tratado, mas só para mostrar a
relevante incidência prática destes assuntos na missão actual da Igreja. De
facto, todos eles ajudam a delinear um preciso estilo evangelizador, que
convido a assumir em qualquer actividade que se realize. E, desta
forma, podemos assumir, no meio do nosso trabalho diário, esta exortação da
Palavra de Deus: «Alegrai-vos sempre no Senhor! De novo vos digo: alegrai-vos!»
(Fl 4, 4).
Capítulo I
A TRANSFORMAÇÃO
MISSIONÁRIA DA IGREJA
19. A evangelização
obedece ao mandato missionário de Jesus: «Ide, pois, fazei discípulos de todos
os povos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo,
ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (Mt 28,
19-20). Nestes versículos, aparece o momento em que o Ressuscitado envia os
seus a pregar o Evangelho em todos os tempos e lugares, para que a fé n’Ele se
estenda a todos os cantos da terra.
1. Uma Igreja «em
saída»
20. Na Palavra de
Deus, aparece constantemente este dinamismo de «saída», que Deus quer provocar
nos crentes. Abraão aceitou a chamada para partir rumo a uma nova terra
(cf. Gn 12, 1-3). Moisés ouviu a chamada de Deus: «Vai; Eu te
envio» (Ex 3, 10), e fez sair o povo para a terra prometida
(cf. Ex 3, 17). A Jeremias disse: «Irás aonde Eu te enviar» (Jr 1,
7). Naquele «ide» de Jesus, estão presentes os cenários e os desafios sempre
novos da missão evangelizadora da Igreja, e hoje todos somos chamados a esta
nova «saída» missionária. Cada cristão e cada comunidade há-de discernir qual é
o caminho que o Senhor lhe pede, mas todos somos convidados a aceitar esta
chamada: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as
periferias que precisam da luz do Evangelho.
21. A alegria do
Evangelho, que enche a vida da comunidade dos discípulos, é uma alegria
missionária. Experimentam-na os setenta e dois discípulos, que voltam da missão
cheios de alegria (cf. Lc 10, 17). Vive-a Jesus, que exulta de
alegria no Espírito Santo e louva o Pai, porque a sua revelação chega aos
pobres e aos pequeninos (cf. Lc 10, 21). Sentem-na, cheios de
admiração, os primeiros que se convertem no Pentecostes, ao ouvir «cada um na
sua própria língua» (Act 2, 6) a pregação dos Apóstolos. Esta
alegria é um sinal de que o Evangelho foi anunciado e está a frutificar. Mas
contém sempre a dinâmica do êxodo e do dom, de sair de si mesmo, de caminhar e
de semear sempre de novo, sempre mais além. O Senhor diz: «Vamos para outra
parte, para as aldeias vizinhas, a fim de pregar aí, pois foi para isso que Eu
vim» (Mc 1, 38). Ele, depois de lançar a semente num lugar, não se
demora lá a explicar melhor ou a cumprir novos sinais, mas o Espírito leva-O a
partir para outras aldeias.
22. A Palavra
possui, em si mesma, uma tal potencialidade, que não a podemos prever. O
Evangelho fala da semente que, uma vez lançada à terra, cresce por si mesma, inclusive
quando o agricultor dorme (cf. Mc 4, 26-29). A Igreja deve
aceitar esta liberdade incontrolável da Palavra, que é eficaz a seu modo e sob
formas tão variadas que muitas vezes nos escapam, superando as nossas previsões
e quebrando os nossos esquemas.
23. A intimidade da
Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão «reveste
essencialmente a forma de comunhão missionária». Fiel ao modelo do Mestre, é
vital que hoje a Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos os
lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo. A
alegria do Evangelho é para todo o povo, não se pode excluir ninguém; assim foi
anunciada pelo anjo aos pastores de Belém: «Não temais, pois anuncio-vos uma
grande alegria, que o será para todo o povo» (Lc 2,
10). O Apocalipse fala de «uma Boa-Nova de valor eterno para anunciar aos
habitantes da terra: a todas as nações, tribos, línguas e povos» (Ap 14,
6).
«Primeirear»,
envolver-se, acompanhar, frutificar e festejar
24. A Igreja «em
saída» é a comunidade de discípulos missionários que «primeireiam», que se
envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. Primeireiam –
desculpai o neologismo –, tomam a iniciativa! A comunidade missionária
experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1
Jo 4, 10), e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa
sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos
caminhos para convidar os excluídos. Vive um desejo inexaurível de oferecer
misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua
força difusiva. Ousemos um pouco mais no tomar a iniciativa! Como consequência,
a Igreja sabe «envolver-se». Jesus lavou os pés aos seus discípulos. O Senhor
envolve-Se e envolve os seus, pondo-Se de joelhos diante dos outros para os
lavar; mas, logo a seguir, diz aos discípulos: «Sereis felizes se o puserdes em
prática» (Jo 13, 17). Com obras e gestos, a comunidade missionária
entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se for
necessário – até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora
de Cristo no povo. Os evangelizadores contraem assim o «cheiro de ovelha», e
estas escutam a sua voz. Em seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se a
«acompanhar». Acompanha a humanidade em todos os seus processos, por mais duros
e demorados que sejam. Conhece as longas esperas e a suportação apostólica. A
evangelização patenteia muita paciência, e evita deter-se a considerar as
limitações. Fiel ao dom do Senhor, sabe também «frutificar». A comunidade
evangelizadora mantém-se atenta aos frutos, porque o Senhor a quer fecunda.
Cuida do trigo e não perde a paz por causa do joio. O semeador, quando vê
surgir o joio no meio do trigo, não tem reacções lastimosas ou alarmistas.
Encontra o modo para fazer com que a Palavra se encarne numa situação concreta
e dê frutos de vida nova, apesar de serem aparentemente imperfeitos ou
defeituosos. O discípulo sabe oferecer a vida inteira e jogá-la até ao martírio
como testemunho de Jesus Cristo, mas o seu sonho não é estar cheio de inimigos,
mas antes que a Palavra seja acolhida e manifeste a sua força libertadora e
renovadora. Por fim, a comunidade evangelizadora jubilosa sabe sempre
«festejar»: celebra e festeja cada pequena vitória, cada passo em frente na
evangelização. No meio desta exigência diária de fazer avançar o bem, a
evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia. A Igreja evangeliza e se
evangeliza com a beleza da liturgia, que é também celebração da actividade evangelizadora
e fonte dum renovado impulso para se dar.
2. Pastoral em
conversão
25. Não ignoro que
hoje os documentos não suscitam o mesmo interesse que noutras épocas, acabando
rapidamente esquecidos. Apesar disso sublinho que, aquilo que pretendo deixar
expresso aqui, possui um significado programático e tem consequências
importantes. Espero que todas as comunidades se esforcem por actuar os meios
necessários para avançar no caminho duma conversão pastoral e missionária, que
não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos serve uma «simples
administração». Constituamo-nos em «estado permanente de missão», em todas as
regiões da terra.
26. Paulo VI
convidou a alargar o apelo à renovação de modo que ressalte, com força, que não
se dirige apenas aos indivíduos, mas à Igreja inteira. Lembremos este texto
memorável, que não perdeu a sua força interpeladora: «A Igreja deve aprofundar
a consciência de si mesma, meditar sobre o seu próprio mistério (...). Desta
consciência esclarecida e operante deriva espontaneamente um desejo de comparar
a imagem ideal da Igreja, tal como Cristo a viu, quis e amou, ou seja, como sua
Esposa santa e imaculada (Ef 5, 27), com o rosto real que a Igreja
apresenta hoje. (…) Em consequência disso, surge uma necessidade generosa e
quase impaciente de renovação, isto é, de emenda dos defeitos, que aquela
consciência denuncia e rejeita, como se fosse um exame interior ao espelho do
modelo que Cristo nos deixou de Si mesmo».
O Concílio Vaticano
II apresentou a conversão eclesial como a abertura a uma reforma permanente de
si mesma por fidelidade a Jesus Cristo: «Toda a renovação da Igreja consiste
essencialmente numa maior fidelidade à própria vocação. (…) A Igreja peregrina
é chamada por Cristo a esta reforma perene. Como instituição humana e terrena,
a Igreja necessita perpetuamente desta reforma».
Há estruturas
eclesiais que podem chegar a condicionar um dinamismo evangelizador; de igual
modo, as boas estruturas servem quando há uma vida que as anima, sustenta e
avalia. Sem vida nova e espírito evangélico autêntico, sem «fidelidade da
Igreja à própria vocação», toda e qualquer nova estrutura se corrompe em pouco
tempo.
Uma renovação
eclesial inadiável
27. Sonho com uma
opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos,
os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal
proporcionado mais à evangelização do mundo actual que à auto-preservação. A
reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode entender
neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias, que a
pastoral ordinária em todas as suas instâncias seja mais comunicativa e aberta,
que coloque os agentes pastorais em atitude constante de «saída» e, assim,
favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece a sua
amizade. Como dizia João Paulo II aos Bispos da Oceânia, «toda a renovação na
Igreja há-de ter como alvo a missão, para não cair vítima duma espécie de
introversão eclesial».
28. A paróquia não é
uma estrutura caduca; precisamente porque possui uma grande plasticidade, pode
assumir formas muito diferentes que requerem a docilidade e a criatividade
missionária do Pastor e da comunidade. Embora não seja certamente a única
instituição evangelizadora, se for capaz de se reformar e adaptar
constantemente, continuará a ser «a própria Igreja que vive no meio das casas
dos seus filhos e das suas filhas». Isto supõe que esteja realmente em contacto
com as famílias e com a vida do povo, e não se torne uma estrutura complicada,
separada das pessoas, nem um grupo de eleitos que olham para si mesmos. A
paróquia é presença eclesial no território, âmbito para a escuta da Palavra, o
crescimento da vida cristã, o diálogo, o anúncio, a caridade generosa, a
adoração e a celebração. Através de todas as suas actividades, a paróquia
incentiva e forma os seus membros para serem agentes da evangelização. É
comunidade de comunidades, santuário onde os sedentos vão beber para
continuarem a caminhar, e centro de constante envio missionário. Temos, porém,
de reconhecer que o apelo à revisão e renovação das paróquias ainda não deu
suficientemente fruto, tornando-se ainda mais próximas das pessoas, sendo
âmbitos de viva comunhão e participação e orientando-se completamente para a
missão.
29. As outras
instituições eclesiais, comunidades de base e pequenas comunidades, movimentos
e outras formas de associação são uma riqueza da Igreja que o Espírito suscita
para evangelizar todos os ambientes e sectores. Frequentemente trazem um novo
ardor evangelizador e uma capacidade de diálogo com o mundo que renovam a
Igreja. Mas é muito salutar que não percam o contacto com esta realidade muito
rica da paróquia local e que se integrem de bom grado na pastoral orgânica da
Igreja particular. Esta integração evitará que fiquem só com uma parte do
Evangelho e da Igreja, ou que se transformem em nómades sem raízes.
30. Cada Igreja
particular, porção da Igreja Católica sob a guia do seu Bispo, está, também
ela, chamada à conversão missionária. Ela é o sujeito primário da
evangelização, enquanto é a manifestação concreta da única Igreja num lugar da
terra e, nela, «está verdadeiramente presente e opera a Igreja de Cristo, una,
santa, católica e apostólica». É a Igreja encarnada num espaço concreto, dotada
de todos os meios de salvação dados por Cristo, mas com um rosto local. A sua
alegria de comunicar Jesus Cristo exprime-se tanto na sua preocupação por
anunciá-Lo noutros lugares mais necessitados, como numa constante saída para as
periferias do seu território ou para os novos âmbitos socioculturais. Procura
estar sempre onde fazem mais falta a luz e a vida do Ressuscitado. Para que
este impulso missionário seja cada vez mais intenso, generoso e fecundo, exorto
também cada uma das Igrejas particulares a entrar decididamente num processo de
discernimento, purificação e reforma.
31. O Bispo deve
favorecer sempre a comunhão missionária na sua Igreja diocesana, seguindo o
ideal das primeiras comunidades cristãs, em que os crentes tinham um só coração
e uma só alma (cf. Act 4, 32) . Para isso, às vezes pôr-se-á à
frente para indicar a estrada e sustentar a esperança do povo, outras vezes
manter-se-á simplesmente no meio de todos com a sua proximidade simples e
misericordiosa e, em certas circunstâncias, deverá caminhar atrás do povo, para
ajudar aqueles que se atrasaram e sobretudo porque o próprio rebanho possui o
olfacto para encontrar novas estradas. Na sua missão de promover uma comunhão
dinâmica, aberta e missionária, deverá estimular e procurar o amadurecimento dos
organismos de participação propostos pelo Código de Direito Canónico e
de outras formas de diálogo pastoral, com o desejo de ouvir a todos, e não
apenas alguns sempre prontos a lisonjeá-lo. Mas o objectivo destes processos
participativos não há-de ser principalmente a organização eclesial, mas o sonho
missionário de chegar a todos.
32. Dado que sou
chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo pensar também numa conversão
do papado. Compete-me, como Bispo de Roma, permanecer aberto às sugestões
tendentes a um exercício do meu ministério que o torne mais fiel ao significado
que Jesus Cristo pretendeu dar-lhe e às necessidades actuais da evangelização.
O Papa João Paulo II pediu que o ajudassem a encontrar «uma forma de exercício
do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão,
se abra a uma situação nova». Pouco temos avançado neste sentido. Também o
papado e as estruturas centrais da Igreja universal precisam de ouvir este
apelo a uma conversão pastoral. O Concílio Vaticano II afirmou que, à
semelhança das antigas Igrejas patriarcais, as conferências episcopais podem
«aportar uma contribuição múltipla e fecunda, para que o sentimento colegial
leve a aplicações concretas». Mas este desejo não se realizou plenamente,
porque ainda não foi suficientemente explicitado um estatuto das conferências
episcopais que as considere como sujeitos de atribuições concretas, incluindo
alguma autêntica autoridade doutrinal. Uma centralização excessiva, em vez de
ajudar, complica a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária.
33. A pastoral em
chave missionária exige o abandono deste cómodo critério pastoral: «fez-se
sempre assim». Convido todos a serem ousados e criativos nesta tarefa de
repensar os objectivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores
das respectivas comunidades. Uma identificação dos fins, sem uma condigna busca
comunitária dos meios para os alcançar, está condenada a traduzir-se em mera
fantasia. A todos exorto a aplicarem, com generosidade e coragem, as orientações
deste documento, sem impedimentos nem receios. Importante é não caminhar
sozinho, mas ter sempre em conta os irmãos e, de modo especial, a guia dos
Bispos, num discernimento pastoral sábio e realista.
3. A partir do
coração do Evangelho
34. Se pretendemos
colocar tudo em chave missionária, isso aplica-se também à maneira de comunicar
a mensagem. No mundo actual, com a velocidade das comunicações e a selecção
interessada dos conteúdos feita pelos mass-media, a mensagem que
anunciamos corre mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a
alguns dos seus aspectos secundários. Consequentemente, algumas questões que
fazem parte da doutrina moral da Igreja ficam fora do contexto que lhes dá
sentido. O problema maior ocorre quando a mensagem que anunciamos parece então
identificada com tais aspectos secundários, que, apesar de serem relevantes,
por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo. Portanto,
convém ser realistas e não dar por suposto que os nossos interlocutores conhecem
o horizonte completo daquilo que dizemos ou que eles podem relacionar o nosso
discurso com o núcleo essencial do Evangelho que lhe confere sentido, beleza e
fascínio.
35. Uma pastoral em
chave missionária não está obsessionada pela transmissão desarticulada de uma
imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir. Quando se
assume um objectivo pastoral e um estilo missionário, que chegue realmente a
todos sem excepções nem exclusões, o anúncio concentra-se no essencial, no que
é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário.
A proposta acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade, e
assim se torna mais convincente e radiosa.
36. Todas as
verdades reveladas procedem da mesma fonte divina e são acreditadas com a mesma
fé, mas algumas delas são mais importantes por exprimir mais directamente o
coração do Evangelho. Neste núcleo fundamental, o que sobressai é a
beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e
ressuscitado. Neste sentido, o Concílio Vaticano II afirmou que «existe uma
ordem ou “hierarquia” das verdades da doutrina católica, já que o nexo delas
com o fundamento da fé cristã é diferente». Isto é válido tanto para os dogmas
da fé como para o conjunto dos ensinamentos da Igreja, incluindo a doutrina
moral.
37. São Tomás de
Aquino ensinava que, também na mensagem moral da Igreja, há uma hierarquia nas
virtudes e acções que delas procedem. Aqui o que conta é, antes de mais nada,
«a fé que actua pelo amor» (Gal 5, 6). As obras de amor ao próximo
são a manifestação externa mais perfeita da graça interior do Espírito: «O
elemento principal da Nova Lei é a graça do Espírito Santo, que se manifesta
através da fé que opera pelo amor». Por isso afirma que, relativamente ao agir
exterior, a misericórdia é a maior de todas as virtudes: «Em si mesma, a
misericórdia é a maior das virtudes; na realidade, compete-lhe debruçar-se
sobre os outros e – o que mais conta – remediar as misérias alheias. Ora, isto
é tarefa especialmente de quem é superior; é por isso que se diz que é próprio
de Deus usar de misericórdia e é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua
omnipotência».
38. É importante
tirar as consequências pastorais desta doutrina conciliar, que recolhe uma
antiga convicção da Igreja. Antes de mais nada, deve-se dizer que, no anúncio
do Evangelho, é necessário que haja uma proporção adequada. Esta reconhece-se
na frequência com que se mencionam alguns temas e nas acentuações postas na
pregação. Por exemplo, se um pároco, durante um ano litúrgico, fala dez vezes
sobre a temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade ou sobre a
justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas precisamente aquelas virtudes
que deveriam estar mais presentes na pregação e na catequese. E o mesmo
acontece quando se fala mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus
Cristo, mais do Papa que da Palavra de Deus.
39. Tal como existe
uma unidade orgânica entre as virtudes que impede de excluir qualquer uma delas
do ideal cristão, assim também nenhuma verdade é negada. Não é preciso mutilar
a integridade da mensagem do Evangelho. Além disso, cada verdade entende-se
melhor se a colocarmos em relação com a totalidade harmoniosa da mensagem
cristã: e, neste contexto, todas as verdades têm a sua própria importância e
iluminam-se reciprocamente. Quando a pregação é fiel ao Evangelho, manifesta-se
com clareza a centralidade de algumas verdades e fica claro que a pregação moral
cristã não é uma ética estóica, é mais do que uma ascese, não é uma mera
filosofia prática nem um catálogo de pecados e erros. O Evangelho convida,
antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos
outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos. Este convite não
há-de ser obscurecido em nenhuma circunstância! Todas as virtudes estão ao
serviço desta resposta de amor. Se tal convite não refulge com vigor e
fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de
cartas, sendo este o nosso pior perigo; é que, então, não estaremos
propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou
morais, que derivam de certas opções ideológicas. A mensagem correrá o risco de
perder o seu frescor e já não ter «o perfume do Evangelho».
4. A missão que
se encarna nas limitações humanas
40. A Igreja, que é
discípula missionária, tem necessidade de crescer na sua interpretação da
Palavra revelada e na sua compreensão da verdade. A tarefa dos exegetas e
teólogos ajuda a «amadurecer o juízo da Igreja». Embora de modo diferente,
fazem-no também as outras ciências. Referindo-se às ciências sociais, por
exemplo, João Paulo II disse que a Igreja presta atenção às suas contribuições
«para obter indicações concretas que a ajudem no cumprimento da sua missão de
Magistério». Além disso, dentro da Igreja, há inúmeras questões à volta das
quais se indaga e reflecte com grande liberdade. As diversas linhas de
pensamento filosófico, teológico e pastoral, se se deixam harmonizar pelo
Espírito no respeito e no amor, podem fazer crescer a Igreja, enquanto ajudam a
explicitar melhor o tesouro riquíssimo da Palavra. A quantos sonham com uma
doutrina monolítica defendida sem nuances por todos, isto poderá parecer uma dispersão
imperfeita; mas a realidade é que tal variedade ajuda a manifestar e
desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do
Evangelho.
41. Ao mesmo tempo,
as enormes e rápidas mudanças culturais exigem que prestemos constante atenção
ao tentar exprimir as verdades de sempre numa linguagem que permita reconhecer
a sua permanente novidade; é que, no depósito da doutrina cristã, «uma coisa é
a substância (...) e outra é a formulação que a reveste». Por vezes, mesmo
ouvindo uma linguagem totalmente ortodoxa, aquilo que os fiéis recebem, devido
à linguagem que eles mesmos utilizam e compreendem, é algo que não corresponde
ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo. Com a santa intenção de lhes comunicar
a verdade sobre Deus e o ser humano, nalgumas ocasiões, damos-lhes um falso
deus ou um ideal humano que não é verdadeiramente cristão. Deste modo, somos
fiéis a uma formulação, mas não transmitimos a substância. Este é o risco mais
grave. Lembremo-nos de que «a expressão da verdade pode ser multiforme. E a
renovação das formas de expressão torna-se necessária para transmitir ao homem
de hoje a mensagem evangélica no seu significado imutável».
42. Isto possui uma
grande relevância no anúncio do Evangelho, se temos verdadeiramente a peito
fazer perceber melhor a sua beleza e fazê-la acolher por todos. Em todo o caso,
não poderemos jamais tornar os ensinamentos da Igreja uma realidade facilmente
compreensível e felizmente apreciada por todos; a fé conserva sempre um aspecto
de cruz, certa obscuridade que não tira firmeza à sua adesão. Há coisas que se
compreendem e apreciam só a partir desta adesão que é irmã do amor, para além
da clareza com que se possam compreender as razões e os argumentos. Por isso, é
preciso recordar-se de que cada ensinamento da doutrina deve situar-se na
atitude evangelizadora que desperte a adesão do coração com a proximidade, o
amor e o testemunho.
43. No seu constante
discernimento, a Igreja pode chegar também a reconhecer costumes próprios não
directamente ligados ao núcleo do Evangelho, alguns muito radicados no curso da
história, que hoje já não são interpretados da mesma maneira e cuja mensagem
habitualmente não é percebida de modo adequado. Podem até ser belos, mas agora
não prestam o mesmo serviço à transmissão do Evangelho. Não tenhamos medo de os
rever! Da mesma forma, há normas ou preceitos eclesiais que podem ter sido
muito eficazes noutras épocas, mas já não têm a mesma força educativa como
canais de vida. São Tomás de Aquino sublinhava que os preceitos dados por Cristo
e pelos Apóstolos ao povo de Deus «são pouquíssimos». E, citando Santo
Agostinho, observava que os preceitos adicionados posteriormente pela Igreja se
devem exigir com moderação, «para não tornar pesada a vida aos fiéis» nem
transformar a nossa religião numa escravidão, quando «a misericórdia de Deus
quis que fosse livre». Esta advertência, feita há vários séculos, tem uma
actualidade tremenda. Deveria ser um dos critérios a considerar, quando se
pensa numa reforma da Igreja e da sua pregação que permita realmente chegar a
todos.
44. Aliás, tanto os
Pastores como todos os fiéis que acompanham os seus irmãos na fé ou num caminho
de abertura a Deus não podem esquecer aquilo que ensina, com muita clareza,
o Catecismo da Igreja Católica: «A imputabilidade e
responsabilidade dum acto podem ser diminuídas, e até anuladas, pela
ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições
desordenadas e outros factores psíquicos ou sociais».
Portanto, sem
diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e
paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão
construindo dia após dia. Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve
ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor que nos
incentiva a praticar o bem possível. Um pequeno passo, no meio de grandes
limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente
correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades. A
todos deve chegar a consolação e o estímulo do amor salvífico de Deus, que
opera misteriosamente em cada pessoa, para além dos seus defeitos e das suas
quedas.
45. Vemos assim que
o compromisso evangelizador se move por entre as limitações da linguagem e das
circunstâncias. Procura comunicar cada vez melhor a verdade do Evangelho num
contexto determinado, sem renunciar à verdade, ao bem e à luz que pode dar
quando a perfeição não é possível. Um coração missionário está consciente
destas limitações, fazendo-se «fraco com os fracos (...) e tudo para todos» (1
Cor 9, 22). Nunca se fecha, nunca se refugia nas próprias seguranças,
nunca opta pela rigidez auto-defensiva. Sabe que ele mesmo deve crescer na
compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito, e assim não
renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da
estrada.
5. Uma mãe de
coração aberto
46. A Igreja «em
saída» é uma Igreja com as portas abertas. Sair em direcção aos outros para
chegar às periferias humanas não significa correr pelo mundo sem direcção nem
sentido. Muitas vezes é melhor diminuir o ritmo, pôr de parte a ansiedade para
olhar nos olhos e escutar, ou renunciar às urgências para acompanhar quem ficou
caído à beira do caminho. Às vezes, é como o pai do filho pródigo, que continua
com as portas abertas para, quando este voltar, poder entrar sem dificuldade.
47. A Igreja é
chamada a ser sempre a casa aberta do Pai. Um dos sinais concretos desta
abertura é ter, por todo o lado, igrejas com as portas abertas. Assim, se alguém
quiser seguir uma moção do Espírito e se aproximar à procura de Deus, não
esbarrará com a frieza duma porta fechada. Mas há outras portas que também não
se devem fechar: todos podem participar de alguma forma na vida eclesial, todos
podem fazer parte da comunidade, e nem sequer as portas dos sacramentos se
deveriam fechar por uma razão qualquer. Isto vale sobretudo quando se trata
daquele sacramento que é a «porta»: o Baptismo. A Eucaristia, embora constitua
a plenitude da vida sacramental, não é um prémio para os perfeitos, mas um
remédio generoso e um alimento para os fracos. Estas convicções têm também
consequências pastorais, que somos chamados a considerar com prudência e
audácia. Muitas vezes agimos como controladores da graça e não como facilitadores.
Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos
com a sua vida fadigosa.
48. Se a Igreja
inteira assume este dinamismo missionário, há-de chegar a todos, sem excepção.
Mas, a quem deveria privilegiar? Quando se lê o Evangelho, encontramos uma
orientação muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo
aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e
esquecidos, «àqueles que não têm com que te retribuir» (Lc 14, 14).
Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem
claríssima. Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários privilegiados do
Evangelho», e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino
que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo
indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos!
49. Saiamos, saiamos
para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a Igreja,
aquilo que muitas vezes disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires:
prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas,
a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias
seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa
num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve
santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos
nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo,
sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida.
Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos
nas estruturas que nos dão uma falsa protecção, nas normas que nos transformam
em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá
fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós
mesmos de comer» (Mc 6, 37).
Capítulo II
NA CRISE DO
COMPROMISSO COMUNITÁRIO
50. Antes de falar
de algumas questões fundamentais relativas à acção evangelizadora, convém
recordar brevemente o contexto em que temos de viver e agir. É habitual hoje
falar-se dum «excesso de diagnóstico», que nem sempre é acompanhado por
propostas resolutivas e realmente aplicáveis. Por outro lado, também não nos
seria de grande proveito um olhar puramente sociológico, que tivesse a
pretensão, com a sua metodologia, de abraçar toda a realidade de maneira
supostamente neutra e asséptica. O que quero oferecer situa-se mais na linha
dum discernimento evangélico. É o olhar do discípulo missionário
que «se nutre da luz e da força do Espírito Santo».
51. Não é função do
Papa oferecer uma análise detalhada e completa da realidade contemporânea, mas
animo todas as comunidades a «uma capacidade sempre vigilante de estudar os
sinais dos tempos». Trata-se duma responsabilidade grave, pois algumas
realidades hodiernas, se não encontrarem boas soluções, podem desencadear
processos de desumanização tais que será difícil depois retroceder. É preciso
esclarecer o que pode ser um fruto do Reino e também o que atenta contra o
projecto de Deus. Isto implica não só reconhecer e interpretar as moções do
espírito bom e do espírito mau, mas também – e aqui está o ponto decisivo –
escolher as do espírito bom e rejeitar as do espírito mau. Pressuponho as
várias análises que ofereceram os outros documentos do Magistério universal,
bem como as propostas pelos episcopados regionais e nacionais. Nesta Exortação,
pretendo debruçar-me, brevemente e numa perspectiva pastoral, apenas sobre
alguns aspectos da realidade que podem deter ou enfraquecer os dinamismos de
renovação missionária da Igreja, seja porque afectam a vida e a dignidade do
povo de Deus, seja porque incidem sobre os sujeitos que mais directamente
participam nas instituições eclesiais e nas tarefas de evangelização.
1. Alguns
desafios do mundo actual
52. A humanidade
vive, neste momento, uma viragem histórica, que podemos constatar nos
progressos que se verificam em vários campos. São louváveis os sucessos que
contribuem para o bem-estar das pessoas, por exemplo, no âmbito da saúde, da
educação e da comunicação. Todavia não podemos esquecer que a maior parte dos
homens e mulheres do nosso tempo vive o seu dia a dia precariamente, com
funestas consequências. Aumentam algumas doenças. O medo e o desespero
apoderam-se do coração de inúmeras pessoas, mesmo nos chamados países ricos. A
alegria de viver frequentemente se desvanece; crescem a falta de respeito e a
violência, a desigualdade social torna-se cada vez mais patente. É preciso
lutar para viver, e muitas vezes viver com pouca dignidade. Esta mudança de
época foi causada pelos enormes saltos qualitativos, quantitativos, velozes e
acumulados que se verificam no progresso científico, nas inovações tecnológicas
e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da natureza e da vida.
Estamos na era do conhecimento e da informação, fonte de novas formas dum poder
muitas vezes anónimo.
Não a uma
economia da exclusão
53. Assim como o
mandamento «não matar» põe um limite claro para assegurar o valor da vida
humana, assim também hoje devemos dizer «não a uma economia da exclusão e da
desigualdade social». Esta economia mata. Não é possível que a morte por
enregelamento dum idoso sem abrigo não seja notícia, enquanto o é a descida de
dois pontos na Bolsa. Isto é exclusão. Não se pode tolerar mais o facto de se
lançar comida no lixo, quando há pessoas que passam fome. Isto é desigualdade
social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte,
onde o poderoso engole o mais fraco. Em consequência desta situação, grandes
massas da população vêem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem
perspectivas, num beco sem saída. O ser humano é considerado, em si mesmo, como
um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a
cultura do «descartável», que aliás chega a ser promovida. Já não se trata
simplesmente do fenómeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com
a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois
quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os
excluídos não são «explorados», mas resíduos, «sobras».
54. Neste contexto,
alguns defendem ainda as teorias da «recaída favorável» que pressupõem que todo
o crescimento económico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo
produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi
confirmada pelos factos, exprime uma confiança vaga e ingénua na bondade
daqueles que detêm o poder económico e nos mecanismos sacralizados do sistema
económico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar. Para se poder
apoiar um estilo de vida que exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com este
ideal egoísta, desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos
dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores
alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por
cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos
incumbe. A cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de perdermos a
serenidade se o mercado oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas
estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero
espectáculo que não nos incomoda de forma alguma.
Não à nova idolatria
do dinheiro
55. Uma das causas
desta situação está na relação estabelecida com o dinheiro, porque aceitamos
pacificamente o seu domínio sobre nós e as nossas sociedades. A crise
financeira que atravessamos faz-nos esquecer que, na sua origem, há uma crise
antropológica profunda: a negação da primazia do ser humano. Criámos novos
ídolos. A adoração do antigo bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-35)
encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura duma
economia sem rosto e sem um objectivo verdadeiramente humano. A crise mundial,
que investe as finanças e a economia, põe a descoberto os seus próprios
desequilíbrios e sobretudo a grave carência duma orientação antropológica que
reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o consumo.
56. Enquanto os
lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez
mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de
ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação
financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de
velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às
vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as
suas regras. Além disso, a dívida e os respectivos juros afastam os países das
possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real poder de
compra. A tudo isto vem juntar-se uma corrupção ramificada e uma evasão fiscal
egoísta, que assumiram dimensões mundiais. A ambição do poder e do ter não
conhece limites. Neste sistema que tende a fagocitar tudo para aumentar os
benefícios, qualquer realidade que seja frágil, como o meio ambiente, fica
indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra
absoluta.
Não a um dinheiro
que governa em vez de servir
57. Por detrás desta
atitude, escondem-se a rejeição da ética e a recusa de Deus. Para a ética,
olha-se habitualmente com um certo desprezo sarcástico; é considerada
contraproducente, demasiado humana, porque relativiza o dinheiro e o poder. É
sentida como uma ameaça, porque condena a manipulação e degradação da pessoa.
Em última instância, a ética leva a Deus que espera uma resposta comprometida
que está fora das categorias do mercado. Para estas, se absolutizadas, Deus é
incontrolável, não manipulável e até mesmo perigoso, na medida em que chama o
ser humano à sua plena realização e à independência de qualquer tipo de
escravidão. A ética – uma ética não ideologizada – permite criar um equilíbrio
e uma ordem social mais humana. Neste sentido, animo os peritos financeiros e
os governantes dos vários países a considerarem as palavras dum sábio da
antiguidade: «Não fazer os pobres participar dos seus próprios bens é roubá-los
e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas deles, os bens que
aferrolhamos».
58. Uma reforma
financeira que tivesse em conta a ética exigiria uma vigorosa mudança de
atitudes por parte dos dirigentes políticos, a quem exorto a enfrentar este
desafio com determinação e clarividência, sem esquecer naturalmente a
especificidade de cada contexto. O dinheiro deve servir, e não governar! O Papa
ama a todos, ricos e pobres, mas tem a obrigação, em nome de Cristo, de lembrar
que os ricos devem ajudar os pobres, respeitá-los e promovê-los. Exorto-vos a
uma solidariedade desinteressada e a um regresso da economia e das finanças a
uma ética propícia ao ser humano.
Não à
desigualdade social que gera violência
59. Hoje, em muitas
partes, reclama-se maior segurança. Mas, enquanto não se eliminar a exclusão e
a desigualdade dentro da sociedade e entre os vários povos será impossível
desarreigar a violência. Acusam-se da violência os pobres e as populações mais
pobres, mas, sem igualdade de oportunidades, as várias formas de agressão e de
guerra encontrarão um terreno fértil que, mais cedo ou mais tarde, há-de
provocar a explosão. Quando a sociedade – local, nacional ou mundial – abandona
na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos, nem forças da
ordem ou serviços secretos que possam garantir indefinidamente a tranquilidade.
Isto não acontece apenas porque a desigualdade social provoca a reacção
violenta de quantos são excluídos do sistema, mas porque o sistema social e
económico é injusto na sua raiz. Assim como o bem tende a difundir-se, assim também
o mal consentido, que é a injustiça, tende a expandir a sua força nociva e a
minar, silenciosamente, as bases de qualquer sistema político e social, por
mais sólido que pareça. Se cada acção tem consequências, um mal embrenhado nas
estruturas duma sociedade sempre contém um potencial de dissolução e de morte.
É o mal cristalizado nas estruturas sociais injustas, a partir do qual não
podemos esperar um futuro melhor. Estamos longe do chamado «fim da história»,
já que as condições dum desenvolvimento sustentável e pacífico ainda não estão
adequadamente implantadas e realizadas.
60. Os mecanismos da
economia actual promovem uma exacerbação do consumo, mas sabe-se que o
consumismo desenfreado, aliado à desigualdade social, é duplamente daninho para
o tecido social. Assim, mais cedo ou mais tarde, a desigualdade social gera uma
violência que as corridas armamentistas não resolvem nem poderão resolver
jamais. Servem apenas para tentar enganar aqueles que reclamam maior segurança,
como se hoje não se soubesse que as armas e a repressão violenta, mais do que
dar solução, criam novos e piores conflitos. Alguns comprazem-se simplesmente
em culpar, dos próprios males, os pobres e os países pobres, com generalizações
indevidas, e pretendem encontrar a solução numa «educação» que os tranquilize e
transforme em seres domesticados e inofensivos. Isto torna-se ainda mais
irritante, quando os excluídos vêem crescer este câncer social que é a
corrupção profundamente radicada em muitos países – nos seus Governos,
empresários e instituições – seja qual for a ideologia política dos
governantes.
Alguns desafios
culturais
61. Evangelizamos
também procurando enfrentar os diferentes desafios que se nos podem apresentar.
Às vezes, estes manifestam-se em verdadeiros ataques à liberdade religiosa ou
em novas situações de perseguição aos cristãos, que, nalguns países, atingiram
níveis alarmantes de ódio e violência. Em muitos lugares, trata-se mais de uma
generalizada indiferença relativista, relacionada com a desilusão e a crise das
ideologias que se verificou como reacção a tudo o que pareça totalitário. Isto
não prejudica só a Igreja, mas a vida social em geral. Reconhecemos que, numa
cultura onde cada um pretende ser portador duma verdade subjectiva própria,
torna-se difícil que os cidadãos queiram inserir-se num projecto comum que vai
além dos benefícios e desejos pessoais.
62. Na cultura
dominante, ocupa o primeiro lugar aquilo que é exterior, imediato, visível,
rápido, superficial, provisório. O real cede o lugar à aparência. Em muitos
países, a globalização comportou uma acelerada deterioração das raízes
culturais com a invasão de tendências pertencentes a outras culturas,
economicamente desenvolvidas mas eticamente debilitadas. Assim se exprimiram,
em distintos Sínodos, os Bispos de vários continentes. Há alguns anos, os
Bispos da África, por exemplo, retomando a Encíclica Sollicitudo rei
socialis, assinalaram que muitas vezes se quer transformar os países
africanos em meras «peças de um mecanismo, partes de uma engrenagem gigantesca.
Isto verifica-se com frequência também no domínio dos meios de comunicação
social, os quais, sendo na sua maior parte geridos por centros situados na
parte norte do mundo, nem sempre têm na devida conta as prioridades e os
problemas próprios desses países e não respeitam a sua fisionomia cultural». De
igual modo, os Bispos da Ásia sublinharam «as influências externas que estão a
penetrar nas culturas asiáticas. Vão surgindo formas novas de comportamento
resultantes da orientação dos mass-media (…). Em consequência
disso, os aspectos negativos dos mass-media e espectáculos
estão a ameaçar os valores tradicionais».
63. A fé católica de
muitos povos encontra-se hoje perante o desafio da proliferação de novos
movimentos religiosos, alguns tendentes ao fundamentalismo e outros que parecem
propor uma espiritualidade sem Deus. Isto, por um lado, é o resultado duma
reacção humana contra a sociedade materialista, consumista e individualista e,
por outro, um aproveitamento das carências da população que vive nas periferias
e zonas pobres, sobrevive no meio de grandes preocupações humanas e procura
soluções imediatas para as suas necessidades. Estes movimentos religiosos, que
se caracterizam pela sua penetração subtil, vêm colmar, dentro do
individualismo reinante, um vazio deixado pelo racionalismo secularista. Além
disso, é necessário reconhecer que, se uma parte do nosso povo baptizado não
sente a sua pertença à Igreja, isso deve-se também à existência de estruturas
com clima pouco acolhedor nalgumas das nossas paróquias e comunidades, ou à
atitude burocrática com que se dá resposta aos problemas, simples ou complexos,
da vida dos nossos povos. Em muitas partes, predomina o aspecto administrativo
sobre o pastoral, bem como uma sacramentalização sem outras formas de
evangelização.
64. O processo de
secularização tende a reduzir a fé e a Igreja ao âmbito privado e íntimo. Além
disso, com a negação de toda a transcendência, produziu-se uma crescente
deformação ética, um enfraquecimento do sentido do pecado pessoal e social e um
aumento progressivo do relativismo; e tudo isso provoca uma desorientação
generalizada, especialmente na fase tão vulnerável às mudanças da adolescência
e juventude. Como justamente observam os Bispos dos Estados Unidos da América,
enquanto a Igreja insiste na existência de normas morais objectivas, válidas
para todos, «há aqueles que apresentam esta doutrina como injusta, ou seja,
contrária aos direitos humanos básicos. Tais alegações brotam habitualmente de
uma forma de relativismo moral, que se une consistentemente a uma confiança nos
direitos absolutos dos indivíduos. Nesta perspectiva, a Igreja é sentida como
se estivesse promovendo um convencionalismo particular e interferisse com a
liberdade individual». Vivemos numa sociedade da informação que nos satura
indiscriminadamente de dados, todos postos ao mesmo nível, e acaba por nos
conduzir a uma tremenda superficialidade no momento de enquadrar as questões
morais. Por conseguinte, torna-se necessária uma educação que ensine a pensar
criticamente e ofereça um caminho de amadurecimento nos valores.
65. Apesar de toda a
corrente secularista que invade a sociedade, em muitos países – mesmo onde o
cristianismo está em minoria – a Igreja Católica é uma instituição credível
perante a opinião pública, fiável no que diz respeito ao âmbito da
solidariedade e preocupação pelos mais indigentes. Em repetidas ocasiões, ela
serviu de medianeira na solução de problemas que afectam a paz, a concórdia, o
meio ambiente, a defesa da vida, os direitos humanos e civis, etc. E como é
grande a contribuição das escolas e das universidades católicas no mundo
inteiro! E é muito bom que assim seja. Mas, quando levantamos outras questões
que suscitam menor acolhimento público, custa-nos a demonstrar que o fazemos
por fidelidade às mesmas convicções sobre a dignidade da pessoa humana e do bem
comum.
66. A família
atravessa uma crise cultural profunda, como todas as comunidades e vínculos
sociais. No caso da família, a fragilidade dos vínculos reveste-se de especial
gravidade, porque se trata da célula básica da sociedade, o espaço onde se
aprende a conviver na diferença e a pertencer aos outros e onde os pais
transmitem a fé aos seus filhos. O matrimónio tende a ser visto como mera forma
de gratificação afectiva, que se pode constituir de qualquer maneira e
modificar-se de acordo com a sensibilidade de cada um. Mas a contribuição
indispensável do matrimónio à sociedade supera o nível da afectividade e o das
necessidades ocasionais do casal. Como ensinam os Bispos franceses, não provém
«do sentimento amoroso, efémero por definição, mas da profundidade do
compromisso assumido pelos esposos que aceitam entrar numa união de vida
total».
67. O individualismo
pós-moderno e globalizado favorece um estilo de vida que debilita o
desenvolvimento e a estabilidade dos vínculos entre as pessoas e distorce os
vínculos familiares. A acção pastoral deve mostrar ainda melhor que a relação
com o nosso Pai exige e incentiva uma comunhão que cura, promove e fortalece os
vínculos interpessoais. Enquanto no mundo, especialmente nalguns países, se
reacendem várias formas de guerras e conflitos, nós, cristãos, insistimos na
proposta de reconhecer o outro, de curar as feridas, de construir pontes, de
estreitar laços e de nos ajudarmos «a carregar as cargas uns dos outros» (Gal 6,
2). Além disso, vemos hoje surgir muitas formas de agregação para a defesa de
direitos e a consecução de nobres objectivos. Deste modo se manifesta uma sede
de participação de numerosos cidadãos, que querem ser construtores do
desenvolvimento social e cultural.
Desafios da
inculturação da fé
68. O substrato
cristão dalguns povos – sobretudo ocidentais – é uma realidade viva. Aqui encontramos,
especialmente nos mais necessitados, uma reserva moral que guarda valores de
autêntico humanismo cristão. Um olhar de fé sobre a realidade não pode deixar
de reconhecer o que semeia o Espírito Santo. Significaria não ter confiança na
sua acção livre e generosa pensar que não existem autênticos valores cristãos,
onde uma grande parte da população recebeu o Baptismo e exprime de variadas
maneiras a sua fé e solidariedade fraterna. Aqui há que reconhecer muito mais
que «sementes do Verbo», visto que se trata duma autêntica fé católica com
modalidades próprias de expressão e de pertença à Igreja. Não convém ignorar a
enorme importância que tem uma cultura marcada pela fé, porque, não obstante os
seus limites, esta cultura evangelizada tem, contra os ataques do secularismo
actual, muitos mais recursos do que a mera soma dos crentes. Uma cultura
popular evangelizada contém valores de fé e solidariedade que podem provocar o
desenvolvimento duma sociedade mais justa e crente, e possui uma sabedoria
peculiar que devemos saber reconhecer com olhar agradecido.
69. Há uma
necessidade imperiosa de evangelizar as culturas para inculturar o Evangelho.
Nos países de tradição católica, tratar-se-á de acompanhar, cuidar e fortalecer
a riqueza que já existe e, nos países de outras tradições religiosas ou
profundamente secularizados, há que procurar novos processos de evangelização
da cultura, ainda que suponham projectos a longo prazo. Entretanto não podemos
ignorar que há sempre uma chamada ao crescimento: toda a cultura e todo o grupo
social necessitam de purificação e amadurecimento. No caso das culturas
populares de povos católicos, podemos reconhecer algumas fragilidades que
precisam ainda de ser curadas pelo Evangelho: o machismo, o alcoolismo, a
violência doméstica, uma escassa participação na Eucaristia, crenças fatalistas
ou supersticiosas que levam a recorrer à bruxaria, etc. Mas o melhor ponto de
partida para curar e ver-se livre de tais fragilidades é precisamente a piedade
popular.
70. Certo é também
que, às vezes, se dá maior realce a formas exteriores das tradições de grupos
concretos ou a supostas revelações privadas, que se absolutizam, do que ao
impulso da piedade cristã. Há certo cristianismo feito de devoções – próprio
duma vivência individual e sentimental da fé – que, na realidade, não
corresponde a uma autêntica «piedade popular». Alguns promovem estas expressões
sem se preocupar com a promoção social e a formação dos fiéis, fazendo-o
nalguns casos para obter benefícios económicos ou algum poder sobre os outros.
Também não podemos ignorar que, nas últimas décadas, se produziu uma ruptura na
transmissão geracional da fé cristã no povo católico. É inegável que muitos se
sentem desiludidos e deixam de se identificar com a tradição católica, que
cresceu o número de pais que não baptizam os seus filhos nem os ensinam a
rezar, e que há um certo êxodo para outras comunidades de fé. Algumas causas
desta ruptura são a falta de espaços de diálogo familiar, a influência dos
meios de comunicação, o subjectivismo relativista, o consumismo desenfreado que
o mercado incentiva, a falta de cuidado pastoral pelos mais pobres, a
inexistência dum acolhimento cordial nas nossas instituições, e a dificuldade
que sentimos em recriar a adesão mística da fé num cenário religioso
pluralista.
Desafios das
culturas urbanas
71. A nova
Jerusalém, a cidade santa (cf. Ap 21, 2-4), é a meta para onde
peregrina toda a humanidade. É interessante que a revelação nos diga que a
plenitude da humanidade e da história se realiza numa cidade. Precisamos de
identificar a cidade a partir dum olhar contemplativo, isto é, um olhar de fé
que descubra Deus que habita nas suas casas, nas suas ruas, nas suas praças. A
presença de Deus acompanha a busca sincera que indivíduos e grupos efectuam
para encontrar apoio e sentido para a sua vida. Ele vive entre os citadinos
promovendo a solidariedade, a fraternidade, o desejo de bem, de verdade, de
justiça. Esta presença não precisa de ser criada, mas descoberta, desvendada.
Deus não Se esconde de quantos O buscam com coração sincero, ainda que o façam
tacteando, de maneira imprecisa e incerta.
72. Na cidade, o
elemento religioso é mediado por diferentes estilos de vida, por costumes
ligados a um sentido do tempo, do território e das relações que difere do estilo
das populações rurais. Na vida quotidiana, muitas vezes os citadinos lutam para
sobreviver e, nesta luta, esconde-se um sentido profundo da existência que
habitualmente comporta também um profundo sentido religioso. Precisamos de o
contemplar para conseguirmos um diálogo parecido com o que o Senhor teve com a
Samaritana, junto do poço onde ela procurava saciar a sua sede (cf. Jo 4,
7-26).
73. Novas culturas
continuam a formar-se nestas enormes geografias humanas onde o cristão já não
costuma ser promotor ou gerador de sentido, mas recebe delas outras linguagens,
símbolos, mensagens e paradigmas que oferecem novas orientações de vida, muitas
vezes em contraste com o Evangelho de Jesus. Uma cultura inédita palpita e está
em elaboração na cidade. O Sínodo constatou que as transformações destas
grandes áreas e a cultura que exprimem são, hoje, um lugar privilegiado da nova
evangelização. Isto requer imaginar espaços de oração e de comunhão com
características inovadoras, mais atraentes e significativas para as populações
urbanas. Os ambientes rurais, devido à influência dos mass-media,
não estão imunes destas transformações culturais que também operam mudanças
significativas nas suas formas de vida.
74. Torna-se
necessária uma evangelização que ilumine os novos modos de se relacionar com
Deus, com os outros e com o ambiente, e que suscite os valores fundamentais. É
necessário chegar aonde são concebidas as novas histórias e paradigmas,
alcançar com a Palavra de Jesus os núcleos mais profundos da alma das cidades.
Não se deve esquecer que a cidade é um âmbito multicultural. Nas grandes
cidades, pode observar-se uma trama em que grupos de pessoas compartilham as
mesmas formas de sonhar a vida e ilusões semelhantes, constituindo-se em novos
sectores humanos, em territórios culturais, em cidades invisíveis. Na
realidade, convivem variadas formas culturais, mas exercem muitas vezes
práticas de segregação e violência. A Igreja é chamada a ser servidora dum
diálogo difícil. Enquanto há citadinos que conseguem os meios adequados para o
desenvolvimento da vida pessoal e familiar, muitíssimos são também os
«não-citadinos», os «meio-citadinos» ou os «resíduos urbanos». A cidade dá
origem a uma espécie de ambivalência permanente, porque, ao mesmo tempo que
oferece aos seus habitantes infinitas possibilidades, interpõe também numerosas
dificuldades ao pleno desenvolvimento da vida de muitos. Esta contradição
provoca sofrimentos lancinantes. Em muitas partes do mundo, as cidades são
cenário de protestos em massa, onde milhares de habitantes reclamam liberdade,
participação, justiça e várias reivindicações que, se não forem adequadamente
interpretadas, nem pela força poderão ser silenciadas.
75. Não podemos
ignorar que, nas cidades, facilmente se desenvolve o tráfico de drogas e de
pessoas, o abuso e a exploração de menores, o abandono de idosos e doentes,
várias formas de corrupção e crime. Ao mesmo tempo, o que poderia ser um
precioso espaço de encontro e solidariedade, transforma-se muitas vezes num
lugar de retraimento e desconfiança mútua. As casas e os bairros constroem-se
mais para isolar e proteger do que para unir e integrar. A proclamação do
Evangelho será uma base para restabelecer a dignidade da vida humana nestes
contextos, porque Jesus quer derramar nas cidades vida em abundância (cf. Jo 10,
10). O sentido unitário e completo da vida humana proposto pelo Evangelho é o
melhor remédio para os males urbanos, embora devamos reparar que um programa e
um estilo uniformes e rígidos de evangelização não são adequados para esta
realidade. Mas viver a fundo a realidade humana e inserir-se no coração dos
desafios como fermento de testemunho, em qualquer cultura, em qualquer cidade,
melhora o cristão e fecunda a cidade.
2. Tentações dos
agentes pastorais
76. Sinto uma enorme
gratidão pela tarefa de quantos trabalham na Igreja. Não quero agora deter-me
na exposição das actividades dos vários agentes pastorais, desde os Bispos até
ao mais simples e ignorado dos serviços eclesiais. Prefiro reflectir sobre os
desafios que todos eles enfrentam no meio da cultura globalizada actual. Mas,
antes de tudo e como dever de justiça, tenho a dizer que é enorme a
contribuição da Igreja no mundo actual. A nossa tristeza e vergonha pelos
pecados de alguns membros da Igreja, e pelos próprios, não devem fazer esquecer
os inúmeros cristãos que dão a vida por amor: ajudam tantas pessoas seja a
curar-se seja a morrer em paz em hospitais precários, acompanham as pessoas que
caíram escravas de diversos vícios nos lugares mais pobres da terra, prodigalizam-se
na educação de crianças e jovens, cuidam de idosos abandonados por todos,
procuram comunicar valores em ambientes hostis, e dedicam-se de muitas outras
maneiras que mostram o imenso amor à humanidade inspirado por Deus feito homem.
Agradeço o belo exemplo que me dão tantos cristãos que oferecem a sua vida e o
seu tempo com alegria. Este testemunho faz-me muito bem e me apoia na minha
aspiração pessoal de superar o egoísmo para uma dedicação maior.
77. Apesar disso,
como filhos desta época, todos estamos de algum modo sob o influxo da cultura
globalizada actual, que, sem deixar de apresentar valores e novas
possibilidades, pode também limitar-nos, condicionar-nos e até mesmo
combalir-nos. Reconheço que precisamos de criar espaços apropriados para motivar
e sanar os agentes pastorais, «lugares onde regenerar a sua fé em Jesus
crucificado e ressuscitado, onde compartilhar as próprias questões mais
profundas e as preocupações quotidianas, onde discernir em profundidade e com
critérios evangélicos sobre a própria existência e experiência, com o objectivo
de orientar para o bem e a beleza as próprias opções individuais e sociais». Ao
mesmo tempo, quero chamar a atenção para algumas tentações que afectam,
particularmente nos nossos dias, os agentes pastorais.
Sim ao desafio
duma espiritualidade missionária
78. Hoje nota-se em
muitos agentes pastorais, mesmo pessoas consagradas, uma preocupação exacerbada
pelos espaços pessoais de autonomia e relaxamento, que leva a viver os próprios
deveres como mero apêndice da vida, como se não fizessem parte da própria
identidade. Ao mesmo tempo, a vida espiritual confunde-se com alguns momentos
religiosos que proporcionam algum alívio, mas não alimentam o encontro com os
outros, o compromisso no mundo, a paixão pela evangelização. Assim, é possível
notar em muitos agentes evangelizadores – não obstante rezem – uma acentuação
do individualismo, uma crise de identidade e
um declínio do fervor. São três males que se alimentam entre si.
79. A cultura
mediática e alguns ambientes intelectuais transmitem, às vezes, uma acentuada
desconfiança quanto à mensagem da Igreja, e um certo desencanto. Em
consequência disso, embora rezando, muitos agentes pastorais desenvolvem uma
espécie de complexo de inferioridade que os leva a relativizar ou esconder a
sua identidade cristã e as suas convicções. Gera-se então um círculo vicioso,
porque assim não se sentem felizes com o que são nem com o que fazem, não se
sentem identificados com a missão evangelizadora, e isto debilita a entrega.
Acabam assim por sufocar a alegria da missão numa espécie de obsessão por serem
como todos os outros e terem o que possuem os demais. Deste modo, a tarefa da
evangelização torna-se forçada e dedica-se-lhe pouco esforço e um tempo muito
limitado.
80. Nos agentes
pastorais, independentemente do estilo espiritual ou da linha de pensamento que
possam ter, desenvolve-se um relativismo ainda mais perigoso que o doutrinal.
Tem a ver com as opções mais profundas e sinceras que determinam uma forma de
vida concreta. Este relativismo prático é agir como se Deus não existisse,
decidir como se os pobres não existissem, sonhar como se os outros não
existissem, trabalhar como se aqueles que não receberam o anúncio não
existissem. É impressionante como até aqueles que aparentemente dispõem de
sólidas convicções doutrinais e espirituais acabam, muitas vezes, por cair num
estilo de vida que os leva a agarrarem-se a seguranças económicas ou a espaços
de poder e de glória humana que se buscam por qualquer meio, em vez de dar a
vida pelos outros na missão. Não nos deixemos roubar o entusiasmo missionário!
Não à acédia
egoísta
81. Quando mais
precisamos dum dinamismo missionário que leve sal e luz ao mundo, muitos leigos
temem que alguém os convide a realizar alguma tarefa apostólica e procuram
fugir de qualquer compromisso que lhes possa roubar o tempo livre. Hoje, por
exemplo, tornou-se muito difícil nas paróquias conseguir catequistas que
estejam preparados e perseverem no seu dever por vários anos. Mas algo parecido
acontece com os sacerdotes que se preocupam obsessivamente com o seu tempo
pessoal. Isto, muitas vezes, fica-se a dever a que as pessoas sentem
imperiosamente necessidade de preservar os seus espaços de autonomia, como se
uma tarefa de evangelização fosse um veneno perigoso e não uma resposta alegre
ao amor de Deus que nos convoca para a missão e nos torna completos e fecundos.
Alguns resistem a provar até ao fundo o gosto da missão e acabam mergulhados
numa acédia paralisadora.
82. O problema não
está sempre no excesso de actividades, mas sobretudo nas actividades mal
vividas, sem as motivações adequadas, sem uma espiritualidade que impregne a
acção e a torne desejável. Daí que as obrigações cansem mais do que é razoável,
e às vezes façam adoecer. Não se trata duma fadiga feliz, mas tensa, gravosa,
desagradável e, em definitivo, não assumida. Esta acédia pastoral pode ter
origens diversas: alguns caem nela por sustentarem projectos irrealizáveis e
não viverem de bom grado o que poderiam razoavelmente fazer; outros, por não
aceitarem a custosa evolução dos processos e querem que tudo caia do Céu;
outros, por se apegarem a alguns projectos ou a sonhos de sucesso cultivados
pela sua vaidade; outros, por terem perdido o contacto real com o povo, numa
despersonalização da pastoral que leva a prestar mais atenção à organização do
que às pessoas, acabando assim por se entusiasmarem mais com a «tabela de
marcha» do que com a própria marcha; outros ainda caem na acédia, por não
saberem esperar e quererem dominar o ritmo da vida. A ânsia hodierna de chegar
a resultados imediatos faz com que os agentes pastorais não tolerem facilmente
tudo o que signifique alguma contradição, um aparente fracasso, uma crítica,
uma cruz.
83. Assim se gera a
maior ameaça, que «é o pragmatismo cinzento da vida quotidiana da Igreja, no
qual aparentemente tudo procede dentro da normalidade, mas na realidade a fé
vai-se deteriorando e degenerando na mesquinhez». Desenvolve-se a psicologia do
túmulo, que pouco a pouco transforma os cristãos em múmias de museu.
Desiludidos com a realidade, com a Igreja ou consigo mesmos, vivem
constantemente tentados a apegar-se a uma tristeza melosa, sem esperança, que
se apodera do coração como «o mais precioso elixir do demónio». Chamados para
iluminar e comunicar vida, acabam por se deixar cativar por coisas que só geram
escuridão e cansaço interior e corroem o dinamismo apostólico. Por tudo isto,
permiti que insista: Não deixemos que nos roubem a alegria da evangelização!
Não ao pessimismo
estéril
4. A alegria do
Evangelho é tal que nada e ninguém no-la poderá tirar (cf. Jo 16,
22). Os males do nosso mundo – e os da Igreja – não deveriam servir como
desculpa para reduzir a nossa entrega e o nosso ardor. Vejamo-los como desafios
para crescer. Além disso, o olhar crente é capaz de reconhecer a luz que o
Espírito Santo sempre irradia no meio da escuridão, sem esquecer que, «onde
abundou o pecado, superabundou a graça» (Rm 5, 20). A nossa fé é
desafiada a entrever o vinho em que a água pode ser transformada, e a descobrir
o trigo que cresce no meio do joio. Cinquenta anos depois do Concílio Vaticano
II, apesar de nos entristecerem as misérias do nosso tempo e estarmos longe de
optimismos ingénuos, um maior realismo não deve significar menor confiança no
Espírito nem menor generosidade. Neste sentido, podemos voltar a ouvir as
palavras pronunciadas pelo Beato João XXIII naquele memorável 11 de Outubro de
1962: «Chegam-nos aos ouvidos insinuações de almas, ardorosas sem dúvida no
zelo, mas não dotadas de grande sentido de discrição e moderação. Nos tempos
actuais, não vêem senão prevaricações e ruínas. [...] Mas a nós parece-nos que
devemos discordar desses profetas de desgraças, que anunciam acontecimentos
sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo. Na ordem presente
das coisas, a misericordiosa Providência está-nos levantando para uma ordem de
relações humanas que, por obra dos homens e a maior parte das vezes para além
do que eles esperam, se encaminham para o cumprimento dos seus desígnios
superiores e inesperados, e tudo, mesmo as adversidades humanas, converge para
o bem da Igreja».
85. Uma das
tentações mais sérias que sufoca o fervor e a ousadia é a sensação de derrota
que nos transforma em pessimistas lamurientos e desencantados com cara de
vinagre. Ninguém pode empreender uma luta, se de antemão não está plenamente
confiado no triunfo. Quem começa sem confiança, perdeu de antemão metade da
batalha e enterra os seus talentos. Embora com a dolorosa consciência das próprias
fraquezas, há que seguir em frente, sem se dar por vencido, e recordar o que
disse o Senhor a São Paulo: «Basta-te a minha graça, porque a força
manifesta-se na fraqueza» (2 Cor 12, 9). O triunfo cristão é sempre
uma cruz, mas cruz que é, simultaneamente, estandarte de vitória, que se
empunha com ternura batalhadora contra as investidas do mal. O mau espírito da
derrota é irmão da tentação de separar prematuramente o trigo do joio,
resultado de uma desconfiança ansiosa e egocêntrica.
86. É verdade que,
nalguns lugares, se produziu uma «desertificação» espiritual, fruto do projecto
de sociedades que querem construir sem Deus ou que destroem as suas raízes
cristãs. Lá, «o mundo cristão está a tornar-se estéril e se esgota como uma
terra excessivamente desfrutada que se transforma em poeira». Noutros países, a
resistência violenta ao cristianismo obriga os cristãos a viverem a sua fé às
escondidas no país que amam. Esta é outra forma muito triste de deserto. E a
própria família ou o lugar de trabalho podem ser também o tal ambiente árido,
onde há que conservar a fé e procurar irradiá-la. Mas «é precisamente a partir
da experiência deste deserto, deste vazio, que podemos redescobrir a alegria de
crer, a sua importância vital para nós, homens e mulheres. No deserto, é
possível redescobrir o valor daquilo que é essencial para a vida; assim sendo,
no mundo de hoje, há inúmeros sinais da sede de Deus, do sentido último da
vida, ainda que muitas vezes expressos implícita ou negativamente. E, no
deserto, existe sobretudo a necessidade de pessoas de fé que, com suas próprias
vidas, indiquem o caminho para a Terra Prometida, mantendo assim viva a
esperança». Em todo o caso, lá somos chamados a ser pessoas-cântaro para dar de
beber aos outros. Às vezes o cântaro transforma-se numa pesada cruz, mas foi
precisamente na Cruz que o Senhor, trespassado, Se nos entregou como fonte de
água viva. Não deixemos que nos roubem a esperança!
Sim às relações
novas geradas por Jesus Cristo
87. Neste tempo em
que as redes e demais instrumentos da comunicação humana alcançaram progressos
inauditos, sentimos o desafio de descobrir e transmitir a «mística» de viver
juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta
maré um pouco caótica que pode transformar-se numa verdadeira experiência de
fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada. Assim, as
maiores possibilidades de comunicação traduzir-se-ão em novas oportunidades de
encontro e solidariedade entre todos. Como seria bom, salutar, libertador,
esperançoso, se pudéssemos trilhar este caminho! Sair de si mesmo para se unir
aos outros faz bem. Fechar-se em si mesmo é provar o veneno amargo da
imanência, e a humanidade perderá com cada opção egoísta que fizermos.
88. O ideal cristão
convidará sempre a superar a suspeita, a desconfiança permanente, o medo de
sermos invadidos, as atitudes defensivas que nos impõe o mundo actual. Muitos
tentam escapar dos outros fechando-se na sua privacidade confortável ou no
círculo reduzido dos mais íntimos, e renunciam ao realismo da dimensão social
do Evangelho. Porque, assim como alguns quiseram um Cristo puramente
espiritual, sem carne nem cruz, também se pretendem relações interpessoais
mediadas apenas por sofisticados aparatos, por ecrãs e sistemas que se podem
acender e apagar à vontade. Entretanto o Evangelho convida-nos sempre a abraçar
o risco do encontro com o rosto do outro, com a sua presença física que
interpela, com o seu sofrimentos e suas reivindicações, com a sua alegria
contagiosa permanecendo lado a lado. A verdadeira fé no Filho de Deus feito
carne é inseparável do dom de si mesmo, da pertença à comunidade, do serviço,
da reconciliação com a carne dos outros. Na sua encarnação, o Filho de Deus
convidou-nos à revolução da ternura.
89. O isolamento,
que é uma concretização do imanentismo, pode exprimir-se numa falsa autonomia
que exclui Deus, mas pode também encontrar na religião uma forma de consumismo
espiritual à medida do próprio individualismo doentio. O regresso ao sagrado e
a busca espiritual, que caracterizam a nossa época. são fenómenos ambíguos.
Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder
adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir
apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem
compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os
cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão
solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não
humanizam nem dão glória a Deus.
90. As formas
próprias da religiosidade popular são encarnadas, porque brotaram da encarnação
da fé cristã numa cultura popular. Por isso mesmo, incluem uma relação pessoal,
não com energias harmonizadoras, mas com Deus, Jesus Cristo, Maria, um Santo.
Têm carne, têm rostos. Estão aptas para alimentar potencialidades relacionais e
não tanto fugas individualistas. Noutros sectores da nossa sociedade, cresce o
apreço por várias formas de «espiritualidade do bem-estar» sem comunidade, por
uma «teologia da prosperidade» sem compromissos fraternos ou por experiências
subjectivas sem rostos, que se reduzem a uma busca interior imanentista.
91. Um desafio
importante é mostrar que a solução nunca consistirá em escapar de uma relação
pessoal e comprometida com Deus, que ao mesmo tempo nos comprometa com os
outros. Isto é o que se verifica hoje quando os crentes procuram esconder-se e
livrar-se dos outros, e quando subtilmente escapam de um lugar para outro ou de
uma tarefa para outra, sem criar vínculos profundos e estáveis: «A imaginação e
mudança de lugares enganou a muitos». É um remédio falso que faz adoecer o
coração e, às vezes, o corpo. Faz falta ajudar a reconhecer que o único caminho
é aprender a encontrar os demais com a atitude adequada, que é valorizá-los e
aceitá-los como companheiros de estrada, sem resistências interiores. Melhor
ainda, trata-se de aprender a descobrir Jesus no rosto dos outros, na sua voz,
nas suas reivindicações; e aprender também a sofrer, num abraço com Jesus
crucificado, quando recebemos agressões injustas ou ingratidões, sem nos
cansarmos jamais de optar pela fraternidade.
92. Nisto está a
verdadeira cura: de facto, o modo de nos relacionarmos com os outros que, em
vez de nos adoecer, nos cura é uma fraternidade mística,
contemplativa, que sabe ver a grandeza sagrada do próximo, que sabe descobrir
Deus em cada ser humano, que sabe tolerar as moléstias da convivência
agarrando-se ao amor de Deus, que sabe abrir o coração ao amor divino para
procurar a felicidade dos outros como a procura o seu Pai bom. Precisamente
nesta época, inclusive onde são um «pequenino rebanho» (Lc 12, 32),
os discípulos do Senhor são chamados a viver como comunidade que seja sal da
terra e luz do mundo (cf. Mt 5, 13-16). São chamados a
testemunhar, de forma sempre nova, uma pertença evangelizadora. Não deixemos
que nos roubem a comunidade!
Não ao mundanismo
espiritual
93. O mundanismo
espiritual, que se esconde por detrás de aparências de religiosidade e até
mesmo de amor à Igreja, é buscar, em vez da glória do Senhor, a glória humana e
o bem-estar pessoal. É aquilo que o Senhor censurava aos fariseus: «Como vos é
possível acreditar, se andais à procura da glória uns dos outros, e não procurais
a glória que vem do Deus único?» (Jo 5, 44). É uma maneira subtil
de procurar «os próprios interesses, não os interesses de Jesus Cristo» (Fl 2,
21). Reveste-se de muitas formas, de acordo com o tipo de pessoas e situações
em que penetra. Por cultivar o cuidado da aparência, nem sempre suscita pecados
de domínio público, pelo que externamente tudo parece correcto. Mas, se
invadisse a Igreja, «seria infinitamente mais desastroso do que qualquer outro
mundanismo meramente moral».
94. Este mundanismo
pode alimentar-se sobretudo de duas maneiras profundamente relacionadas. Uma
delas é o fascínio do gnosticismo, uma fé fechada no subjectivismo, onde apenas
interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e
conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância,
a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus
sentimentos. A outra maneira é o neopelagianismo auto-referencial e prometeuco
de quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças e se sente superior aos
outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um
certo estilo católico próprio do passado. É uma suposta segurança doutrinal ou
disciplinar que dá lugar a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez
de evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o
acesso à graça, consomem-se as energias a controlar. Em ambos os casos, nem
Jesus Cristo nem os outros interessam verdadeiramente. São manifestações dum
imanentismo antropocêntrico. Não é possível imaginar que, destas formas
desvirtuadas do cristianismo, possa brotar um autêntico dinamismo
evangelizador.
95. Este obscuro
mundanismo manifesta-se em muitas atitudes, aparentemente opostas mas com a
mesma pretensão de «dominar o espaço da Igreja». Nalguns, há um cuidado
exibicionista da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, mas não se
preocupam que o Evangelho adquira uma real inserção no povo fiel de Deus e nas
necessidades concretas da história. Assim, a vida da Igreja transforma-se numa
peça de museu ou numa possessão de poucos. Noutros, o próprio mundanismo
espiritual esconde-se por detrás do fascínio de poder mostrar conquistas
sociais e políticas, ou numa vanglória ligada à gestão de assuntos práticos, ou
numa atracção pelas dinâmicas de auto-estima e de realização autoreferencial.
Também se pode traduzir em várias formas de se apresentar a si mesmo envolvido
numa densa vida social cheia de viagens, reuniões, jantares, recepções. Ou
então desdobra-se num funcionalismo empresarial, carregado de estatísticas,
planificações e avaliações, onde o principal beneficiário não é o povo de Deus
mas a Igreja como organização. Em qualquer um dos casos, não traz o selo de
Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado, encerra-se em grupos de elite,
não sai realmente à procura dos que andam perdidos nem das imensas multidões
sedentas de Cristo. Já não há ardor evangélico, mas o gozo espúrio duma
autocomplacência egocêntrica.
96. Neste contexto,
alimenta-se a vanglória de quantos se contentam com ter algum poder e preferem
ser generais de exércitos derrotados antes que simples soldados dum batalhão
que continua a lutar. Quantas vezes sonhamos planos apostólicos expansionistas,
meticulosos e bem traçados, típicos de generais derrotados! Assim negamos a
nossa história de Igreja, que é gloriosa por ser história de sacrifícios, de
esperança, de luta diária, de vida gasta no serviço, de constância no trabalho
fadigoso, porque todo o trabalho é «suor do nosso rosto». Em vez disso,
entretemo-nos vaidosos a falar sobre «o que se deveria fazer» – o pecado do
«deveriaqueísmo» – como mestres espirituais e peritos de pastoral que dão
instruções ficando de fora. Cultivamos a nossa imaginação sem limites e
perdemos o contacto com a dolorosa realidade do nosso povo fiel.
97. Quem caiu neste
mundanismo olha de cima e de longe, rejeita a profecia dos irmãos, desqualifica
quem o questiona, faz ressaltar constantemente os erros alheios e vive obcecado
pela aparência. Circunscreveu os pontos de referência do coração ao horizonte
fechado da sua imanência e dos seus interesses e, consequentemente, não aprende
com os seus pecados nem está verdadeiramente aberto ao perdão. É uma tremenda
corrupção, com aparências de bem. Devemos evitá-lo, pondo a Igreja em movimento
de saída de si mesma, de missão centrada em Jesus Cristo, de entrega aos
pobres. Deus nos livre de uma Igreja mundana sob vestes espirituais ou
pastorais! Este mundanismo asfixiante cura-se saboreando o ar puro do Espírito
Santo, que nos liberta de estarmos centrados em nós mesmos, escondidos numa
aparência religiosa vazia de Deus. Não deixemos que nos roubem o Evangelho!
Não à guerra
entre nós
98. Dentro do povo
de Deus e nas diferentes comunidades, quantas guerras! No bairro, no local de
trabalho, quantas guerras por invejas e ciúmes, mesmo entre cristãos! O
mundanismo espiritual leva alguns cristãos a estar em guerra com outros
cristãos que se interpõem na sua busca pelo poder, prestígio, prazer ou
segurança económica. Além disso, alguns deixam de viver uma adesão cordial à
Igreja por alimentar um espírito de contenda. Mais do que pertencer à Igreja
inteira, com a sua rica diversidade, pertencem a este ou àquele grupo que se
sente diferente ou especial.
99. O mundo está
dilacerado pelas guerras e a violência, ou ferido por um generalizado
individualismo que divide os seres humanos e põe-nos uns contra os outros
visando o próprio bem-estar. Em vários países, ressurgem conflitos e antigas
divisões que se pensavam em parte superados. Aos cristãos de todas as comunidades
do mundo, quero pedir-lhes de modo especial um testemunho de comunhão fraterna,
que se torne fascinante e resplandecente. Que todos possam admirar como vos
preocupais uns pelos outros, como mutuamente vos encorajais animais e ajudais:
«Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns
aos outros» (Jo 13, 35). Foi o que Jesus, com uma intensa oração,
Jesus pediu ao Pai: «Que todos sejam um só (…) em nós [para que] o mundo creia»
(Jo 17, 21). Cuidado com a tentação da inveja! Estamos no mesmo
barco e vamos para o mesmo porto! Peçamos a graça de nos alegrarmos com os
frutos alheios, que são de todos.
100. Para quantos
estão feridos por antigas divisões, resulta difícil aceitar que os exortemos ao
perdão e à reconciliação, porque pensam que ignoramos a sua dor ou pretendemos
fazer-lhes perder a memória e os ideais. Mas, se virem o testemunho de comunidades
autenticamente fraternas e reconciliadas, isso é sempre uma luz que atrai. Por
isso me dói muito comprovar como nalgumas comunidades cristãs, e mesmo entre
pessoas consagradas, se dá espaço a várias formas de ódio, divisão, calúnia,
difamação, vingança, ciúme, a desejos de impor as próprias ideias a todo o
custo, e até perseguições que parecem uma implacável caça às bruxas. Quem
queremos evangelizar com estes comportamentos?
101. Peçamos ao
Senhor que nos faça compreender a lei do amor. Que bom é termos esta lei! Como
nos faz bem, apesar de tudo amar-nos uns aos outros! Sim, apesar de tudo! A
cada um de nós é dirigida a exortação de Paulo: «Não te deixes vencer pelo mal,
mas vence o mal com o bem» (Rm 12, 21). E ainda: «Não nos cansemos
de fazer o bem» (Gal 6, 9). Todos nós provamos simpatias e
antipatias, e talvez neste momento estejamos chateados com alguém. Pelo menos
digamos ao Senhor: «Senhor, estou chateado com este, com aquela. Peço-Vos por
ele e por ela». Rezar pela pessoa com quem estamos irritados é um belo passo
rumo ao amor, e é um acto de evangelização. Façamo-lo hoje mesmo. Não deixemos
que nos roubem o ideal do amor fraterno!
Outros desafios
eclesiais
102. A imensa
maioria do povo de Deus é constituída por leigos. Ao seu serviço, está uma
minoria: os ministros ordenados. Cresceu a consciência da identidade e da
missão dos leigos na Igreja. Embora não suficiente, pode-se contar com um
numeroso laicado, dotado de um arreigado sentido de comunidade e uma grande
fidelidade ao compromisso da caridade, da catequese, da celebração da fé. Mas,
a tomada de consciência desta responsabilidade laical que nasce do Baptismo e
da Confirmação não se manifesta de igual modo em toda a parte; nalguns casos,
porque não se formaram para assumir responsabilidades importantes, noutros por
não encontrar espaço nas suas Igrejas particulares para poderem exprimir-se e
agir por causa dum excessivo clericalismo que os mantém à margem das decisões.
Apesar de se notar uma maior participação de muitos nos ministérios laicais,
este compromisso não se reflecte na penetração dos valores cristãos no mundo
social, político e económico; limita-se muitas vezes às tarefas no seio da
Igreja, sem um empenhamento real pela aplicação do Evangelho na transformação
da sociedade. A formação dos leigos e a evangelização das categorias
profissionais e intelectuais constituem um importante desafio pastoral.
103. A Igreja
reconhece a indispensável contribuição da mulher na sociedade, com uma
sensibilidade, uma intuição e certas capacidades peculiares, que habitualmente
são mais próprias das mulheres que dos homens. Por exemplo, a especial
solicitude feminina pelos outros, que se exprime de modo particular, mas não
exclusivamente, na maternidade. Vejo, com prazer, como muitas mulheres partilham
responsabilidades pastorais juntamente com os sacerdotes, contribuem para o
acompanhamento de pessoas, famílias ou grupos e prestam novas contribuições
para a reflexão teológica. Mas ainda é preciso ampliar os espaços para uma
presença feminina mais incisiva na Igreja. Porque «o génio feminino é
necessário em todas as expressões da vida social; por isso deve ser garantida a
presença das mulheres também no âmbito do trabalho» e nos vários lugares onde
se tomam as decisões importantes, tanto na Igreja como nas estruturas sociais.
104. As
reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir da firme convicção
de que homens e mulheres têm a mesma dignidade, colocam à Igreja questões
profundas que a desafiam e não se podem iludir superficialmente. O sacerdócio
reservado aos homens, como sinal de Cristo Esposo que Se entrega na Eucaristia,
é uma questão que não se põe em discussão, mas pode tornar-se particularmente
controversa se se identifica demasiado a potestade sacramental com o poder. Não
se esqueça que, quando falamos da potestade sacerdotal, «estamos na esfera
da função e não na da dignidade e da
santidade». O sacerdócio ministerial é um dos meios que Jesus utiliza ao
serviço do seu povo, mas a grande dignidade vem do Baptismo, que é acessível a todos.
A configuração do sacerdote com Cristo Cabeça – isto é, como fonte principal da
graça – não comporta uma exaltação que o coloque por cima dos demais. Na
Igreja, as funções «não dão justificação à superioridade de uns
sobre os outros». Com efeito, uma mulher, Maria, é mais importante do que os
Bispos. Mesmo quando a função do sacerdócio ministerial é considerada
«hierárquica», há que ter bem presente que «se ordena integralmente à
santidade dos membros do corpo místico de Cristo». A sua pedra de fecho e o seu
fulcro não são o poder entendido como domínio, mas a potestade de administrar o
sacramento da Eucaristia; daqui deriva a sua autoridade, que é sempre um
serviço ao povo. Aqui está um grande desafio para os Pastores e para os
teólogos, que poderiam ajudar a reconhecer melhor o que isto implica no que se
refere ao possível lugar das mulheres onde se tomam decisões importantes, nos
diferentes âmbitos da Igreja.
105. A pastoral
juvenil, tal como estávamos habituados a desenvolvê-la, sofreu o impacto das
mudanças sociais. Nas estruturas ordinárias, os jovens habitualmente não
encontram respostas para as suas preocupações, necessidades, problemas e
feridas. A nós, adultos, custa-nos ouvi-los com paciência, compreender as suas
preocupações ou as suas reivindicações, e aprender a falar-lhes na linguagem
que eles entendem. Pela mesma razão, as propostas educacionais não produzem os
frutos esperados. A proliferação e o crescimento de associações e movimentos
predominantemente juvenis podem ser interpretados como uma acção do Espírito
que abre caminhos novos em sintonia com as suas expectativas e a busca de
espiritualidade profunda e dum sentido mais concreto de pertença. Todavia é
necessário tornar mais estável a participação destas agregações no âmbito da pastoral
de conjunto da Igreja.
106. Embora nem
sempre seja fácil abordar os jovens, houve crescimento em dois aspectos: a
consciência de que toda a comunidade os evangeliza e educa, e a urgência de que
eles tenham um protagonismo maior. Deve-se reconhecer que, no actual contexto
de crise do compromisso e dos laços comunitários, são muitos os jovens que se
solidarizam contra os males do mundo, aderindo a várias formas de militância e
voluntariado. Alguns participam na vida da Igreja, integram grupos de serviço e
diferentes iniciativas missionárias nas suas próprias dioceses ou noutros
lugares. Como é bom que os jovens sejam «caminheiros da fé», felizes por
levarem Jesus Cristo a cada esquina, a cada praça, a cada canto da terra!
107. Em muitos
lugares, há escassez de vocações ao sacerdócio e à vida consagrada.
Frequentemente isso fica-se a dever à falta de ardor apostólico contagioso nas
comunidades, pelo que estas não entusiasmam nem fascinam. Onde há vida, fervor,
paixão de levar Cristo aos outros, surgem vocações genuínas. Mesmo em paróquias
onde os sacerdotes não são muito disponíveis nem alegres, é a vida fraterna e
fervorosa da comunidade que desperta o desejo de se consagrar inteiramente a
Deus e à evangelização, especialmente se essa comunidade vivente reza
insistentemente pelas vocações e tem a coragem de propor aos seus jovens um
caminho de especial consagração. Por outro lado, apesar da escassez vocacional,
hoje temos noção mais clara da necessidade de melhor selecção dos candidatos ao
sacerdócio. Não se podem encher os seminários com qualquer tipo de motivações,
e menos ainda se estas estão relacionadas com insegurança afectiva, busca de
formas de poder, glória humana ou bem-estar económico.
108. Como já disse,
não pretendi oferecer um diagnóstico completo, mas convido as comunidades a
completarem e a enriquecerem estas perspectivas a partir da consciência dos
desafios próprios e das comunidades vizinhas. Espero que, ao fazê-lo, tenham em
conta que, todas as vezes que intentamos ler os sinais dos tempos na realidade
actual, é conveniente ouvir os jovens e os idosos. Tanto uns como outros são a
esperança dos povos. Os idosos fornecem a memória e a sabedoria da experiência,
que convida a não repetir tontamente os mesmos erros do passado. Os jovens chamam-nos
a despertar e a aumentar a esperança, porque trazem consigo as novas tendências
da humanidade e abrem-nos ao futuro, de modo que não fiquemos encalhados na
nostalgia de estruturas e costumes que já não são fonte de vida no mundo
actual.
109. Os desafios
existem para ser superados. Sejamos realistas, mas sem perder a alegria, a
audácia e a dedicação cheia de esperança. Não deixemos que nos roubem a força
missionária!
Capítulo III
O ANÚNCIO DO
EVANGELHO
110. Depois de
considerar alguns desafios da realidade actual, quero agora recordar o dever
que incumbe sobre nós em toda e qualquer época e lugar, porque «não pode haver
verdadeira evangelização sem o anúncio explícito de Jesus como
Senhor» e sem existir uma «primazia do anúncio de Jesus Cristo em qualquer
trabalho de evangelização». Recolhendo as preocupações dos Bispos asiáticos,
João Paulo II afirmou que, se a Igreja «deve realizar o seu destino
providencial, então uma evangelização entendida como o jubiloso, paciente e
progressivo anúncio da Morte salvífica e Ressurreição de Jesus Cristo há-de ser
a vossa prioridade absoluta». Isto é válido para todos.
1. Todo o povo de
Deus anuncia o Evangelho
111. A evangelização
é dever da Igreja. Este sujeito da evangelização, porém, é mais do que uma instituição
orgânica e hierárquica; é, antes de tudo, um povo que peregrina para Deus.
Trata-se certamente de um mistério que mergulha as raízes na
Trindade, mas tem a sua concretização histórica num povo peregrino e
evangelizador, que sempre transcende toda a necessária expressão institucional.
Proponho que nos detenhamos um pouco nesta forma de compreender a Igreja, que
tem o seu fundamento último na iniciativa livre e gratuita de Deus.
Um povo para
todos
112. A salvação, que
Deus nos oferece, é obra da sua misericórdia. Não há acção humana, por melhor
que seja, que nos faça merecer tão grande dom. Por pura graça, Deus atrai-nos
para nos unir a Si. Envia o seu Espírito aos nossos corações, para nos fazer
seus filhos, para nos transformar e tornar capazes de responder com a nossa
vida ao seu amor. A Igreja é enviada por Jesus Cristo como sacramento da
salvação oferecida por Deus. Através da sua acção evangelizadora, ela colabora
como instrumento da graça divina, que opera incessantemente para além de toda e
qualquer possível supervisão. Bem o exprimiu Bento XVI, ao abrir as reflexões
do Sínodo: «É sempre importante saber que a primeira palavra, a iniciativa
verdadeira, a actividade verdadeira vem de Deus e só inserindo-nos nesta
iniciativa divina, só implorando esta iniciativa divina, nos podemos tornar
também – com Ele e n'Ele – evangelizadores». O princípio da primazia da
graça deve ser um farol que ilumine constantemente as nossas reflexões
sobre a evangelização.
113. Esta salvação,
que Deus realiza e a Igreja jubilosamente anuncia, é para todos, e Deus criou
um caminho para Se unir a cada um dos seres humanos de todos os tempos.
Escolheu convocá-los como povo, e não como seres isolados. Ninguém se salva
sozinho, isto é, nem como indivíduo isolado, nem por suas próprias forças. Deus
atrai-nos, no respeito da complexa trama de relações interpessoais que a vida
numa comunidade humana supõe. Este povo, que Deus escolheu para Si e convocou,
é a Igreja. Jesus não diz aos Apóstolos para formarem um grupo exclusivo, um
grupo de elite. Jesus diz: «Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos» (Mt 28,
19). São Paulo afirma que no povo de Deus, na Igreja, «não há judeu nem grego
(...), porque todos sois um só em Cristo Jesus» (Gal 3, 28). Eu
gostaria de dizer àqueles que se sentem longe de Deus e da Igreja, aos que têm
medo ou aos indiferentes: o Senhor também te chama para seres parte do seu
povo, e fá-lo com grande respeito e amor!
114. Ser Igreja
significa ser povo de Deus, de acordo com o grande projecto de amor do Pai.
Isto implica ser o fermento de Deus no meio da humanidade; quer dizer anunciar
e levar a salvação de Deus a este nosso mundo, que muitas vezes se sente
perdido, necessitado de ter respostas que encorajem, dêem esperança e novo
vigor para o caminho. A Igreja deve ser o lugar da misericórdia gratuita, onde
todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem
segundo a vida boa do Evangelho.
Um povo com
muitos rostos
115. Este Povo de
Deus encarna-se nos povos da Terra, cada um dos quais tem a sua cultura
própria. A noção de cultura é um instrumento precioso para compreender as
diversas expressões da vida cristã que existem no povo de Deus. Trata-se do
estilo de vida que uma determinada sociedade possui, da forma peculiar que têm
os seus membros de se relacionar entre si, com as outras criaturas e com Deus.
Assim entendida, a cultura abrange a totalidade da vida dum povo. Cada povo, na
sua evolução histórica, desenvolve a própria cultura com legítima autonomia.
Isso fica-se a dever ao facto de que a pessoa humana, «por sua natureza,
necessita absolutamente da vida social» e mantém contínua referência à
sociedade, na qual vive uma maneira concreta de se relacionar com a realidade.
O ser humano está sempre culturalmente situado: «natureza e cultura
encontram-se intimamente ligadas». A graça supõe a cultura, e o dom de Deus
encarna-se na cultura de quem o recebe.
116. Ao longo destes
dois milénios de cristianismo, uma quantidade inumerável de povos recebeu a
graça da fé, fê-la florir na sua vida diária e transmitiu-a segundo as próprias
modalidades culturais. Quando uma comunidade acolhe o anúncio da salvação, o
Espírito Santo fecunda a sua cultura com a força transformadora do Evangelho. E
assim, como podemos ver na história da Igreja, o cristianismo não dispõe de um
único modelo cultural, mas «permanecendo o que é, na fidelidade total ao
anúncio evangélico e à tradição da Igreja, o cristianismo assumirá também o
rosto das diversas culturas e dos vários povos onde for acolhido e se radicar».
Nos diferentes povos, que experimentam o dom de Deus segundo a própria cultura,
a Igreja exprime a sua genuína catolicidade e mostra «a beleza deste rosto
pluriforme». Através das manifestações cristãs dum povo evangelizado, o
Espírito Santo embeleza a Igreja, mostrando-lhe novos aspectos da Revelação e
presenteando-a com um novo rosto. Pela inculturação, a Igreja «introduz os
povos com as suas culturas na sua própria comunidade», porque «cada cultura
oferece formas e valores positivos que podem enriquecer o modo como o Evangelho
é pregado, compreendido e vivido». Assim, «a Igreja, assumindo os valores das
diversas culturas, torna-se sponsa ornata monilibus suis, a noiva
que se adorna com suas jóias (cf. Is 61, 10)».
117. Se for bem
entendida, a diversidade cultural não ameaça a unidade da Igreja. É o Espírito
Santo, enviado pelo Pai e o Filho, que transforma os nossos corações e nos
torna capazes de entrar na comunhão perfeita da Santíssima Trindade, onde tudo
encontra a sua unidade. O Espírito Santo constrói a comunhão e a harmonia do
povo de Deus. Ele mesmo é a harmonia, tal como é o vínculo de amor entre o Pai
e o Filho. É Ele que suscita uma abundante e diversificada riqueza de dons e,
ao mesmo tempo, constrói uma unidade que nunca é uniformidade, mas multiforme
harmonia que atrai. A evangelização reconhece com alegria estas múltiplas
riquezas que o Espírito gera na Igreja. Não faria justiça à lógica da
encarnação pensar num cristianismo monocultural e monocórdico. É verdade que
algumas culturas estiveram intimamente ligadas à pregação do Evangelho e ao
desenvolvimento do pensamento cristão, mas a mensagem revelada não se
identifica com nenhuma delas e possui um conteúdo transcultural. Por isso, na
evangelização de novas culturas ou de culturas que não acolheram a pregação
cristã, não é indispensável impor uma determinada forma cultural, por mais bela
e antiga que seja, juntamente com a proposta do Evangelho. A mensagem, que
anunciamos, sempre apresenta alguma roupagem cultural, mas às vezes, na Igreja,
caímos na vaidosa sacralização da própria cultura, o que pode mostrar mais
fanatismo do que autêntico ardor evangelizador.
118. Os Bispos da
Oceânia pediram que a Igreja neste continente «desenvolva uma compreensão e
exposição da verdade de Cristo partindo das tradições e culturas locais», e
instaram todos os missionários «a trabalhar de harmonia com os cristãos
indígenas para garantir que a doutrina e a vida da Igreja sejam expressas em
formas legítimas e apropriadas a cada cultura». Não podemos pretender que todos
os povos dos vários continentes, ao exprimir a fé cristã, imitem as modalidades
adoptadas pelos povos europeus num determinado momento da história, porque a fé
não se pode confinar dentro dos limites de compreensão e expressão duma cultura.
É indiscutível que uma única cultura não esgota o mistério da redenção de
Cristo.
Todos somos
discípulos missionários
119. Em todos os
baptizados, desde o primeiro ao último, actua a força santificadora do Espírito
que impele a evangelizar. O povo de Deus é santo em virtude desta unção, que o
torna infalível «in credendo», ou seja, ao crer, não pode
enganar-se, ainda que não encontre palavras para explicar a sua fé. O Espírito
guia-o na verdade e condu-lo à salvação. Como parte do seu mistério de amor
pela humanidade, Deus dota a totalidade dos fiéis com um instinto da fé –
o sensus fidei – que os ajuda a discernir o que vem realmente
de Deus. A presença do Espírito confere aos cristãos uma certa conaturalidade
com as realidades divinas e uma sabedoria que lhes permite captá-las
intuitivamente, embora não possuam os meios adequados para expressá-las com
precisão.
120. Em virtude do
Baptismo recebido, cada membro do povo de Deus tornou-se discípulo missionário
(cf. Mt 28, 19). Cada um dos baptizados, independentemente da
própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito activo
de evangelização, e seria inapropriado pensar num esquema de evangelização
realizado por agentes qualificados enquanto o resto do povo fiel seria apenas
receptor das suas acções. A nova evangelização deve implicar um novo
protagonismo de cada um dos baptizados. Esta convicção transforma-se num apelo
dirigido a cada cristão para que ninguém renuncie ao seu compromisso de
evangelização, porque, se uma pessoa experimentou verdadeiramente o amor de
Deus que o salva, não precisa de muito tempo de preparação para sair a
anunciá-lo, não pode esperar que lhe dêem muitas lições ou longas instruções. Cada
cristão é missionário na medida em que se encontrou com o amor de Deus em
Cristo Jesus; não digamos mais que somos «discípulos» e «missionários», mas
sempre que somos «discípulos missionários». Se não estivermos convencidos
disto, olhemos para os primeiros discípulos, que logo depois de terem conhecido
o olhar de Jesus, saíram proclamando cheios de alegria: «Encontrámos o Messias»
(Jo 1, 41). A Samaritana, logo que terminou o seu diálogo com
Jesus, tornou-se missionária, e muitos samaritanos acreditaram em Jesus «devido
às palavras da mulher» (Jo 4, 39). Também São Paulo, depois do seu
encontro com Jesus Cristo, «começou imediatamente a proclamar (…) que Jesus era
o Filho de Deus» (Act 9, 20). Porque esperamos nós?
121. Certamente
todos somos chamados a crescer como evangelizadores. Devemos procurar
simultaneamente uma melhor formação, um aprofundamento do nosso amor e um
testemunho mais claro do Evangelho. Neste sentido, todos devemos deixar que os
outros nos evangelizem constantemente; isto não significa que devemos renunciar
à missão evangelizadora, mas encontrar o modo de comunicar Jesus que
corresponda à situação em que vivemos. Seja como for, todos somos chamados a
dar aos outros o testemunho explícito do amor salvífico do Senhor, que, sem
olhar às nossas imperfeições, nos oferece a sua proximidade, a sua Palavra, a
sua força, e dá sentido à nossa vida. O teu coração sabe que a vida não é a
mesma coisa sem Ele; pois bem, aquilo que descobriste, o que te ajuda a viver e
te dá esperança, isso é o que deves comunicar aos outros. A nossa imperfeição
não deve ser desculpa; pelo contrário, a missão é um estímulo constante para
não nos acomodarmos na mediocridade, mas continuarmos a crescer. O testemunho
de fé, que todo o cristão é chamado a oferecer, implica dizer como São Paulo:
«Não que já o tenha alcançado ou já seja perfeito; mas corro para ver se o
alcanço, (…) lançando-me para o que vem à frente» (Fl 3,
12-13).
A força
evangelizadora da piedade popular
122. Da mesma forma,
podemos pensar que os diferentes povos, nos quais foi inculturado o Evangelho,
são sujeitos colectivos activos, agentes da evangelização. Assim é, porque cada
povo é o criador da sua cultura e o protagonista da sua história. A cultura é
algo de dinâmico, que um povo recria constantemente, e cada geração transmite à
seguinte um conjunto de atitudes relativas às diversas situações existenciais,
que esta nova geração deve reelaborar face aos próprios desafios. O ser humano
«é simultaneamente filho e pai da cultura onde está inserido». Quando o
Evangelho se inculturou num povo, no seu processo de transmissão cultural
também transmite a fé de maneira sempre nova; daí a importância da
evangelização entendida como inculturação. Cada porção do povo de Deus, ao
traduzir na vida o dom de Deus segundo a sua índole própria, dá testemunho da
fé recebida e enriquece-a com novas expressões que falam por si. Pode dizer-se
que «o povo se evangeliza continuamente a si mesmo». Aqui ganha importância a
piedade popular, verdadeira expressão da actividade missionária espontânea do
povo de Deus. Trata-se de uma realidade em permanente desenvolvimento, cujo
protagonista é o Espírito Santo.
123. Na piedade
popular, pode-se captar a modalidade em que a fé recebida se encarnou numa
cultura e continua a transmitir-se. Vista por vezes com desconfiança, a piedade
popular foi objecto de revalorização nas décadas posteriores ao Concílio. Quem
deu um impulso decisivo nesta direcção, foi Paulo VI na sua Exortação
Apostólica Evangelii Nuntiandi. Nela explica que a piedade popular
«traduz em si uma certa sede de Deus, que somente os pobres e os simples podem
experimentar» e «torna as pessoas capazes para terem rasgos de generosidade e
predispõe-nas para o sacrifício até ao heroísmo, quando se trata de manifestar
a fé». Já mais perto dos nossos dias, Bento XVI, na América Latina, assinalou
que se trata de um «precioso tesouro da Igreja Católica» e que nela «aparece a
alma dos povos latino-americanos».
124. No Documento
de Aparecida, descrevem-se as riquezas que o Espírito Santo explicita na
piedade popular por sua iniciativa gratuita. Naquele amado Continente, onde uma
multidão imensa de cristãos exprime a sua fé através da piedade popular, os
Bispos chamam-na também «espiritualidade popular» ou «mística popular».
Trata-se de uma verdadeira «espiritualidade encarnada na cultura dos simples».
Não é vazia de conteúdos, mas descobre-os e exprime-os mais pela via simbólica
do que pelo uso da razão instrumental e, no acto de fé, acentua mais ocredere
in Deum que o credere Deum. É «uma maneira legítima de
viver a fé, um modo de se sentir parte da Igreja e uma forma de ser
missionários»; comporta a graça da missionariedade, do sair de si e do
peregrinar: «O caminhar juntos para os santuários e o participar em outras
manifestações da piedade popular, levando também os filhos ou convidando a
outras pessoas, é em si mesmo um gesto evangelizador». Não coarctemos nem
pretendamos controlar esta força missionária!
125. Para
compreender esta necessidade, é preciso abordá-la com o olhar do Bom Pastor,
que não procura julgar mas amar. Só a partir da conaturalidade afectiva que dá
o amor é que podemos apreciar a vida teologal presente na piedade dos povos
cristãos, especialmente nos pobres. Penso na fé firme das mães ao pé da cama do
filho doente, que se agarram a um terço ainda que não saibam elencar os artigos
do Credo; ou na carga imensa de esperança contida numa vela que se acende, numa
casa humilde, para pedir ajuda a Maria, ou nos olhares de profundo amor a
Cristo crucificado. Quem ama o povo fiel de Deus, não pode ver estas acções
unicamente como uma busca natural da divindade; são a manifestação duma vida
teologal animada pela acção do Espírito Santo, que foi derramado em nossos
corações (cf. Rm 5, 5).
126. Na piedade
popular, por ser fruto do Evangelho inculturado, subjaz uma força activamente
evangelizadora que não podemos subestimar: seria ignorar a obra do Espírito
Santo. Ao contrário, somos chamados a encorajá-la e fortalecê-la para aprofundar
o processo de inculturação, que é uma realidade nunca acabada. As expressões da
piedade popular têm muito que nos ensinar e, para quem as sabe ler, são
um lugar teológico a que devemos prestar atenção
particularmente na hora de pensar a nova evangelização.
De pessoa a
pessoa
127. Hoje que a
Igreja deseja viver uma profunda renovação missionária, há uma forma de
pregação que nos compete a todos como tarefa diária: é cada um levar o
Evangelho às pessoas com quem se encontra, tanto aos mais íntimos como aos
desconhecidos. É a pregação informal que se pode realizar durante uma conversa,
e é também a que realiza um missionário quando visita um lar. Ser discípulo
significa ter a disposição permanente de levar aos outros o amor de Jesus; e
isto sucede espontaneamente em qualquer lugar: na rua, na praça, no trabalho,
num caminho.
128. Nesta pregação,
sempre respeitosa e amável, o primeiro momento é um diálogo pessoal, no qual a
outra pessoa se exprime e partilha as suas alegrias, as suas esperanças, as
preocupações com os seus entes queridos e muitas coisas que enchem o coração.
Só depois desta conversa é que se pode apresentar-lhe a Palavra, seja pela
leitura de algum versículo ou de modo narrativo, mas sempre recordando o
anúncio fundamental: o amor pessoal de Deus que Se fez homem, entregou-Se a Si
mesmo por nós e, vivo, oferece a sua salvação e a sua amizade. É o anúncio que
se partilha com uma atitude humilde e testemunhal de quem sempre sabe aprender,
com a consciência de que esta mensagem é tão rica e profunda que sempre nos
ultrapassa. Umas vezes exprime-se de maneira mais directa, outras através dum
testemunho pessoal, uma história, um gesto, ou outra forma que o próprio
Espírito Santo possa suscitar numa circunstância concreta. Se parecer prudente
e houver condições, é bom que este encontro fraterno e missionário conclua com
uma breve oração que se relacione com as preocupações que a pessoa manifestou.
Assim ela sentirá mais claramente que foi ouvida e interpretada, que a sua
situação foi posta nas mãos de Deus, e reconhecerá que a Palavra de Deus fala
realmente à sua própria vida.
129. Contudo não se
deve pensar que o anúncio evangélico tenha de ser transmitido sempre com
determinadas fórmulas pré-estabelecidas ou com palavras concretas que exprimam
um conteúdo absolutamente invariável. Transmite-se com formas tão diversas que
seria impossível descrevê-las ou catalogá-las, e cujo sujeito colectivo é o
povo de Deus com seus gestos e sinais inumeráveis. Por conseguinte, se o
Evangelho se encarnou numa cultura, já não se comunica apenas através do
anúncio de pessoa a pessoa. Isto deve fazer-nos pensar que, nos países onde o
cristianismo é minoria, para além de animar cada baptizado a anunciar o
Evangelho, as Igrejas particulares hão-de promover activamente formas, pelo
menos incipientes, de inculturação. Enfim, o que se deve procurar é que a
pregação do Evangelho, expressa com categorias próprias da cultura onde é
anunciado, provoque uma nova síntese com essa cultura. Embora estes processos
sejam sempre lentos, às vezes o medo paralisa-nos demasiado. Se deixamos que as
dúvidas e os medos sufoquem toda a ousadia, é possível que, em vez de sermos
criativos, nos deixemos simplesmente ficar cómodos sem provocar qualquer avanço
e, neste caso, não seremos participantes dos processos históricos com a nossa
cooperação, mas simplesmente espectadores duma estagnação estéril da Igreja.
Carismas ao
serviço da comunhão evangelizadora
130. O Espírito
Santo enriquece toda a Igreja evangelizadora também com diferentes carismas.
São dons para renovar e edificar a Igreja. Não se trata de um património
fechado, entregue a um grupo para que o guarde; mas são presentes do Espírito
integrados no corpo eclesial, atraídos para o centro que é Cristo, donde são
canalizados num impulso evangelizador. Um sinal claro da autenticidade dum
carisma é a sua eclesialidade, a sua capacidade de se integrar harmoniosamente
na vida do povo santo de Deus para o bem de todos. Uma verdadeira novidade
suscitada pelo Espírito não precisa de fazer sombra sobre outras
espiritualidades e dons para se afirmar a si mesma. Quanto mais um carisma
dirigir o seu olhar para o coração do Evangelho, tanto mais eclesial será o seu
exercício. É na comunhão, mesmo que seja fadigosa, que um carisma se revela
autêntica e misteriosamente fecundo. Se vive este desafio, a Igreja pode ser um
modelo para a paz no mundo.
131. As diferenças
entre as pessoas e as comunidades por vezes são incómodas, mas o Espírito
Santo, que suscita esta diversidade, de tudo pode tirar algo de bom e
transformá-lo em dinamismo evangelizador que actua por atracção. A diversidade
deve ser sempre conciliada com a ajuda do Espírito Santo; só Ele pode suscitar
a diversidade, a pluralidade, a multiplicidade e, ao mesmo tempo, realizar a
unidade. Ao invés, quando somos nós que pretendemos a diversidade e nos
fechamos em nossos particularismos, em nossos exclusivismos, provocamos a
divisão; e, por outro lado, quando somos nós que queremos construir a unidade
com os nossos planos humanos, acabamos por impor a uniformidade, a homologação.
Isto não ajuda a missão da Igreja.
Cultura,
pensamento e educação
132. O anúncio às
culturas implica também um anúncio às culturas profissionais, científicas e
académicas. É o encontro entre a fé, a razão e as ciências, que visa
desenvolver um novo discurso sobre a credibilidade, uma apologética original
que ajude a criar as predisposições para que o Evangelho seja escutado por
todos. Quando algumas categorias da razão e das ciências são acolhidas no
anúncio da mensagem, tais categorias tornam-se instrumentos de evangelização; é
a água transformada em vinho. É aquilo que, uma vez assumido, não só é
redimido, mas torna-se instrumento do Espírito para iluminar e renovar o mundo.
133. Uma vez que não
basta a preocupação do evangelizador por chegar a cada pessoa, mas o Evangelho
também se anuncia às culturas no seu conjunto, a teologia – e não só a teologia
pastoral – em diálogo com outras ciências e experiências humanas tem grande
importância para pensar como fazer chegar a proposta do Evangelho à variedade
dos contextos culturais e dos destinatários. A Igreja, comprometida na
evangelização, aprecia e encoraja o carisma dos teólogos e o seu esforço na
investigação teológica, que promove o diálogo com o mundo da cultura e da ciência.
Faço apelo aos teólogos para que cumpram este serviço como parte da missão
salvífica da Igreja. Mas, para isso, é necessário que tenham a peito a
finalidade evangelizadora da Igreja e da própria teologia, e não se contentem
com uma teologia de gabinete.
134. As
universidades são um âmbito privilegiado para pensar e desenvolver este
compromisso de evangelização de modo interdisciplinar e inclusivo. As escolas
católicas, que sempre procuram conjugar a tarefa educacional com o anúncio
explícito do Evangelho, constituem uma contribuição muito válida para a
evangelização da cultura, mesmo em países e cidades onde uma situação adversa
nos incentiva a usar a nossa criatividade para se encontrar os caminhos
adequados.
2. A homilia
135. Consideremos
agora a pregação dentro da Liturgia, que requer uma séria avaliação por parte
dos Pastores. Deter-me-ei particularmente, e até com certa meticulosidade, na
homilia e sua preparação, porque são muitas as reclamações relacionadas com
este ministério importante, e não podemos fechar os ouvidos. A homilia é o
ponto de comparação para avaliar a proximidade e a capacidade de encontro de um
Pastor com o seu povo. De facto, sabemos que os fiéis lhe dão muita
importância; e, muitas vezes, tanto eles como os próprios ministros ordenados
sofrem: uns a ouvir e os outros a pregar. É triste que assim seja. A homilia
pode ser, realmente, uma experiência intensa e feliz do Espírito, um consolador
encontro com a Palavra, uma fonte constante de renovação e crescimento.
136. Renovemos a
nossa confiança na pregação, que se funda na convicção de que é Deus que deseja
alcançar os outros através do pregador e de que Ele mostra o seu poder através
da palavra humana. São Paulo fala vigorosamente sobre a necessidade de pregar,
porque o Senhor quis chegar aos outros por meio também da nossa palavra
(cf. Rm 10, 14-17). Com a palavra, Nosso Senhor conquistou o
coração da gente. De todas as partes, vinham para O ouvir (cf. Mc 1,
45). Ficavam maravilhados, «bebendo» os seus ensinamentos (cf. Mc 6,
2). Sentiam que lhes falava como quem tem autoridade (cf. Mc 1,
27). E os Apóstolos, que Jesus estabelecera «para estarem com Ele e para os
enviar a pregar» (Mc 3, 14), atraíram para o seio da Igreja todos
os povos com a palavra (cf. Mc 16, 15.20).
O contexto
litúrgico
137. Agora é
oportuno recordar que «a proclamação litúrgica da Palavra de Deus,
principalmente no contexto da assembleia eucarística, não é tanto um momento de
meditação e de catequese, como sobretudo o diálogo de Deus com o seu povo, no qual
se proclamam as maravilhas da salvação e se propõem continuamente as exigências
da Aliança». Reveste-se de um valor especial a homilia, derivado do seu
contexto eucarístico, que supera toda a catequese por ser o momento mais alto
do diálogo entre Deus e o seu povo, antes da comunhão sacramental. A homilia é
um retomar este diálogo que já está estabelecido entre o Senhor e o seu povo.
Aquele que prega deve conhecer o coração da sua comunidade para identificar
onde está vivo e ardente o desejo de Deus e também onde é que este diálogo de
amor foi sufocado ou não pôde dar fruto.
138. A homilia não
pode ser um espectáculo de divertimento, não corresponde à lógica dos recursos
mediáticos, mas deve dar fervor e significado à celebração. É um género
peculiar, já que se trata de uma pregação no quadro duma celebração litúrgica;
por conseguinte, deve ser breve e evitar que se pareça com uma conferência ou
uma lição. O pregador pode até ser capaz de manter vivo o interesse das pessoas
por uma hora, mas assim a sua palavra torna-se mais importante que a celebração
da fé. Se a homilia se prolonga demasiado, lesa duas características da
celebração litúrgica: a harmonia entre as suas partes e o seu ritmo. Quando a
pregação se realiza no contexto da Liturgia, incorpora-se como parte da
oferenda que se entrega ao Pai e como mediação da graça que Cristo derrama na
celebração. Este mesmo contexto exige que a pregação oriente a assembleia, e
também o pregador, para uma comunhão com Cristo na Eucaristia, que transforme a
vida. Isto requer que a palavra do pregador não ocupe um lugar excessivo, para
que o Senhor brilhe mais que o ministro.
A conversa da mãe
139. Dissemos que o
povo de Deus, pela acção constante do Espírito nele, se evangeliza
continuamente a si mesmo. Que implicações tem esta convicção para o pregador?
Lembra-nos que a Igreja é mãe e prega ao povo como uma mãe fala ao seu filho,
sabendo que o filho tem confiança de que tudo o que se lhe ensina é para seu
bem, porque se sente amado. Além disso, a boa mãe sabe reconhecer tudo o que
Deus semeou no seu filho, escuta as suas preocupações e aprende com ele. O
espírito de amor que reina numa família guia tanto a mãe como o filho nos seus
diálogos, nos quais se ensina e aprende, se corrige e valoriza o que é bom; assim
deve acontecer também na homilia. O Espírito que inspirou os Evangelhos e actua
no povo de Deus, inspira também como se deve escutar a fé do povo e como se
deve pregar em cada Eucaristia. Portanto a pregação cristã encontra, no coração
da cultura do povo, um manancial de água viva tanto para saber o que se deve
dizer como para encontrar o modo mais apropriado para o dizer. Assim como todos
gostamos que nos falem na nossa língua materna, assim também, na fé, gostamos
que nos falem em termos da «cultura materna», em termos do idioma materno
(cf. 2 Mac 7, 21.27), e o coração dispõe-se a ouvir melhor.
Esta linguagem é uma tonalidade que transmite coragem, inspiração, força,
impulso.
140. Este âmbito
materno-eclesial, onde se desenrola o diálogo do Senhor com o seu povo, deve
ser encarecido e cultivado através da proximidade cordial do pregador, do tom
caloroso da sua voz, da mansidão do estilo das suas frases, da alegria dos seus
gestos. Mesmo que às vezes a homilia seja um pouco maçante, se houver este
espírito materno-eclesial, será sempre fecunda, tal como os conselhos maçantes
duma mãe, com o passar do tempo, dão fruto no coração dos filhos.
141. Ficamos
admirados com os recursos empregues pelo Senhor para dialogar com o seu povo,
revelar o seu mistério a todos, cativar a gente comum com ensinamentos tão
elevados e exigentes. Creio que o segredo de Jesus esteja escondido naquele seu
olhar o povo mais além das suas fraquezas e quedas: «Não temais, pequenino
rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino» (Lc 12, 32);
Jesus prega com este espírito. Transbordando de alegria no Espírito, bendiz o
Pai por Lhe atrair os pequeninos: «Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra,
porque escondeste estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aos
pequeninos» (Lc 10, 21). O Senhor compraz-Se verdadeiramente em
dialogar com o seu povo, e compete ao pregador fazer sentir este gosto do
Senhor ao seu povo.
Palavras que
abrasam os corações
142. Um diálogo é
muito mais do que a comunicação duma verdade. Realiza-se pelo prazer de falar e
pelo bem concreto que se comunica através das palavras entre aqueles que se
amam. É um bem que não consiste em coisas, mas nas próprias pessoas que
mutuamente se dão no diálogo. A pregação puramente moralista ou doutrinadora e
também a que se transforma numa lição de exegese reduzem esta comunicação entre
os corações que se verifica na homilia e que deve ter um carácter quase
sacramental: «A fé surge da pregação, e a pregação surge pela palavra de
Cristo» (Rm 10, 17). Na homilia, a verdade anda de mãos dadas com a
beleza e o bem. Não se trata de verdades abstractas ou de silogismos frios,
porque se comunica também a beleza das imagens que o Senhor utilizava para
incentivar a prática do bem. A memória do povo fiel, como a de Maria, deve
ficar transbordante das maravilhas de Deus. O seu coração, esperançado na
prática alegre e possível do amor que lhe foi anunciado, sente que toda a
palavra na Escritura, antes de ser exigência, é dom.
143. O desafio duma
pregação inculturada consiste em transmitir a síntese da mensagem evangélica, e
não ideias ou valores soltos. Onde está a tua síntese, ali está o teu coração.
A diferença entre fazer luz com sínteses e o fazê-lo com ideias soltas é a
mesma que há entre o ardor do coração e o tédio. O pregador tem a belíssima e
difícil missão de unir os corações que se amam: o do Senhor e os do seu povo. O
diálogo entre Deus e o seu povo reforça ainda mais a aliança entre ambos e
estreita o vínculo da caridade. Durante o tempo da homilia, os corações dos
crentes fazem silêncio e deixam-No falar a Ele. O Senhor e o seu povo falam-se
de mil e uma maneiras directamente, sem intermediários, mas, na homilia, querem
que alguém sirva de instrumento e exprima os sentimentos, de modo que, depois,
cada um possa escolher como continuar a sua conversa. A palavra é,
essencialmente, mediadora e necessita não só dos dois dialogantes mas também de
um pregador que a represente como tal, convencido de que «não nos pregamos a
nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor, e nos consideramos vossos servos, por
amor de Jesus» (2 Cor 4, 5).
144. Falar com o
coração implica mantê-lo não só ardente, mas também iluminado pela integridade
da Revelação e pelo caminho que essa Palavra percorreu no coração da Igreja e
do nosso povo fiel ao longo da sua história. A identidade cristã, que é aquele
abraço baptismal que o Pai nos deu em pequeninos, faz-nos anelar, como filhos
pródigos – e predilectos em Maria –, pelo outro abraço, o do Pai misericordioso
que nos espera na glória. Fazer com que o nosso povo se sinta, de certo modo,
no meio destes dois abraços é a tarefa difícil, mas bela, de quem prega o
Evangelho.
3. A preparação
da pregação
145. A preparação da
pregação é uma tarefa tão importante que convém dedicar-lhe um tempo longo de
estudo, oração, reflexão e criatividade pastoral. Com muita amizade, quero
deter-me a propor um itinerário de preparação da homilia. Trata-se de
indicações que, para alguns, poderão parecer óbvias, mas considero oportuno
sugeri-las para recordar a necessidade de dedicar um tempo privilegiado a este
precioso ministério. Alguns párocos sustentam frequentemente que isto não é
possível por causa de tantas incumbências que devem desempenhar; todavia
atrevo-me a pedir que todas as semanas se dedique a esta tarefa um tempo
pessoal e comunitário suficientemente longo, mesmo que se tenha de dar menos
tempo a outras tarefas também importantes. A confiança no Espírito Santo que
actua na pregação não é meramente passiva, mas activa e criativa.
Implica oferecer-se como instrumento (cf. Rm 12, 1), com todas
as próprias capacidades, para que possam ser utilizadas por Deus. Um pregador
que não se prepara não é «espiritual»: é desonesto e irresponsável quanto aos
dons que recebeu.
O culto da
verdade
146. O primeiro passo,
depois de invocar o Espírito Santo, é prestar toda a atenção ao texto bíblico,
que deve ser o fundamento da pregação. Quando alguém se detém procurando
compreender qual é a mensagem dum texto, exerce o «culto da verdade». É a
humildade do coração que reconhece que a Palavra sempre nos transcende, que
somos, «não os árbitros nem os proprietários, mas os depositários, os arautos e
os servidores». Esta atitude de humilde e deslumbrada veneração da Palavra
exprime-se detendo-se a estudá-la com o máximo cuidado e com um santo temor de
a manipular. Para se poder interpretar um texto bíblico, faz falta paciência,
pôr de parte toda a ansiedade e atribuir-lhe tempo, interesse e dedicação gratuita.
Há que pôr de lado qualquer preocupação que nos inquiete, para entrar noutro
âmbito de serena atenção. Não vale a pena dedicar-se a ler um texto bíblico, se
aquilo que se quer obter são resultados rápidos, fáceis ou imediatos. Por isso,
a preparação da pregação requer amor. Uma pessoa só dedica um tempo gratuito e
sem pressa às coisas ou às pessoas que ama; e aqui trata-se de amar a Deus, que
quis falar. A partir deste amor, uma pessoa pode deter-se todo o
tempo que for necessário, com a atitude dum discípulo: «Fala, Senhor; o teu
servo escuta» (1 Sam 3, 9).
147. Em primeiro
lugar, convém estarmos seguros de compreender adequadamente o significado
das palavras que lemos. Quero insistir em algo que parece
evidente, mas que nem sempre é tido em conta: o texto bíblico, que estudamos,
tem dois ou três mil anos, a sua linguagem é muito diferente da que usamos
agora. Por mais que nos pareça termos entendido as palavras, que estão
traduzidas na nossa língua, isso não significa que compreendemos correctamente
tudo o que o escritor sagrado queria exprimir. São conhecidos os vários
recursos que proporciona a análise literária: prestar atenção às palavras que
se repetem ou evidenciam, reconhecer a estrutura e o dinamismo próprio dum
texto, considerar o lugar que ocupam os personagens, etc. Mas o objectivo não é
o de compreender todos os pequenos detalhes dum texto; o mais importante é
descobrir qual é a mensagem principal, a mensagem que confere
estrutura e unidade ao texto. Se o pregador não faz este esforço, é possível
que também a sua pregação não tenha unidade nem ordem; o seu discurso será
apenas uma súmula de várias ideias desarticuladas que não conseguirão mobilizar
os outros. A mensagem central é aquela que o autor quis primariamente
transmitir, o que implica identificar não só uma ideia mas também o efeito que
esse autor quis produzir. Se um texto foi escrito para consolar, não deveria
ser utilizado para corrigir erros; se foi escrito para exortar, não deveria ser
utilizado para instruir; se foi escrito para ensinar algo sobre Deus, não
deveria ser utilizado para explicar várias opiniões teológicas; se foi escrito
para levar ao louvor ou ao serviço missionário, não o utilizemos para informar
sobre as últimas notícias.
148. É verdade que,
para se entender adequadamente o sentido da mensagem central dum texto, é
preciso colocá-lo em ligação com o ensinamento da Bíblia inteira, transmitida
pela Igreja. Este é um princípio importante da interpretação bíblica, que tem
em conta que o Espírito Santo não inspirou só uma parte, mas a Bíblia inteira,
e que, nalgumas questões, o povo cresceu na sua compreensão da vontade de Deus
a partir da experiência vivida. Assim se evitam interpretações equivocadas ou
parciais, que contradizem outros ensinamentos da mesma Escritura. Mas isto não
significa enfraquecer a acentuação própria e específica do texto que se deve
pregar. Um dos defeitos duma pregação enfadonha e ineficaz é precisamente não
poder transmitir a força própria do texto que foi proclamado.
A personalização
da Palavra
149. O pregador
«deve ser o primeiro a desenvolver uma grande familiaridade pessoal com a
Palavra de Deus: não lhe basta conhecer o aspecto linguístico ou exegético, sem
dúvida necessário; precisa de se abeirar da Palavra com o coração dócil e
orante, a fim de que ela penetre a fundo nos seus pensamentos e sentimentos e
gere nele uma nova mentalidade». Faz-nos bem renovar, cada dia, cada domingo, o
nosso ardor na preparação da homilia, e verificar se, em nós mesmos, cresce o
amor pela Palavra que pregamos. É bom não esquecer que, «particularmente, a
maior ou menor santidade do ministro influi sobre o anúncio da Palavra». Como
diz São Paulo, «falamos, não para agradar aos homens, mas a Deus que põe à
prova os nossos corações» (1 Ts 2, 4). Se está vivo este desejo de,
primeiro, ouvirmos nós a Palavra que temos de pregar, esta transmitir-se-á duma
maneira ou doutra ao povo fiel de Deus: «A boca fala da abundância do coração»
(Mt 12, 34). As leituras do domingo ressoarão com todo o seu
esplendor no coração do povo, se primeiro ressoarem assim no coração do Pastor.
150. Jesus
irritava-Se com pretensiosos mestres, muito exigentes com os outros, que
ensinavam a Palavra de Deus mas não se deixavam iluminar por ela: «Atam fardos
pesados e insuportáveis e colocam-nos aos ombros dos outros, mas eles não põem
nem um dedo para os deslocar» (Mt 23, 4). E o Apóstolo São Tiago
exortava: «Meus irmãos, não haja muitos entre vós que pretendam ser mestres,
sabendo que nós teremos um julgamento mais severo» (3, 1). Quem quiser pregar,
deve primeiro estar disposto a deixar-se tocar pela Palavra e fazê-la carne na
sua vida concreta. Assim, a pregação consistirá na actividade tão intensa e
fecunda que é «comunicar aos outros o que foi contemplado». Por tudo isto,
antes de preparar concretamente o que vai dizer na pregação, o pregador tem que
aceitar ser primeiro trespassado por essa Palavra que há-de trespassar os
outros, porque é uma Palavra viva e eficaz, que, como uma espada,
«penetra até à divisão da alma e do corpo, das articulações e das medulas, e
discerne os sentimentos e intenções do coração» (Heb 4, 12). Isto
tem um valor pastoral. Mesmo nesta época, a gente prefere escutar as
testemunhas: «Tem sede de autenticidade (...), reclama evangelizadores que lhe
falem de um Deus que eles conheçam e lhes seja familiar como se eles vissem o
invisível».
151. Não nos é
pedido que sejamos imaculados, mas que não cessamos de melhorar, vivamos o
desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os
braços. Indispensável é que o pregador esteja seguro de que Deus o ama, de que
Jesus Cristo o salvou, de que o seu amor tem sempre a última palavra. À vista
de tanta beleza, sentirá muitas vezes que a sua vida não lhe dá plenamente
glória e desejará sinceramente corresponder melhor a um amor tão grande.
Todavia, se não se detém com sincera abertura a escutar esta Palavra, se não
deixa que a mesma toque a sua vida, que o interpele, exorte, mobilize, se não
dedica tempo para rezar com esta Palavra, então na realidade será um falso
profeta, um embusteiro ou um charlatão vazio. Em todo o caso, desde que
reconheça a sua pobreza e deseje comprometer-se mais, sempre poderá dar Jesus
Cristo, dizendo como Pedro: «Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho, isto te
dou» (Act 3, 6). O Senhor quer servir-Se de nós como seres vivos,
livres e criativos, que se deixam penetrar pela sua Palavra antes de a
transmitir; a sua mensagem deve passar realmente através do pregador, e não só
pela sua razão, mas tomando posse de todo o seu ser. O Espírito Santo, que
inspirou a Palavra, é quem «hoje ainda, como nos inícios da Igreja, age em cada
um dos evangelizadores que se deixa possuir e conduzir por Ele, e põe na sua
boca as palavras que ele sozinho não poderia encontrar».
A leitura
espiritual
152. Há uma
modalidade concreta para escutarmos aquilo que o Senhor nos quer dizer na sua
Palavra e nos deixarmos transformar pelo Espírito: designamo-la por «lectio
divina». Consiste na leitura da Palavra de Deus num tempo de oração, para
lhe permitir que nos ilumine e renove. Esta leitura orante da Bíblia não está
separada do estudo que o pregador realiza para individuar a mensagem central do
texto; antes pelo contrário, é dela que deve partir para procurar descobrir
aquilo que essa mesma mensagem tem a dizer à sua própria vida.
A leitura espiritual dum texto deve partir do seu sentido literal. Caso
contrário, uma pessoa facilmente fará o texto dizer o que lhe convém, o que
serve para confirmar as suas próprias decisões, o que se adapta aos seus
próprios esquemas mentais. E isto seria, em última análise, usar o sagrado para
proveito próprio e passar esta confusão para o povo de Deus. Nunca devemos
esquecer-nos de que, por vezes, «também Satanás se disfarça em anjo de luz» (2
Cor 11, 14).
153. Na presença de
Deus, numa leitura tranquila do texto, é bom perguntar-se, por exemplo:
«Senhor, a mim que me diz este texto? Com esta mensagem, que
quereis mudar na minha vida? Que é que me dá fastídio neste texto? Porque é que
isto não me interessa?»; ou então: «De que gosto? Em que me estimula esta
Palavra? Que me atrai? E porque me atrai?». Quando se procura ouvir o Senhor, é
normal ter tentações. Uma delas é simplesmente sentir-se chateado e acabrunhado
e dar tudo por encerrado; outra tentação muito comum é começar a pensar naquilo
que o texto diz aos outros, para evitar de o aplicar à própria vida. Acontece
também começar a procurar desculpas, que nos permitam diluir a mensagem
específica do texto. Outras vezes pensamos que Deus nos exige uma decisão
demasiado grande, que ainda não estamos em condições de tomar. Isto leva muitas
pessoas a perderem a alegria do encontro com a Palavra, mas isso significaria
esquecer que ninguém é mais paciente do que Deus Pai, ninguém compreende e sabe
esperar como Ele. Deus convida sempre a dar um passo mais, mas não exige uma
resposta completa, se ainda não percorremos o caminho que a torna possível.
Apenas quer que olhemos com sinceridade a nossa vida e a apresentemos sem
fingimento diante dos seus olhos, que estejamos dispostos a continuar a
crescer, e peçamos a Ele o que ainda não podemos conseguir.
À escuta do povo
154. O pregador deve
também pôr-se à escuta do povo, para descobrir aquilo que os fiéis
precisam de ouvir. Um pregador é um contemplativo da Palavra e também um
contemplativo do povo. Desta forma, descobre «as aspirações, as riquezas e as
limitações, as maneiras de orar, de amar, de encarar a vida e o mundo, que
caracterizam este ou aquele aglomerado humano», prestando atenção «ao
povo concreto com os seus sinais e símbolos e respondendo aos
problemas que apresenta». Trata-se de relacionar a mensagem do texto bíblico
com uma situação humana, com algo que as pessoas vivem, com uma experiência que
precisa da luz da Palavra. Esta preocupação não é ditada por uma atitude
oportunista ou diplomática, mas é profundamente religiosa e pastoral. No fundo,
é uma «sensibilidade espiritual para saber ler nos acontecimentos a mensagem de
Deus», e isto é muito mais do que encontrar algo interessante para dizer.
Procura-se descobrir «o que o Senhor tem a dizer nessas
circunstâncias». Então a preparação da pregação transforma-se num exercício
de discernimento evangélico, no qual se procura reconhecer – à luz
do Espírito – «um “apelo” que Deus faz ressoar na própria situação histórica:
também nele e através dele, Deus chama o crente».
155. Nesta busca, é possível
recorrer apenas a alguma experiência humana frequente, como, por exemplo, a
alegria dum reencontro, as desilusões, o medo da solidão, a compaixão pela dor
alheia, a incerteza perante o futuro, a preocupação com um ser querido, etc.;
mas faz falta intensificar a sensibilidade para se reconhecer o que isso
realmente tem a ver com a vida das pessoas. Recordemos que nunca se deve responder
a perguntas que ninguém se põe, nem convém fazer a crónica da actualidade
para despertar interesse; para isso, já existem os programas televisivos. Em
todo o caso, é possível partir de algum facto para que a Palavra possa
repercutir fortemente no seu apelo à conversão, à adoração, a atitudes
concretas de fraternidade e serviço, etc., porque acontece, às vezes, que algumas
pessoas gostam de ouvir comentários sobre a realidade na pregação, mas nem por
isso se deixam interpelar pessoalmente.
Recursos
pedagógicos
156. Alguns
acreditam que podem ser bons pregadores por saber o que devem dizer, mas
descuidam o como, a forma concreta de desenvolver uma pregação.
Zangam-se quando os outros não os ouvem ou não os apreciam, mas talvez não se
tenham empenhado por encontrar a forma adequada de apresentar a mensagem.
Lembremo-nos de que «a evidente importância do conteúdo da evangelização não
deve esconder a importância dos métodos e dos meios da mesma evangelização». A
preocupação com a forma de pregar também é uma atitude profundamente
espiritual. É responder ao amor de Deus, entregando-nos com todas as nossas
capacidades e criatividade à missão que Ele nos confia; mas também é um exímio
exercício de amor ao próximo, porque não queremos oferecer aos outros algo de
má qualidade. Na Bíblia, por exemplo, aparece a recomendação para se preparar a
pregação de modo a garantir uma apropriada extensão: «Sê conciso no teu falar:
muitas coisas em poucas palavras» (Sir 32, 8).
157. Apenas, para
exemplificar, recordemos alguns recursos práticos que podem enriquecer uma
pregação e torná-la mais atraente. Um dos esforços mais necessários é aprender
a usar imagens na pregação, isto é, a falar por imagens. Às vezes usam-se
exemplos para tornar mais compreensível algo que se quer explicar, mas estes
exemplos frequentemente dirigem-se apenas ao entendimento, enquanto as imagens
ajudam a apreciar e acolher a mensagem que se quer transmitir. Uma imagem
fascinante faz com que se sinta a mensagem como algo familiar, próximo,
possível, relacionado com a própria vida. Uma imagem apropriada pode levar a
saborear a mensagem que se quer transmitir, desperta um desejo e motiva a
vontade na direcção do Evangelho. Uma boa homilia, como me dizia um antigo
professor, deve conter «uma ideia, um sentimento, uma imagem».
158. Já dizia Paulo
VI que os fiéis «esperam muito desta pregação e dela poderão tirar fruto,
contanto que ela seja simples, clara, directa, adaptada». A simplicidade tem a
ver com a linguagem utilizada. Deve ser linguagem que os destinatários
compreendam, para não correr o risco de falar ao vento. Acontece frequentemente
que os pregadores usam palavras que aprenderam nos seus estudos e em certos
ambientes, mas que não fazem parte da linguagem comum das pessoas que os ouvem.
Há palavras próprias da teologia ou da catequese, cujo significado não é
compreensível para a maioria dos cristãos. O maior risco dum pregador é
habituar-se à sua própria linguagem e pensar que todos os outros a usam e
compreendem espontaneamente. Se se quer adaptar à linguagem dos outros, para
poder chegar até eles com a Palavra, deve-se escutar muito, é preciso partilhar
a vida das pessoas e prestar-lhes benévola atenção. A simplicidade e a clareza
são duas coisas diferentes. A linguagem pode ser muito simples, mas pouco clara
a pregação. Pode-se tornar incompreensível pela desordem, pela sua falta de
lógica, ou porque trata vários temas ao mesmo tempo. Por isso, outro cuidado
necessário é procurar que a pregação tenha unidade temática, uma ordem clara e
ligação entre as frases, de modo que as pessoas possam facilmente seguir o
pregador e captar a lógica do que lhes diz.
159. Outra
característica é a linguagem positiva. Não diz tanto o que não se deve fazer,
como sobretudo propõe o que podemos fazer melhor. E, se aponta algo negativo,
sempre procura mostrar também um valor positivo que atraia, para não se ficar
pela queixa, o lamento, a crítica ou o remorso. Além disso, uma pregação
positiva oferece sempre esperança, orienta para o futuro, não nos deixa
prisioneiros da negatividade. Como é bom que sacerdotes, diáconos e leigos se
reúnam periodicamente para encontrarem, juntos, os recursos que tornem mais
atraente a pregação!
4. Uma
evangelização para o aprofundamento do querigma
160. O mandato
missionário do Senhor inclui o apelo ao crescimento da fé, quando diz: «ensinando-os a
cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (Mt 28, 20). Daqui se vê
claramente que o primeiro anúncio deve desencadear também um caminho de
formação e de amadurecimento. A evangelização procura também o crescimento, o
que implica tomar muito a sério em cada pessoa o projecto que Deus tem para
ela. Cada ser humano precisa sempre mais de Cristo, e a evangelização não
deveria deixar que alguém se contente com pouco, mas possa dizer com plena
verdade: «Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gal 2,
20).
161. Não seria
correcto que este apelo ao crescimento fosse interpretado, exclusiva ou
prioritariamente, como formação doutrinal. Trata-se de «cumprir» aquilo que o
Senhor nos indicou como resposta ao seu amor, sobressaindo, junto com todas as
virtudes, aquele mandamento novo que é o primeiro, o maior, o que melhor nos
identifica como discípulos: «É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos
outros como Eu vos amei» (Jo 15, 12). É evidente que, quando os
autores do Novo Testamento querem reduzir a mensagem moral cristã a uma última
síntese, ao mais essencial, apresentam-nos a exigência irrenunciável do amor ao
próximo: «Quem ama o próximo cumpre plenamente a lei. (…) É no
amor que está o pleno cumprimento da lei» (Rm 13, 8.10). De igual
modo, São Paulo, para quem o mandamento do amor não só resume a lei mas
constitui o centro e a razão de ser da mesma: «Toda a lei se cumpre plenamente
nesta única palavra: Ama o teu próximo como a
ti mesmo» (Gal 5, 14). E, às suas comunidades, apresenta a vida
cristã como um caminho de crescimento no amor: «O Senhor vos faça crescer e
superabundar de caridade uns para com os outros e para com todos» (1 Ts 3,
12). Também São Tiago exorta os cristãos a cumprir «a lei do Reino,
de acordo com a Escritura: Amarás o teu próximo como a ti
mesmo» (2, 8), acabando por não citar nenhum preceito.
162. Entretanto,
este caminho de resposta e crescimento aparece sempre precedido pelo dom,
porque o antecede aquele outro pedido do Senhor: «baptizando-os em nome...» (Mt 28,
19). A adopção como filhos que o Pai oferece gratuitamente e a iniciativa do
dom da sua graça (cf.Ef 2, 8-9; 1 Cor 4, 7) são a
condição que torna possível esta santificação constante, que agrada a Deus e
Lhe dá glória. É deixar-se transformar em Cristo, vivendo progressivamente «de
acordo com o Espírito» (Rm 8, 5).
Uma catequese
querigmática e mistagógica
163. A educação e a
catequese estão ao serviço deste crescimento. Já temos à disposição vários
textos do Magistério e subsídios sobre a catequese, preparados pela Santa Sé e
por diversos episcopados. Lembro a Exortação Apostólica Catechesi
tradendae (1979), o Directório Geral para a Catequese (1997)
e outros documentos cujo conteúdo, sempre actual, não é necessário repetir
aqui. Queria deter-me apenas nalgumas considerações que me parece oportuno
evidenciar.
164. Voltámos a
descobrir que também na catequese tem um papel fundamental o primeiro anúncio
ou querigma, que deve ocupar o centro da actividade evangelizadora
e de toda a tentativa de renovação eclesial. O querigma é
trinitário. É o fogo do Espírito que se dá sob a forma de línguas e nos faz
crer em Jesus Cristo, que, com a sua morte e ressurreição, nos revela e
comunica a misericórdia infinita do Pai. Na boca do catequista, volta a ressoar
sempre o primeiro anúncio: «Jesus Cristo ama-te, deu a sua vida para te salvar,
e agora vive contigo todos os dias para te iluminar, fortalecer, libertar». Ao
designar-se como «primeiro» este anúncio, não significa que o mesmo se situa no
início e que, em seguida, se esquece ou substitui por outros conteúdos que o
superam; é o primeiro em sentido qualitativo, porque é o anúncio principal,
aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que
sempre se tem de voltar a anunciar, duma forma ou doutra, durante a catequese,
em todas as suas etapas e momentos. Por isso, também «o sacerdote, como a
Igreja, deve crescer na consciência da sua permanente necessidade de ser
evangelizado».
165. Não se deve
pensar que, na catequese, o querigma é deixado de lado em favor duma
formação supostamente mais «sólida». Nada há de mais sólido, mais profundo,
mais seguro, mais consistente e mais sábio que esse anúncio. Toda a formação
cristã é, primariamente, o aprofundamento do querigma que se vai, cada
vez mais e melhor, fazendo carne, que nunca deixa de iluminar a tarefa
catequética, e permite compreender adequadamente o sentido de qualquer tema que
se desenvolve na catequese. É o anúncio que dá resposta ao anseio de infinito
que existe em todo o coração humano. A centralidade do querigma requer
certas características do anúncio que hoje são necessárias em toda a parte: que
exprima o amor salvífico de Deus como prévio à obrigação moral e religiosa, que
não imponha a verdade mas faça apelo à liberdade, que seja pautado pela
alegria, o estímulo, a vitalidade e uma integralidade harmoniosa que não reduza
a pregação a poucas doutrinas, por vezes mais filosóficas que evangélicas. Isto
exige do evangelizador certas atitudes que ajudam a acolher melhor o anúncio:
proximidade, abertura ao diálogo, paciência, acolhimento cordial que não
condena.
166. Outra
característica da catequese, que se desenvolveu nas últimas décadas, é a
iniciação mistagógica, que significa essencialmente duas coisas: a
necessária progressividade da experiência formativa na qual intervém toda a
comunidade e uma renovada valorização dos sinais litúrgicos da iniciação
cristã. Muitos manuais e planificações ainda não se deixaram interpelar pela
necessidade duma renovação mistagógica, que poderia assumir formas muito
diferentes de acordo com o discernimento de cada comunidade educativa. O
encontro catequético é um anúncio da Palavra e está centrado nela, mas precisa
sempre duma ambientação adequada e duma motivação atraente, do uso de símbolos
eloquentes, da sua inserção num amplo processo de crescimento e da integração
de todas as dimensões da pessoa num caminho comunitário de escuta e resposta.
167. É bom que toda
a catequese preste uma especial atenção à «via da beleza (via pulchritudinis)».
Anunciar Cristo significa mostrar que crer n’Ele e segui-Lo não é algo apenas
verdadeiro e justo, mas também belo, capaz de cumular a vida dum novo esplendor
e duma alegria profunda, mesmo no meio das provações. Nesta perspectiva, todas
as expressões de verdadeira beleza podem ser reconhecidas como uma senda que
ajuda a encontrar-se com o Senhor Jesus. Não se trata de fomentar um
relativismo estético, que pode obscurecer o vínculo indivisível entre verdade,
bondade e beleza, mas de recuperar a estima da beleza para poder chegar ao
coração do homem e fazer resplandecer nele a verdade e a bondade do
Ressuscitado. Se nós, como diz Santo Agostinho, não amamos senão o que é belo,
o Filho feito homem, revelação da beleza infinita, é sumamente amável e
atrai-nos para Si com laços de amor. Por isso, torna-se necessário que a formação
na via pulchritudinis esteja inserida na transmissão da fé. É
desejável que cada Igreja particular incentive o uso das artes na sua obra
evangelizadora, em continuidade com a riqueza do passado, mas também na
vastidão das suas múltiplas expressões actuais, a fim de transmitir a fé numa
nova «linguagem parabólica». É preciso ter a coragem de encontrar os novos
sinais, os novos símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as
diversas formas de beleza que se manifestam em diferentes âmbitos culturais,
incluindo aquelas modalidades não convencionais de beleza que podem ser pouco
significativas para os evangelizadores, mas tornaram-se particularmente
atraentes para os outros.
168. Relativamente à
proposta moral da catequese, que convida a crescer na fidelidade ao estilo de
vida do Evangelho, é oportuno indicar sempre o bem desejável, a proposta de
vida, de maturidade, de realização, de fecundidade, sob cuja luz se pode
entender a nossa denúncia dos males que a podem obscurecer. Mais do que como
peritos em diagnósticos apocalípticos ou juízes sombrios que se comprazem em
detectar qualquer perigo ou desvio, é bom que nos possam ver como mensageiros
alegres de propostas altas, guardiões do bem e da beleza que resplandecem numa
vida fiel ao Evangelho.
O acompanhamento
pessoal dos processos de crescimento
169. Numa
civilização paradoxalmente ferida pelo anonimato e, simultaneamente, obcecada
com os detalhes da vida alheia, descaradamente doente de morbosa curiosidade, a
Igreja tem necessidade de um olhar solidário para contemplar, comover-se e
parar diante do outro, tantas vezes quantas forem necessárias. Neste mundo, os
ministros ordenados e os outros agentes de pastoral podem tornar presente a
fragrância da presença solidária de Jesus e o seu olhar pessoal. A Igreja
deverá iniciar os seus membros – sacerdotes, religiosos e leigos – nesta «arte
do acompanhamento», para que todos aprendam a descalçar sempre as sandálias
diante da terra sagrada do outro (cf. Ex 3, 5). Devemos dar ao
nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio
de compaixão, mas que ao mesmo tempo cure, liberte e anime a amadurecer na vida
cristã.
170. Embora possa
soar óbvio, o acompanhamento espiritual deve conduzir cada vez mais para Deus,
em quem podemos alcançar a verdadeira liberdade. Alguns crêem-se livres quando
caminham à margem de Deus, sem se dar conta que ficam existencialmente órfãos,
desamparados, sem um lar para onde sempre possam voltar. Deixam de ser
peregrinos para se transformarem em errantes, que giram indefinidamente ao
redor de si mesmos, sem chegar a lado nenhum. O acompanhamento seria
contraproducente, caso se tornasse uma espécie de terapia que incentive esta
reclusão das pessoas na sua imanência e deixe de ser uma peregrinação com Cristo
para o Pai.
171. Hoje mais do
que nunca precisamos de homens e mulheres que conheçam, a partir da sua
experiência de acompanhamento, o modo de proceder onde reine a prudência, a
capacidade de compreensão, a arte de esperar, a docilidade ao Espírito, para no
meio de todos defender as ovelhas a nós confiadas dos lobos que tentam
desgarrar o rebanho. Precisamos de nos exercitar na arte de escutar, que é mais
do que ouvir. Escutar, na comunicação com o outro, é a capacidade do coração
que torna possível a proximidade, sem a qual não existe um verdadeiro encontro
espiritual. Escutar ajuda-nos a individuar o gesto e a palavra oportunos que
nos desinstalam da cómoda condição de espectadores. Só a partir desta escuta
respeitosa e compassiva é que se pode encontrar os caminhos para um crescimento
genuíno, despertar o desejo do ideal cristão, o anseio de corresponder
plenamente ao amor de Deus e o anelo de desenvolver o melhor de quanto Deus
semeou na nossa própria vida. Mas sempre com a paciência de quem está ciente
daquilo que ensinava São Tomás de Aquino: alguém pode ter a graça e a caridade,
mas não praticar bem nenhuma das virtudes «por causa de algumas inclinações
contrárias» que persistem. Por outras palavras, as virtudes organizam-se sempre
e necessariamente «in habitu», embora os condicionamentos possam
dificultar as operações desses hábitos virtuosos. Por isso,
faz falta «uma pedagogia que introduza a pessoa passo a passo até chegar à
plena apropriação do mistério». Para se chegar a um estado de maturidade, isto
é, para que as pessoas sejam capazes de decisões verdadeiramente livres e
responsáveis, é preciso dar tempo ao tempo, com uma paciência imensa. Como
dizia o Beato Pedro Fabro: «O tempo é o mensageiro de Deus».
172. Quem acompanha
sabe reconhecer que a situação de cada pessoa diante de Deus e a sua vida em
graça é um mistério que ninguém pode conhecer plenamente a partir do exterior.
O Evangelho propõe-nos que se corrija e ajude a crescer uma pessoa a partir do
reconhecimento da maldade objectiva das suas acções (cf. Mt 18,
15), mas sem proferir juízos sobre a sua responsabilidade e culpabilidade
(cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37). Seja como for, um
válido acompanhante não transige com os fatalismos nem com a pusilanimidade.
Sempre convida a querer curar-se, a pegar no catre (cf. Mt 9,
6), a abraçar a cruz, a deixar tudo e partir sem cessar para anunciar o
Evangelho. A experiência pessoal de nos deixarmos acompanhar e curar,
conseguindo exprimir com plena sinceridade a nossa vida a quem nos acompanha,
ensina-nos a ser pacientes e compreensivos com os outros e habilita-nos a
encontrar as formas para despertar neles a confiança, a abertura e a vontade de
crescer.
173. O
acompanhamento espiritual autêntico começa sempre e prossegue no âmbito do
serviço à missão evangelizadora. A relação de Paulo com Timóteo e Tito é
exemplo deste acompanhamento e desta formação durante a acção apostólica. Ao
mesmo tempo que lhes confia a missão de permanecer numa cidade concreta para
«acabar de organizar o que ainda falta» (Tt 1, 5; cf. 1 Tm 1,
3-5), dá-lhes os critérios para a vida pessoal e a actividade pastoral. Isto é
claramente distinto de todo o tipo de acompanhamento intimista, de
auto-realização isolada. Os discípulos missionários acompanham discípulos
missionários.
Ao redor da
Palavra de Deus
174. Não é só a
homilia que se deve alimentar da Palavra de Deus. Toda a evangelização está
fundada sobre esta Palavra escutada, meditada, vivida, celebrada e
testemunhada. A Sagrada Escritura é fonte da evangelização. Por isso, é preciso
formar-se continuamente na escuta da Palavra. A Igreja não evangeliza, se não
se deixa continuamente evangelizar. É indispensável que a Palavra de Deus «se
torne cada vez mais o coração de toda a actividade eclesial». A Palavra de Deus
ouvida e celebrada, sobretudo na Eucaristia, alimenta e reforça interiormente
os cristãos e torna-os capazes de um autêntico testemunho evangélico na vida
diária. Superámos já a velha contraposição entre Palavra e Sacramento: a
Palavra proclamada, viva e eficaz, prepara a recepção do Sacramento e, no
Sacramento, essa Palavra alcança a sua máxima eficácia.
175. O estudo da
Sagrada Escritura deve ser uma porta aberta para todos os crentes. É
fundamental que a Palavra revelada fecunde radicalmente a catequese e todos os
esforços para transmitir a fé. A evangelização requer a familiaridade com a
Palavra de Deus, e isto exige que as dioceses, paróquias e todos os grupos
católicos proponham um estudo sério e perseverante da Bíblia e promovam
igualmente a sua leitura orante pessoal e comunitária. Nós não procuramos Deus
tacteando, nem precisamos de esperar que Ele nos dirija a palavra, porque
realmente «Deus falou, já não é o grande desconhecido, mas mostrou-Se a Si
mesmo». Acolhamos o tesouro sublime da Palavra revelada!
Capítulo IV
A DIMENSÃO SOCIAL DA
EVANGELIZAÇÃO
176. Evangelizar é
tornar o Reino de Deus presente no mundo. «Nenhuma definição parcial e
fragmentada, porém, chegará a dar razão da realidade rica, complexa e dinâmica
que é a evangelização, a não ser com o risco de a empobrecer e até mesmo de a
mutilar». Desejo agora partilhar as minhas preocupações relacionadas com a
dimensão social da evangelização, precisamente porque, se esta dimensão não for
devidamente explicitada, corre-se sempre o risco de desfigurar o sentido
autêntico e integral da missão evangelizadora.
1. As
repercussões comunitárias e sociais do querigma
177. O querigma possui
um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a
vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio
tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade.
Confissão da fé e
compromisso social
178. Confessar um
Pai que ama infinitamente cada ser humano implica descobrir que «assim lhe
confere uma dignidade infinita». Confessar que o Filho de Deus assumiu a nossa
carne humana significa que cada pessoa humana foi elevada até ao próprio
coração de Deus. Confessar que Jesus deu o seu sangue por nós impede-nos de ter
qualquer dúvida acerca do amor sem limites que enobrece todo o ser humano. A
sua redenção tem um sentido social, porque «Deus, em Cristo, não redime somente
a pessoa individual, mas também as relações sociais entre os homens». Confessar
que o Espírito Santo actua em todos implica reconhecer que Ele procura permear
toda a situação humana e todos os vínculos sociais: «O Espírito Santo possui
uma inventiva infinita, própria da mente divina, que sabe prover a desfazer os
nós das vicissitudes humanas mais complexas e impenetráveis». A evangelização
procura colaborar também com esta acção libertadora do Espírito. O próprio
mistério da Trindade nos recorda que somos criados à imagem desta comunhão
divina, pelo que não podemos realizar-nos nem salvar-nos sozinhos. A partir do
coração do Evangelho, reconhecemos a conexão íntima que existe entre
evangelização e promoção humana, que se deve necessariamente exprimir e
desenvolver em toda a acção evangelizadora. A aceitação do primeiro anúncio,
que convida a deixar-se amar por Deus e a amá-Lo com o amor que Ele mesmo nos
comunica, provoca na vida da pessoa e nas suas acções uma primeira e
fundamental reacção: desejar, procurar e ter a peito o bem dos outros.
179. Este laço
indissolúvel entre a recepção do anúncio salvífico e um efectivo amor fraterno
exprime-se nalguns textos da Escritura, que convém considerar e meditar
atentamente para tirar deles todas as consequências. É uma mensagem a que
frequentemente nos habituamos e repetimos quase mecanicamente, mas sem nos
assegurarmos de que tenha real incidência na nossa vida e nas nossas
comunidades. Como é perigoso e prejudicial este habituar-se que nos leva a
perder a maravilha, a fascinação, o entusiasmo de viver o Evangelho da
fraternidade e da justiça! A Palavra de Deus ensina que, no irmão, está o
prolongamento permanente da Encarnação para cada um de nós: «Sempre que
fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes»
(Mt 25, 40). O que fizermos aos outros, tem uma dimensão
transcendente: «Com a medida com que medirdes, assim sereis medidos» (Mt 7,
2); e corresponde à misericórdia divina para connosco: «Sede misericordiosos
como o vosso Pai é misericordioso. Não julgueis e não sereis julgados; não
condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados. Dai e
ser-vos-á dado (...). A medida que usardes com os outros será usada convosco» (Lc 6,
36-38). Nestes textos, exprime-se a absoluta prioridade da «saída de si próprio
para o irmão», como um dos dois mandamentos principais que fundamentam toda a
norma moral e como o sinal mais claro para discernir sobre o caminho de
crescimento espiritual em resposta à doação absolutamente gratuita de Deus. Por
isso mesmo, «também o serviço da caridade é uma dimensão constitutiva da missão
da Igreja e expressão irrenunciável da sua própria essência». Assim como a
Igreja é missionária por natureza, também brota inevitavelmente dessa natureza
a caridade efectiva para com o próximo, a compaixão que compreende, assiste e
promove.
O Reino que nos
chama
180. Ao lermos as
Escrituras, fica bem claro que a proposta do Evangelho não consiste só numa
relação pessoal com Deus. E a nossa resposta de amor também não deveria ser
entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns
indivíduos necessitados, o que poderia constituir uma «caridade por receita»,
uma série de acções destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A
proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43);
trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir
reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de
paz, de dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência
cristã tendem a provocar consequências sociais. Procuremos o seu Reino:
«Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará
por acréscimo» (Mt 6, 33). O projecto de Jesus é instaurar o Reino
de seu Pai; por isso, pede aos seus discípulos: «Proclamai que o Reino do Céu
está perto» (Mt 10, 7).
181. O Reino, que se
antecipa e cresce entre nós, abrange tudo, como nos recorda aquele princípio de
discernimento que Paulo VI propunha a propósito do verdadeiro desenvolvimento:
«Todos os homens e o homem todo». Sabemos que «a evangelização não seria
completa, se ela não tomasse em consideração a interpelação recíproca que se
fazem constantemente o Evangelho e a vida concreta, pessoal e social, dos
homens». É o critério da universalidade, próprio da dinâmica do Evangelho, dado
que o Pai quer que todos os homens se salvem; e o seu plano de salvação
consiste em «submeter tudo a Cristo, reunindo n’Ele o que há no céu e na terra»
(Ef 1, 10). O mandato é: «Ide pelo mundo inteiro, proclamai o
Evangelho a toda criatura» (Mc 16, 15), porque toda «a criação se
encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8,
19). Toda a criação significa também todos os aspectos da vida humana, de tal
modo que «a missão do anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo tem destinação
universal. Seu mandato de caridade alcança todas as dimensões da existência,
todas as pessoas, todos os ambientes da convivência e todos os povos. Nada do
humano pode lhe parecer estranho». A verdadeira esperança cristã, que procura o
Reino escatológico, gera sempre história.
A doutrina da
Igreja sobre as questões sociais
182. Os ensinamentos
da Igreja acerca de situações contingentes estão sujeitos a maiores ou novos
desenvolvimentos e podem ser objecto de discussão, mas não podemos evitar de
ser concretos – sem pretender entrar em detalhes – para que os grandes princípios
sociais não fiquem meras generalidades que não interpelam ninguém. É preciso
tirar as suas consequências práticas, para que «possam incidir com eficácia
também nas complexas situações hodiernas». Os Pastores, acolhendo as
contribuições das diversas ciências, têm o direito de exprimir opiniões sobre
tudo aquilo que diz respeito à vida das pessoas, dado que a tarefa da
evangelização implica e exige uma promoção integral de cada ser humano. Já não
se pode afirmar que a religião deve limitar-se ao âmbito privado e serve apenas
para preparar as almas para o céu. Sabemos que Deus deseja a felicidade dos
seus filhos também nesta terra, embora estejam chamados à plenitude eterna,
porque Ele criou todas as coisas «para nosso usufruto» (1 Tm 6,
17), para que todos possam usufruir delas. Por isso, a
conversão cristã exige rever «especialmente tudo o que diz respeito à ordem
social e consecução do bem comum».
183. Por
conseguinte, ninguém pode exigir-nos que releguemos a religião para a
intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e
nacional, sem nos preocupar com a saúde das instituições da sociedade civil,
sem nos pronunciar sobre os acontecimentos que interessam aos cidadãos. Quem
ousaria encerrar num templo e silenciar a mensagem de São Francisco de Assis e
da Beata Teresa de Calcutá? Eles não o poderiam aceitar. Uma fé autêntica – que
nunca é cómoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar
o mundo, transmitir valores, deixar a terra um pouco melhor depois da nossa passagem
por ela. Amamos este magnífico planeta, onde Deus nos colocou, e amamos a
humanidade que o habita, com todos os seus dramas e cansaços, com os seus
anseios e esperanças, com os seus valores e fragilidades. A terra é a nossa
casa comum, e todos somos irmãos. Embora «a justa ordem da sociedade e do
Estado seja dever central da política», a Igreja «não pode nem deve ficar à
margem na luta pela justiça». Todos os cristãos, incluindo os Pastores, são
chamados a preocupar-se com a construção dum mundo melhor. É disto mesmo que se
trata, pois o pensamento social da Igreja é primariamente positivo e
construtivo, orienta uma acção transformadora e, neste sentido, não deixa de
ser um sinal de esperança que brota do coração amoroso de Jesus Cristo. Ao
mesmo tempo, «une o próprio empenho ao esforço em campo social das demais
Igrejas e Comunidades eclesiais, tanto na reflexão doutrinal como na prática».
184. Aqui não é o
momento para explanar todas as graves questões sociais que afectam o mundo
actual, algumas das quais já comentei no terceiro capítulo. Este não é um
documento social e, para nos ajudar a reflectir sobre estes vários temas, temos
um instrumento muito apropriado no Compêndio da Doutrina Social da
Igreja, cujo uso e estudo vivamente recomendo. Além disso, nem o Papa nem a
Igreja possui o monopólio da interpretação da realidade social ou da
apresentação de soluções para os problemas contemporâneos. Posso repetir aqui o
que indicava, com grande lucidez, Paulo VI: «Perante situações, assim tão
diversificadas, torna-se-nos difícil tanto o pronunciar uma palavra única, como
o propor uma solução que tenha um valor universal. Mas, isso não é ambição
nossa, nem mesmo a nossa missão. É às comunidades cristãs que cabe analisarem,
com objectividade, a situação própria do seu país».
185. Em seguida,
procurarei concentrar-me sobre duas grandes questões que me parecem
fundamentais neste momento da história. Desenvolvê-las-ei com uma certa
amplitude, porque considero que irão determinar o futuro da humanidade. A primeira
é a inclusão social dos pobres; e a segunda, a questão da paz e do diálogo
social.
2. A inclusão
social dos pobres
186. Deriva da nossa
fé em Cristo, que Se fez pobre e sempre Se aproximou dos pobres e
marginalizados, a preocupação pelo desenvolvimento integral dos mais
abandonados da sociedade.
Unidos a Deus,
ouvimos um clamor
187. Cada cristão e
cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus ao serviço da
libertação e promoção dos pobres, para que possam integrar-se plenamente na
sociedade; isto supõe estar docilmente atentos, para ouvir o clamor do pobre e
socorrê-lo. Basta percorrer as Escrituras, para descobrir como o Pai bom quer
ouvir o clamor dos pobres: «Eu bem vi a opressão do meu povo que está no
Egipto, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspectores; conheço, na verdade,
os seus sofrimentos. Desci a fim de os libertar (...). E agora, vai; Eu te
envio...» (Ex 3, 7-8.10). E Ele mostra-Se solícito com as suas
necessidades: «Os filhos de Israel clamaram, então, ao Senhor, e o Senhor
enviou-lhes um salvador» (Jz 3, 15). Ficar surdo a este clamor,
quando somos os instrumentos de Deus para ouvir o pobre, coloca-nos fora da
vontade do Pai e do seu projecto, porque esse pobre «clamaria ao Senhor contra
ti, e aquilo tornar-se-ia para ti um pecado» (Dt 15, 9). E a falta
de solidariedade, nas suas necessidades, influi directamente sobre a nossa
relação com Deus: «Se te amaldiçoa na amargura da sua alma, Aquele que o criou
ouvirá a sua oração» (Sir 4, 6). Sempre retorna a antiga pergunta:
«Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe
fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?» (1 Jo 3,
17). Lembremos também com quanta convicção o Apóstolo São Tiago retomava a
imagem do clamor dos oprimidos: «Olhai que o salário que não pagastes, aos
trabalhadores que ceifaram os vossos campos, está a clamar; e os clamores dos
ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo» (5, 4).
188. A Igreja
reconheceu que a exigência de ouvir este clamor deriva da própria obra
libertadora da graça em cada um de nós, pelo que não se trata de uma missão
reservada apenas a alguns: «A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia e
pelo amor ao homem, escuta o clamor pela justiça e deseja
responder com todas as suas forças». Nesta linha, se pode entender o pedido de
Jesus aos seus discípulos: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6,
37), que envolve tanto a cooperação para resolver as causas estruturais da
pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres, como os gestos mais
simples e diários de solidariedade para com as misérias muito concretas que
encontramos. Embora um pouco desgastada e, por vezes, até mal interpretada, a
palavra «solidariedade» significa muito mais do que alguns actos esporádicos de
generosidade; supõe a criação duma nova mentalidade que pense em termos de
comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por
parte de alguns.
189. A solidariedade
é uma reacção espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o
destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada. A
posse privada dos bens justifica-se para cuidar deles e aumentá-los de modo a
servirem melhor o bem comum, pelo que a solidariedade deve ser vivida como a decisão
de devolver ao pobre o que lhe corresponde. Estas convicções e práticas de
solidariedade, quando se fazem carne, abrem caminho a outras transformações
estruturais e tornam-nas possíveis. Uma mudança nas estruturas, sem se gerar
novas convicções e atitudes, fará com que essas mesmas estruturas, mais cedo ou
mais tarde, se tornem corruptas, pesadas e ineficazes.
190. Às vezes
trata-se de ouvir o clamor de povos inteiros, dos povos mais pobres da terra,
porque «a paz funda-se não só no respeito pelos direitos do homem, mas também
no respeito pelo direito dos povos». Lamentavelmente, até os direitos humanos
podem ser usados como justificação para uma defesa exacerbada dos direitos
individuais ou dos direitos dos povos mais ricos. Respeitando a independência e
a cultura de cada nação, é preciso recordar-se sempre de que o planeta é de
toda a humanidade e para toda a humanidade, e que o simples facto de ter
nascido num lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento não justifica
que algumas pessoas vivam menos dignamente. É preciso repetir que «os mais
favorecidos devem renunciar a alguns dos seus direitos, para poderem colocar,
com mais liberalidade, os seus bens ao serviço dos outros». Para falarmos
adequadamente dos nossos direitos, é preciso alongar mais o olhar e abrir os
ouvidos ao clamor dos outros povos ou de outras regiões do próprio país.
Precisamos de crescer numa solidariedade que «permita a todos os povos
tornarem-se artífices do seu destino», tal como «cada homem é chamado a
desenvolver-se».
191. Animados pelos
seus Pastores, os cristãos são chamados, em todo o lugar e circunstância, a
ouvir o clamor dos pobres, como bem se expressaram os Bispos do Brasil:
«Desejamos assumir, a cada dia, as alegrias e esperanças, as angústias e
tristezas do povo brasileiro, especialmente das populações das periferias
urbanas e das zonas rurais – sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde – lesadas
em seus direitos. Vendo a sua miséria, ouvindo os seus clamores e conhecendo o
seu sofrimento, escandaliza-nos o fato de saber que existe alimento suficiente
para todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e da renda. O problema
se agrava com a prática generalizada do desperdício».
192. Mas queremos
ainda mais, o nosso sonho voa mais alto. Não se fala apenas de garantir a
comida ou um decoroso «sustento» para todos, mas «prosperidade e
civilização em seus múltiplos aspectos». Isto engloba educação,
acesso aos cuidados de saúde e especialmente trabalho, porque, no trabalho
livre, criativo, participativo e solidário, o ser humano exprime e engrandece a
dignidade da sua vida. O salário justo permite o acesso adequado aos outros
bens que estão destinados ao uso comum.
Fidelidade ao
Evangelho, para não correr em vão
193. Este imperativo
de ouvir o clamor dos pobres faz-se carne em nós, quando no mais íntimo de nós
mesmos nos comovemos à vista do sofrimento alheio. Voltemos a ler alguns
ensinamentos da Palavra de Deus sobre a misericórdia, para que ressoem
vigorosamente na vida da Igreja. O Evangelho proclama: «Felizes os
misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (Mt 5, 7). O
Apóstolo São Tiago ensina que a misericórdia para com os outros permite-nos
sair triunfantes no juízo divino: «Falai e procedei como pessoas que hão-de ser
julgadas segundo a lei da liberdade. Porque, quem não pratica a misericórdia,
será julgado sem misericórdia. Mas a misericórdia não teme o julgamento» (2,
12-13). Neste texto, São Tiago aparece-nos como herdeiro do que tinha de mais
rico a espiritualidade judaica do pós-exílio, a qual atribuía um especial valor
salvífico à misericórdia: «Redime o teu pecado pela justiça, e as tuas
iniquidades, pela piedade para com os infelizes; talvez isto consiga prolongar
a tua prosperidade» (Dn 4, 24). Nesta mesma perspectiva, a
literatura sapiencial fala da esmola como exercício concreto da misericórdia
para com os necessitados: «A esmola livra da morte e limpa de todo o pecado» (Tb 12,
9). E de forma ainda mais sensível se exprime Ben-Sirá: «A água apaga o fogo
ardente, e a esmola expia o pecado» (3, 30). Encontramos a mesma síntese no
Novo Testamento: «Mantende entre vós uma intensa caridade, porque o amor cobre
a multidão dos pecados» (1 Pd 4, 8). Esta verdade permeou
profundamente a mentalidade dos Padres da Igreja, tendo exercido uma
resistência profética como alternativa cultural face ao individualismo
hedonista pagão. Recordemos apenas um exemplo: «Tal como, em perigo de
incêndio, correríamos a buscar água para o apagar (...), o mesmo deveríamos
fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado;
assim, quando se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia de misericórdia,
alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que nos é oferecida e na qual
podemos extinguir o incêndio».
194. É uma mensagem
tão clara, tão directa, tão simples e eloquente que nenhuma hermenêutica
eclesial tem o direito de relativizar. A reflexão da Igreja sobre estes textos
não deveria ofuscar nem enfraquecer o seu sentido exortativo, mas antes ajudar
a assumi-los com coragem e ardor. Para quê complicar o que é tão simples? As
elaborações conceptuais hão-de favorecer o contacto com a realidade que
pretendem explicar, e não afastar-nos dela. Isto vale sobretudo para as
exortações bíblicas que convidam, com tanta determinação, ao amor fraterno, ao
serviço humilde e generoso, à justiça, à misericórdia para com o pobre. Jesus
ensinou-nos este caminho de reconhecimento do outro, com as suas palavras e com
os seus gestos. Para quê ofuscar o que é tão claro? Não nos preocupemos só com
não cair em erros doutrinais, mas também com ser fiéis a este caminho luminoso
de vida e sabedoria. Porque «é frequente dirigir aos defensores da “ortodoxia”
a acusação de passividade, de indulgência ou de cumplicidade culpáveis frente a
situações intoleráveis de injustiça e de regimes políticos que mantêm estas
situações».
195. Quando São
Paulo foi ter com os Apóstolos a Jerusalém para discernir «se estava a correr
ou tinha corrido em vão» (Gal 2, 2), o critério-chave de
autenticidade que lhe indicaram foi que não se esquecesse dos pobres (cf. Gal 2,
10). Este critério importante para que as comunidades paulinas não se deixassem
arrastar pelo estilo de vida individualista dos pagãos, tem uma grande
actualidade no contexto actual em que tende a desenvolver-se um novo paganismo
individualista. A própria beleza do Evangelho nem sempre a conseguimos
manifestar adequadamente, mas há um sinal que nunca deve faltar: a opção pelos
últimos, por aqueles que a sociedade descarta e lança fora.
196. Às vezes somos
duros de coração e de mente, esquecemo-nos, entretemo-nos, extasiamo-nos com as
imensas possibilidades de consumo e de distracção que esta sociedade oferece.
Gera-se assim uma espécie de alienação que nos afecta a todos, pois «alienada é
a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de
consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa
solidariedade inter-humana».
O lugar
privilegiado dos pobres no povo de Deus
197. No coração de
Deus, ocupam lugar preferencial os pobres, tanto que até Ele mesmo «Se fez
pobre» (2 Cor 8, 9). Todo o caminho da nossa redenção está
assinalado pelos pobres. Esta salvação veio a nós, através do «sim» duma jovem
humilde, duma pequena povoação perdida na periferia dum grande império. O
Salvador nasceu num presépio, entre animais, como sucedia com os filhos dos
mais pobres; foi apresentado no Templo, juntamente com dois pombinhos, a oferta
de quem não podia permitir-se pagar um cordeiro (cf. Lc 2,
24; Lv 5, 7); cresceu num lar de simples trabalhadores, e trabalhou
com suas mãos para ganhar o pão. Quando começou a anunciar o Reino, seguiam-No
multidões de deserdados, pondo assim em evidência o que Ele mesmo dissera: «O
Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos
pobres» (Lc 4, 18). A quantos sentiam o peso do sofrimento,
acabrunhados pela pobreza, assegurou que Deus os tinha no âmago do seu coração:
«Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus» (Lc 6,
20); e com eles Se identificou: «Tive fome e destes-Me de comer», ensinando que
a misericórdia para com eles é a chave do Céu (cf. Mt 25,
34-40).
198. Para a Igreja,
a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica,
política ou filosófica. Deus «manifesta a sua misericórdia antes de mais» a
eles. Esta preferência divina tem consequências na vida de fé de todos os
cristãos, chamados a possuírem «os mesmos sentimentos que estão em Cristo
Jesus» (Fl 2, 5). Inspirada por tal preferência, a Igreja fez
uma opção pelos pobres, entendida como uma «forma especial de
primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da
Igreja». Como ensinava Bento XVI, esta opção «está implícita na fé cristológica
naquele Deus que Se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza». Por
isso, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos ensinar.
Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores
conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por
eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas
vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a
descobrir Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas,
mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a
misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles.
199. O nosso
compromisso não consiste exclusivamente em acções ou em programas de promoção e
assistência; aquilo que o Espírito põe em movimento não é um excesso de
activismo, mas primariamente uma atenção prestada ao outro
«considerando-o como um só consigo mesmo». Esta atenção amiga é o início duma
verdadeira preocupação pela sua pessoa e, a partir dela, desejo procurar
efectivamente o seu bem. Isto implica apreciar o pobre na sua bondade própria,
com o seu modo de ser, com a sua cultura, com a sua forma de viver a fé. O amor
autêntico é sempre contemplativo, permitindo-nos servir o outro não por
necessidade ou vaidade, mas porque ele é belo, independentemente da sua
aparência: «Do amor, pelo qual uma pessoa é agradável a outra, depende que lhe
dê algo de graça». Quando amado, o pobre «é estimado como de alto valor», e
isto diferencia a autêntica opção pelos pobres de qualquer ideologia, de
qualquer tentativa de utilizar os pobres ao serviço de interesses pessoais ou
políticos. Unicamente a partir desta proximidade real e cordial é que podemos
acompanhá-los adequadamente no seu caminho de libertação. Só isto tornará
possível que «os pobres se sintam, em cada comunidade cristã, como “em casa”.
Não seria, este estilo, a maior e mais eficaz apresentação da boa nova do
Reino?» Sem a opção preferencial pelos pobres, «o anúncio do Evangelho – e este
anúncio é a primeira caridade – corre o risco de não ser compreendido ou de
afogar-se naquele mar de palavras que a actual sociedade da comunicação
diariamente nos apresenta».
200. Dado que esta
Exortação se dirige aos membros da Igreja Católica, desejo afirmar, com mágoa,
que a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual.
A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à fé; tem necessidade
de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade, a sua bênção, a sua
Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta dum caminho de crescimento e
amadurecimento na fé. A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se,
principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária.
201. Ninguém deveria
dizer que se mantém longe dos pobres, porque as suas opções de vida implicam
prestar mais atenção a outras incumbências. Esta é uma desculpa frequente nos
ambientes académicos, empresariais ou profissionais, e até mesmo eclesiais.
Embora se possa dizer, em geral, que a vocação e a missão próprias dos fiéis
leigos é a transformação das diversas realidades terrenas para que toda a
actividade humana seja transformada pelo Evangelho, ninguém pode sentir-se
exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça social: «A conversão
espiritual, a intensidade do amor a Deus e ao próximo, o zelo pela justiça e
pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza são exigidos a todos».
Temo que também estas palavras sejam objecto apenas de alguns comentários, sem
verdadeira incidência prática. Apesar disso, tenho confiança na abertura e nas
boas disposições dos cristãos e peço-vos que procureis, comunitariamente, novos
caminhos para acolher esta renovada proposta.
Economia e
distribuição das entradas
202. A necessidade
de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar; e não apenas por
uma exigência pragmática de obter resultados e ordenar a sociedade, mas também
para a curar duma mazela que a torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a
novas crises. Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências,
deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem
radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia
absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas
estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e,
em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais.
203. A dignidade de
cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a
política económica, mas às vezes parecem somente apêndices adicionados de fora
para completar um discurso político sem perspectivas nem programas de
verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram molestas para
este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de
solidariedade mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta
que se fale de defender os postos de trabalho, molesta que se fale da dignidade
dos fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da
justiça. Outras vezes acontece que estas palavras se tornam objecto duma
manipulação oportunista que as desonra. A cómoda indiferença diante destas
questões esvazia a nossa vida e as nossas palavras de todo o significado. A
vocação dum empresário é uma nobre tarefa, desde que se deixe interpelar por um
sentido mais amplo da vida; isto permite-lhe servir verdadeiramente o bem comum
com o seu esforço por multiplicar e tornar os bens deste mundo mais acessíveis
a todos.
204. Não podemos
mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. O crescimento
equitativo exige algo mais do que o crescimento económico, embora o
pressuponha; requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente
orientados para uma melhor distribuição das entradas, para a criação de
oportunidades de trabalho, para uma promoção integral dos pobres que supere o
mero assistencialismo. Longe de mim propor um populismo irresponsável, mas a
economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando
se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando
assim novos excluídos.
205. Peço a Deus que
cresça o número de políticos capazes de entrar num autêntico diálogo que vise
efectivamente sanar as raízes profundas e não a aparência dos males do nosso
mundo. A política, tão denegrida, é uma sublime vocação, é uma das formas mais
preciosas da caridade, porque busca o bem comum. Temos de nos convencer que a
caridade «é o princípio não só das micro-relações estabelecidas entre amigos,
na família, no pequeno grupo, mas também das macro-relações como
relacionamentos sociais, económicos, políticos». Rezo ao Senhor para que nos
conceda mais políticos, que tenham verdadeiramente a peito a sociedade, o povo,
a vida dos pobres. É indispensável que os governantes e o poder financeiro
levantem o olhar e alarguem as suas perspectivas, procurando que haja trabalho
digno, instrução e cuidados sanitários para todos os cidadãos. E porque não
acudirem a Deus pedindo-Lhe que inspire os seus planos? Estou convencido de
que, a partir duma abertura à transcendência, poder-se-ia formar uma nova
mentalidade política e económica que ajudaria a superar a dicotomia absoluta
entre a economia e o bem comum social.
206. A economia –
como indica o próprio termo – deveria ser a arte de alcançar uma adequada
administração da casa comum, que é o mundo inteiro. Todo o acto económico duma
certa envergadura, que se realiza em qualquer parte do planeta, repercute-se no
mundo inteiro, pelo que nenhum Governo pode agir à margem duma responsabilidade
comum. Na realidade, torna-se cada vez mais difícil encontrar soluções a nível
local para as enormes contradições globais, pelo que a política local se satura
de problemas por resolver. Se realmente queremos alcançar uma economia global
saudável, precisamos, neste momento da história, de um modo mais eficiente de
interacção que, sem prejuízo da soberania das nações, assegure o bem-estar
económico a todos os países e não apenas a alguns.
207. E qualquer
comunidade da Igreja, na medida em que pretender subsistir tranquila sem se
ocupar criativamente nem cooperar de forma eficaz para que os pobres vivam com
dignidade e haja a inclusão de todos, correrá também o risco da sua dissolução,
mesmo que fale de temas sociais ou critique os Governos. Facilmente acabará
submersa pelo mundanismo espiritual, dissimulado em práticas religiosas,
reuniões infecundas ou discursos vazios.
208. Se alguém se
sentir ofendido com as minhas palavras, saiba que as exprimo com estima e com a
melhor das intenções, longe de qualquer interesse pessoal ou ideologia
política. A minha palavra não é a dum inimigo nem a dum opositor. A mim
interessa-me apenas procurar que, quantos vivem escravizados por uma
mentalidade individualista, indiferente e egoísta, possam libertar-se dessas
cadeias indignas e alcancem um estilo de vida e de pensamento mais humano, mais
nobre, mais fecundo, que dignifique a sua passagem por esta terra.
Cuidar da
fragilidade
209. Jesus, o
evangelizador por excelência e o Evangelho em pessoa, identificou-Se
especialmente com os mais pequeninos (cf. Mt 25, 40). Isto
recorda-nos, a todos os cristãos, que somos chamados a cuidar dos mais frágeis
da Terra. Mas, no modelo «do êxito» e «individualista» em vigor, parece que não
faz sentido investir para que os lentos, fracos ou menos dotados possam também
singrar na vida.
210. Embora
aparentemente não nos traga benefícios tangíveis e imediatos, é indispensável
prestar atenção e debruçar-nos sobre as novas formas de pobreza e fragilidade,
nas quais somos chamados a reconhecer Cristo sofredor: os sem abrigo, os
toxicodependentes, os refugiados, os povos indígenas, os idosos cada vez mais
sós e abandonados, etc. Os migrantes representam um desafio especial para mim,
por ser Pastor duma Igreja sem fronteiras que se sente mãe de todos. Por isso,
exorto os países a uma abertura generosa, que, em vez de temer a destruição da
identidade local, seja capaz de criar novas sínteses culturais. Como são belas
as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os que são diferentes,
fazendo desta integração um novo factor de progresso! Como são encantadoras as
cidades que, já no seu projecto arquitectónico, estão cheias de espaços que
unem, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro!
211. Sempre me
angustiou a situação das pessoas que são objecto das diferentes formas de
tráfico. Quem dera que se ouvisse o grito de Deus, perguntando a todos nós:
«Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9). Onde está o teu irmão escravo?
Onde está o irmão que estás matando cada dia na pequena fábrica clandestina, na
rede da prostituição, nas crianças usadas para a mendicidade, naquele que tem
de trabalhar às escondidas porque não foi regularizado? Não nos façamos de
distraídos! Há muita cumplicidade... A pergunta é para todos! Nas nossas
cidades, está instalado este crime mafioso e aberrante, e muitos têm as mãos
cheias de sangue devido a uma cómoda e muda cumplicidade.
212. Duplamente
pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e
violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus
direitos. E todavia, também entre elas, encontramos continuamente os mais
admiráveis gestos de heroísmo quotidiano na defesa e cuidado da fragilidade das
suas famílias.
213. Entre estes
seres frágeis, de que a Igreja quer cuidar com predilecção, estão também os
nascituros, os mais inermes e inocentes de todos, a quem hoje se quer negar a
dignidade humana para poder fazer deles o que apetece, tirando-lhes a vida e
promovendo legislações para que ninguém o possa impedir. Muitas vezes, para
ridiculizar jocosamente a defesa que a Igreja faz da vida dos nascituros,
procura-se apresentar a sua posição como ideológica, obscurantista e
conservadora; e no entanto esta defesa da vida nascente está intimamente ligada
à defesa de qualquer direito humano. Supõe a convicção de que um ser humano é
sempre sagrado e inviolável, em qualquer situação e em cada etapa do seu
desenvolvimento. É fim em si mesmo, e nunca um meio para resolver outras
dificuldades. Se cai esta convicção, não restam fundamentos sólidos e
permanentes para a defesa dos direitos humanos, que ficariam sempre sujeitos às
conveniências contingentes dos poderosos de turno. Por si só a razão é
suficiente para se reconhecer o valor inviolável de qualquer vida humana, mas,
se a olhamos também a partir da fé, «toda a violação da dignidade pessoal do
ser humano clama por vingança junto de Deus e torna-se ofensa ao Criador do
homem».
214. E precisamente
porque é uma questão que mexe com a coerência interna da nossa mensagem sobre o
valor da pessoa humana, não se deve esperar que a Igreja altere a sua posição
sobre esta questão. A propósito, quero ser completamente honesto. Este não é um
assunto sujeito a supostas reformas ou «modernizações». Não é opção
progressista pretender resolver os problemas, eliminando uma vida humana. Mas é
verdade também que temos feito pouco para acompanhar adequadamente as mulheres
que estão em situações muito duras, nas quais o aborto lhes aparece como uma
solução rápida para as suas profundas angústias, particularmente quando a vida
que cresce nelas surgiu como resultado duma violência ou num contexto de
extrema pobreza. Quem pode deixar de compreender estas situações de tamanho
sofrimento?
215. Há outros seres
frágeis e indefesos, que muitas vezes ficam à mercê dos interesses económicos
ou dum uso indiscriminado. Refiro-me ao conjunto da criação. Nós, os seres
humanos, não somos meramente beneficiários, mas guardiões das outras criaturas.
Pela nossa realidade corpórea, Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que nos
rodeia, que a desertificação do solo é como uma doença para cada um, e podemos
lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma mutilação. Não deixemos
que, à nossa passagem, fiquem sinais de destruição e de morte que afectem a
nossa vida e a das gerações futuras. Neste sentido, faço meu o expressivo e
profético lamento que, já há vários anos, formularam os Bispos das Filipinas:
«Uma incrível variedade de insectos vivia no bosque; e estavam ocupados com
todo o tipo de tarefas. (...) Os pássaros voavam pelo ar, as suas penas
brilhantes e os seus variados gorjeios acrescentavam cor e melodia ao verde dos
bosques. (...) Deus quis que esta terra fosse para nós, suas criaturas
especiais, mas não para a podermos destruir ou transformar num baldio. (...)
Depois de uma única noite de chuva, observa os rios de castanho-chocolate da
tua localidade e lembra-te que estão a arrastar o sangue vivo da terra para o
mar. (...) Como poderão os peixes nadar em esgotos como o rio Pasig e muitos
outros rios que poluímos? Quem transformou o maravilhoso mundo marinho em
cemitérios subaquáticos despojados de vida e de cor?»
216. Pequenos mas
fortes no amor de Deus, como São Francisco de Assis, todos nós, cristãos, somos
chamados a cuidar da fragilidade do povo e do mundo em que vivemos.
3. O bem comum e
a paz social
217. Falámos muito
sobre a alegria e o amor, mas a Palavra de Deus menciona também o fruto da paz
(cf. Gal 5, 22).
218. A paz social
não pode ser entendida como irenismo ou como mera ausência de violência obtida
pela imposição de uma parte sobre as outras. Também seria uma paz falsa aquela
que servisse como desculpa para justificar uma organização social que silencie
ou tranquilize os mais pobres, de modo que aqueles que gozam dos maiores
benefícios possam manter o seu estilo de vida sem sobressaltos, enquanto os
outros sobrevivem como podem. As reivindicações sociais, que têm a ver com a
distribuição das entradas, a inclusão social dos pobres e os direitos humanos
não podem ser sufocados com o pretexto de construir um consenso de escritório
ou uma paz efémera para uma minoria feliz. A dignidade da pessoa humana e o bem
comum estão por cima da tranquilidade de alguns que não querem renunciar aos
seus privilégios. Quando estes valores são afectados, é necessária uma voz
profética.
219. E a paz também
«não se reduz a uma ausência de guerra, fruto do equilíbrio sempre precário das
forças. Constrói-se, dia a dia, na busca duma ordem querida por Deus, que traz
consigo uma justiça mais perfeita entre os homens». Enfim, uma paz que não
surja como fruto do desenvolvimento integral de todos, não terá futuro e será
sempre semente de novos conflitos e variadas formas de violência.
220. Em cada nação,
os habitantes desenvolvem a dimensão social da sua vida, configurando-se como
cidadãos responsáveis dentro de um povo e não como massa arrastada pelas forças
dominantes. Lembremo-nos que «ser cidadão fiel é uma virtude, e a participação
na vida política é uma obrigação moral». Mas, tornar-se um povo é
algo mais, exigindo um processo constante no qual cada nova geração está
envolvida. É um trabalho lento e árduo que exige querer integrar-se e aprender
a fazê-lo até se desenvolver uma cultura do encontro numa harmonia pluriforme.
221. Para avançar
nesta construção de um povo em paz, justiça e fraternidade, há quatro
princípios relacionados com tensões bipolares próprias de toda a realidade
social. Derivam dos grandes postulados da Doutrina Social da Igreja, que
constituem o «primeiro e fundamental parâmetro de referência para a
interpretação e o exame dos fenómenos sociais». À luz deles, desejo agora
propor estes quatro princípios que orientam especificamente o desenvolvimento
da convivência social e a construção de um povo onde as diferenças se
harmonizam dentro de um projecto comum. Faço-o na convicção de que a sua
aplicação pode ser um verdadeiro caminho para a paz dentro de cada nação e no
mundo inteiro.
O tempo é
superior ao espaço
222. Existe uma
tensão bipolar entre a plenitude e o limite. A plenitude gera a vontade de
possuir tudo, e o limite é o muro que nos aparece pela frente. O «tempo»,
considerado em sentido amplo, faz referimento à plenitude como expressão do
horizonte que se abre diante de nós, e o momento é expressão do limite que se
vive num espaço circunscrito. Os cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do
momento e a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro
como causa final que atrai. Daqui surge um primeiro princípio para progredir na
construção de um povo: o tempo é superior ao espaço.
223. Este princípio
permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão pelos resultados imediatos.
Ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis e hostis ou as mudanças de
planos que o dinamismo da realidade impõe. É um convite a assumir a tensão
entre plenitude e limite, dando prioridade ao tempo. Um dos pecados que, às
vezes, se nota na actividade sociopolítica é privilegiar os espaços de poder em
vez dos tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço leva-nos a proceder como
loucos para resolver tudo no momento presente, para tentar tomar posse de todos
os espaços de poder e autoafirmação. É cristalizar os processos e pretender
pará-los. Dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar
processos do que possuir espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e
transforma-os em elos duma cadeia em constante crescimento, sem marcha atrás.
Trata-se de privilegiar as acções que geram novos dinamismos na sociedade e
comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até frutificar em
acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras
e tenazes.
224. Às vezes
interrogo-me sobre quais são as pessoas que, no mundo actual, se preocupam
realmente mais com gerar processos que construam um povo do que com obter
resultados imediatos que produzam ganhos políticos fáceis, rápidos e efémeros,
mas que não constroem a plenitude humana. A história julgá-los-á talvez com
aquele critério enunciado por Romano Guardini: «O único padrão para avaliar
justamente uma época é perguntar-se até que ponto, nela, se desenvolve e
alcança uma autêntica razão de ser a plenitude da existência humana,
de acordo com o carácter peculiar e as possibilidades da dita
época».
225. Este critério é
muito apropriado também para a evangelização, que exige ter presente o
horizonte, adoptar os processos possíveis e a estrada longa. O próprio Senhor,
na sua vida mortal, deu a entender várias vezes aos seus discípulos que havia
coisas que ainda não podiam compreender e era necessário esperar o Espírito
Santo (cf. Jo 16, 12-13). A parábola do trigo e do joio
(cf. Mt 13, 24-30) descreve um aspecto importante de
evangelização que consiste em mostrar como o inimigo pode ocupar o espaço do
Reino e causar dano com o joio, mas é vencido pela bondade do trigo que se
manifesta com o tempo.
A unidade
prevalece sobre o conflito
226. O conflito não
pode ser ignorado ou dissimulado; deve ser aceitado. Mas, se ficamos
encurralados nele, perdemos a perspectiva, os horizontes reduzem-se e a própria
realidade fica fragmentada. Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o
sentido da unidade profunda da realidade.
227. Perante o
conflito, alguns limitam-se a olhá-lo e passam adiante como se nada fosse,
lavam-se as mãos para poder continuar com a sua vida. Outros entram de tal
maneira no conflito que ficam prisioneiros, perdem o horizonte, projectam nas
instituições as suas próprias confusões e insatisfações e, assim, a unidade torna-se
impossível. Mas há uma terceira forma, a mais adequada, de enfrentar o
conflito: é aceitar suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo no elo de
ligação de um novo processo. «Felizes os pacificadores» (Mt 5, 9)!
228. Deste modo,
torna-se possível desenvolver uma comunhão nas diferenças, que pode ser
facilitada só por pessoas magnânimas que têm a coragem de ultrapassar a
superfície conflitual e consideram os outros na sua dignidade mais profunda.
Por isso, é necessário postular um princípio que é indispensável para construir
a amizade social: a unidade é superior ao conflito. A solidariedade, entendida
no seu sentido mais profundo e desafiador, torna-se assim um estilo de
construção da história, um âmbito vital onde os conflitos, as tensões e os
opostos podem alcançar uma unidade multifacetada que gera nova vida. Não é
apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução num
plano superior que conserva em si as preciosas potencialidades das polaridades
em contraste.
229. Este critério
evangélico recorda-nos que Cristo tudo unificou em Si: céu e terra, Deus e
homem, tempo e eternidade, carne e espírito, pessoa e sociedade. O sinal
distintivo desta unidade e reconciliação de tudo n’Ele é a paz. Cristo «é a
nossa paz» (Ef 2, 14). O anúncio do Evangelho começa sempre com a
saudação de paz; e a paz coroa e cimenta em cada momento as relações entre os
discípulos. A paz é possível, porque o Senhor venceu o mundo e sua permanente
conflitualidade, «pacificando pelo sangue da sua cruz» (Col 1, 20).
Entretanto, se examinarmos a fundo estes textos bíblicos, descobriremos que o
primeiro âmbito onde somos chamados a conquistar esta pacificação nas
diferenças é a própria interioridade, a própria vida sempre ameaçada pela
dispersão dialéctica. Com corações despedaçados em milhares de fragmentos, será
difícil construir uma verdadeira paz social.
230. O anúncio de
paz não é a proclamação duma paz negociada, mas a convicção de que a unidade do
Espírito harmoniza todas as diversidades. Supera qualquer conflito numa nova e
promissora síntese. A diversidade é bela, quando aceita entrar constantemente
num processo de reconciliação até selar uma espécie de pacto cultural que faça
surgir uma «diversidade reconciliada», como justamente ensinaram os Bispos da
República Democrática do Congo: «A diversidade das nossas etnias é uma riqueza.
(…) Só com a unidade, a conversão dos corações e a reconciliação é que
poderemos fazer avançar o nosso país».
A realidade é
mais importante do que a ideia
231. Existe também
uma tensão bipolar entre a ideia e a realidade: a realidade simplesmente é, a
ideia elabora-se. Entre as duas, deve estabelecer-se um diálogo constante,
evitando que a ideia acabe por separar-se da realidade. É perigoso viver no
reino só da palavra, da imagem, do sofisma. Por isso, há que postular um
terceiro princípio: a realidade é superior à ideia. Isto supõe evitar várias
formas de ocultar a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do
relativo, os nominalismos declaracionistas, os projectos mais formais que
reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade, os
intelectualismos sem sabedoria.
232. A ideia – as
elaborações conceituais – está ao serviço da captação, compreensão e condução
da realidade. A ideia desligada da realidade dá origem a idealismos e
nominalismos ineficazes que, no máximo, classificam ou definem, mas não
empenham. O que empenha é a realidade iluminada pelo raciocínio. É preciso
passar do nominalismo formal à objectividade harmoniosa. Caso contrário,
manipula-se a verdade, do mesmo modo que se substitui a ginástica pela
cosmética. Há políticos – e também líderes religiosos – que se interrogam por
que motivo o povo não os compreende nem segue, se as suas propostas são tão lógicas
e claras. Possivelmente é porque se instalaram no reino das puras ideias e
reduziram a política ou a fé à retórica; outros esqueceram a simplicidade e
importaram de fora uma racionalidade alheia à gente.
233. A realidade é
superior à ideia. Este critério está ligado à encarnação da Palavra e ao seu
cumprimento: «Reconheceis que o espírito é de Deus por isto: todo o espírito
que confessa Jesus Cristo que veio em carne mortal é de Deus». (1 Jo 4,
2). O critério da realidade, duma Palavra já encarnada e sempre procurando
encarnar-se, é essencial à evangelização. Por um lado, leva-nos a valorizar a
história da Igreja como história de salvação, a recordar os nossos Santos que
inculturaram o Evangelho na vida dos nossos povos, a recolher a rica tradição
bimilenária da Igreja, sem pretender elaborar um pensamento desligado deste
tesouro como se quiséssemos inventar o Evangelho. Por outro lado, este critério
impele-nos a pôr em prática a Palavra, a realizar obras de justiça e caridade
nas quais se torne fecunda esta Palavra. Não pôr em prática, não levar à
realidade a Palavra é construir sobre a areia, permanecer na pura ideia e
degenerar em intimismos e gnosticismos que não dão fruto, que esterilizam o seu
dinamismo.
O todo é superior
à parte
234. Entre a
globalização e a localização também se gera uma tensão. É preciso prestar
atenção à dimensão global para não cair numa mesquinha quotidianidade. Ao mesmo
tempo convém não perder de vista o que é local, que nos faz caminhar com os pés
por terra. As duas coisas unidas impedem de cair em algum destes dois extremos:
o primeiro, que os cidadãos vivam num universalismo abstracto e globalizante,
miméticos passageiros do carro de apoio, admirando os fogos de artifício do
mundo, que é de outros, com a boca aberta e aplausos programados; o outro
extremo é que se transformem num museu folclórico de eremitas localistas,
condenados a repetir sempre as mesmas coisas, incapazes de se deixar interpelar
pelo que é diverso e de apreciar a beleza que Deus espalha fora das suas
fronteiras.
235. O todo é mais
do que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas. Portanto, não se
deve viver demasiado obcecados por questões limitadas e particulares. É preciso
alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que trará benefícios a
todos nós. Mas há que o fazer sem se evadir nem se desenraizar. É necessário
mergulhar as raízes na terra fértil e na história do próprio lugar, que é um
dom de Deus. Trabalha-se no pequeno, no que está próximo, mas com uma
perspectiva mais ampla. Da mesma forma, uma pessoa que conserva a sua
peculiaridade pessoal e não esconde a sua identidade, quando se integra
cordialmente numa comunidade não se aniquila, mas recebe sempre novos estímulos
para o seu próprio desenvolvimento. Não é a esfera global que aniquila, nem a
parte isolada que esteriliza.
236. Aqui o modelo
não é a esfera, pois não é superior às partes e, nela, cada ponto é
equidistante do centro, não havendo diferenças entre um ponto e o outro. O
modelo é o poliedro, que reflecte a confluência de todas as partes que nele
mantêm a sua originalidade. Tanto a acção pastoral como a acção política
procuram reunir nesse poliedro o melhor de cada um. Ali entram os pobres com a
sua cultura, os seus projectos e as suas próprias potencialidades. Até mesmo as
pessoas que possam ser criticadas pelos seus erros, têm algo a oferecer que não
se deve perder. É a união dos povos, que, na ordem universal, conservam a sua
própria peculiaridade; é a totalidade das pessoas numa sociedade que procura um
bem comum que verdadeiramente incorpore a todos.
237. A nós,
cristãos, este princípio fala-nos também da totalidade ou integridade do
Evangelho que a Igreja nos transmite e envia a pregar. A sua riqueza plena
incorpora académicos e operários, empresários e artistas, incorpora todos. A
«mística popular» acolhe, a seu modo, o Evangelho inteiro e encarna-o em
expressões de oração, de fraternidade, de justiça, de luta e de festa. A Boa
Nova é a alegria dum Pai que não quer que se perca nenhum dos seus pequeninos.
Assim nasce a alegria no Bom Pastor que encontra a ovelha perdida e a reintegra
no seu rebanho. O Evangelho é fermento que leveda toda a massa e cidade que
brilha no cimo do monte, iluminando todos os povos. O Evangelho possui um
critério de totalidade que lhe é intrínseco: não cessa de ser Boa Nova enquanto
não for anunciado a todos, enquanto não fecundar e curar todas as dimensões do
homem, enquanto não unir todos os homens à volta da mesa do Reino. O todo é
superior à parte.
4. O diálogo
social como contribuição para a paz
238. A evangelização
implica também um caminho de diálogo. Neste momento, existem sobretudo três
campos de diálogo onde a Igreja deve estar presente, cumprindo um serviço a favor
do pleno desenvolvimento do ser humano e procurando o bem comum: o diálogo com
os Estados, com a sociedade – que inclui o diálogo com as culturas e as
ciências – e com os outros crentes que não fazem parte da Igreja Católica. Em
todos os casos, «a Igreja fala a partir da luz que a fé lhe dá», oferece a sua
experiência de dois mil anos e conserva sempre na memória as vidas e
sofrimentos dos seres humanos. Isto ultrapassa a razão humana, mas também tem
um significado que pode enriquecer a quantos não crêem e convida a razão a
alargar as suas perspectivas.
239. A Igreja
proclama o «evangelho da paz» (Ef 6, 15) e está aberta à
colaboração com todas as autoridades nacionais e internacionais para cuidar
deste bem universal tão grande. Ao anunciar Jesus Cristo, que é a paz em pessoa
(cf. Ef 2, 14), a nova evangelização incentiva todo o
baptizado a ser instrumento de pacificação e testemunha credível duma vida
reconciliada. É hora de saber como projectar, numa cultura que privilegie o
diálogo como forma de encontro, a busca de consenso e de acordos mas sem a
separar da preocupação por uma sociedade justa, capaz de memória e sem
exclusões. O autor principal, o sujeito histórico deste processo, é a gente e a
sua cultura, não uma classe, uma fracção, um grupo, uma elite. Não precisamos
de um projecto de poucos para poucos, ou de uma minoria esclarecida ou
testemunhal que se aproprie de um sentimento colectivo. Trata-se de um acordo
para viver juntos, de um pacto social e cultural.
240. O cuidado e a
promoção do bem comum da sociedade compete ao Estado. Este, com base nos
princípios de subsidiariedade e solidariedade e com um grande esforço de
diálogo político e criação de consensos, desempenha um papel fundamental – que
não pode ser delegado – na busca do desenvolvimento integral de todos. Este
papel exige, nas circunstâncias actuais, uma profunda humildade social.
241. No diálogo com
o Estado e com a sociedade, a Igreja não tem soluções para todas as questões
específicas. Mas, juntamente com as várias forças sociais, acompanha as
propostas que melhor correspondam à dignidade da pessoa humana e ao bem comum.
Ao fazê-lo, propõe sempre com clareza os valores fundamentais da existência
humana, para transmitir convicções que possam depois traduzir-se em acções
políticas.
O diálogo entre a
fé, a razão e as ciências
242. O diálogo entre
ciência e fé também faz parte da acção evangelizadora que favorece a paz. O
cientificismo e o positivismo recusam-se a «admitir, como válidas, formas de
conhecimento distintas daquelas que são próprias das ciências positivas». A
Igreja propõe outro caminho, que exige uma síntese entre um uso responsável das
metodologias próprias das ciências empíricas e os outros saberes como a
filosofia, a teologia, e a própria fé que eleva o ser humano até ao mistério
que transcende a natureza e a inteligência humana. A fé não tem medo da razão;
pelo contrário, procura-a e tem confiança nela, porque «a luz da razão e a luz
da fé provêm ambas de Deus», e não se podem contradizer entre si. A
evangelização está atenta aos progressos científicos para os iluminar com a luz
da fé e da lei natural, tendo em vista procurar que sempre respeitem a
centralidade e o valor supremo da pessoa humana em todas as fases da sua
existência. Toda a sociedade pode ser enriquecida através deste diálogo que
abre novos horizontes ao pensamento e amplia as possibilidades da razão. Também
este é um caminho de harmonia e pacificação.
243. A Igreja não
pretende deter o progresso admirável das ciências. Pelo contrário, alegra-se e
inclusivamente desfruta reconhecendo o enorme potencial que Deus deu à mente
humana. Quando o progresso das ciências, mantendo-se com rigor académico no
campo do seu objecto específico, torna evidente uma determinada conclusão que a
razão não pode negar, a fé não a contradiz. Nem os crentes podem pretender que
uma opinião científica que lhes agrada – e que nem sequer foi suficientemente
comprovada – adquira o peso dum dogma de fé. Em certas ocasiões, porém, alguns
cientistas vão mais além do objecto formal da sua disciplina e exageram com
afirmações ou conclusões que extravasam o campo da própria ciência. Neste caso,
não é a razão que se propõe, mas uma determinada ideologia que fecha o caminho
a um diálogo autêntico, pacífico e frutuoso.
O diálogo
ecuménico
244. O compromisso
ecuménico corresponde à oração do Senhor Jesus pedindo «que todos sejam um só»
(Jo 17, 21). A credibilidade do anúncio cristão seria muito maior,
se os cristãos superassem as suas divisões e a Igreja realizasse «a plenitude
da catolicidade que lhe é própria naqueles filhos que, embora incorporados pelo
Baptismo, estão separados da sua plena comunhão». Devemos sempre lembrar-nos de
que somos peregrinos, e peregrinamos juntos. Para isso, devemos abrir o coração
ao companheiro de estrada sem medos nem desconfianças, e olhar primariamente
para o que procuramos: a paz no rosto do único Deus. O abrir-se ao outro tem
algo de artesanal, a paz é artesanal. Jesus disse-nos: «Felizes os
pacificadores» (Mt 5, 9). Neste esforço, mesmo entre nós, cumpre-se
a antiga profecia: «Transformarão as suas espadas em relhas de arado» (Is 2,
4).
245. Sob esta luz, o
ecumenismo é uma contribuição para a unidade da família humana. A presença no
Sínodo do Patriarca de Constantinopla, Sua Santidade Bartolomeu I, e do Arcebispo
de Cantuária, Sua Graça Rowan Douglas Williams, foi um verdadeiro dom de Deus e
um precioso testemunho cristão.
246. Dada a
gravidade do contra-testemunho da divisão entre cristãos, sobretudo na Ásia e
na África, torna-se urgente a busca de caminhos de unidade. Os missionários,
nesses continentes, referem repetidamente as críticas, queixas e sarcasmos que
recebem por causa do escândalo dos cristãos divididos. Se nos concentrarmos nas
convicções que nos unem e recordarmos o princípio da hierarquia das verdades,
poderemos caminhar decididamente para formas comuns de anúncio, de serviço e de
testemunho. A imensa multidão que não recebeu o anúncio de Jesus Cristo não
pode deixar-nos indiferentes. Por isso, o esforço por uma unidade que facilite
a recepção de Jesus Cristo deixa de ser mera diplomacia ou um dever forçado
para se transformar num caminho imprescindível da evangelização. Os sinais de
divisão entre cristãos, em países que já estão dilacerados pela violência,
juntam outros motivos de conflito vindos da parte de quem deveria ser um activo
fermento de paz. São tantas e tão valiosas as coisas que nos unem! E, se
realmente acreditamos na acção livre e generosa do Espírito, quantas coisas
podemos aprender uns dos outros! Não se trata apenas de receber informações
sobre os outros para os conhecermos melhor, mas de recolher o que o Espírito
semeou neles como um dom também para nós. Só para dar um exemplo, no diálogo
com os irmãos ortodoxos, nós, os católicos, temos a possibilidade de aprender
algo mais sobre o significado da colegialidade episcopal e sobre a sua
experiência da sinodalidade. Através dum intercâmbio de dons, o Espírito pode
conduzir-nos cada vez mais para a verdade e o bem.
As relações com o
Judaísmo
247. Um olhar muito
especial é dirigido ao povo judeu, cuja Aliança com Deus nunca foi revogada,
porque «os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis» (Rm 11,
29). A Igreja, que partilha com o Judaísmo uma parte importante das Escrituras
Sagradas, considera o povo da Aliança e a sua fé como uma raiz sagrada da
própria identidade cristã (cf. Rm 11, 16-18). Como cristãos,
não podemos considerar o Judaísmo como uma religião alheia, nem incluímos os
judeus entre quantos são chamados a deixar os ídolos para se converter ao
verdadeiro Deus (cf.1 Ts 1, 9). Juntamente com eles, acreditamos no
único Deus que actua na história, e acolhemos, com eles, a Palavra revelada
comum.
248. O diálogo e a
amizade com os filhos de Israel fazem parte da vida dos discípulos de Jesus. O
afecto que se desenvolveu leva-nos a lamentar, sincera e amargamente, as
terríveis perseguições de que foram e são objecto, particularmente aquelas que
envolvem ou envolveram cristãos.
249. Deus continua a
operar no povo da Primeira Aliança e faz nascer tesouros de sabedoria que brotam
do seu encontro com a Palavra divina. Por isso, a Igreja também se enriquece
quando recolhe os valores do Judaísmo. Embora algumas convicções cristãs sejam
inaceitáveis para o Judaísmo e a Igreja não possa deixar de anunciar Jesus como
Senhor e Messias, há uma rica complementaridade que nos permite ler juntos os
textos da Bíblia hebraica e ajudar-nos mutuamente a desentranhar as riquezas da
Palavra, bem como compartilhar muitas convicções éticas e a preocupação comum
pela justiça e o desenvolvimento dos povos.
O diálogo
inter-religioso
250. Uma atitude de
abertura na verdade e no amor deve caracterizar o diálogo com os crentes das
religiões não-cristãs, apesar dos vários obstáculos e dificuldades, de modo
particular os fundamentalismos de ambos os lados. Este diálogo inter-religioso
é uma condição necessária para a paz no mundo e, por conseguinte, é um dever
para os cristãos e também para outras comunidades religiosas. Este diálogo é,
em primeiro lugar, uma conversa sobre a vida humana ou simplesmente – como
propõem os Bispos da Índia – «estar aberto a eles, compartilhando as suas
alegrias e penas». Assim aprendemos a aceitar os outros, na sua maneira
diferente de ser, de pensar e de se exprimir. Com este método, poderemos
assumir juntos o dever de servir a justiça e a paz, que deverá tornar-se um
critério básico de todo o intercâmbio. Um diálogo, no qual se procurem a paz e
a justiça social, é em si mesmo, para além do aspecto meramente pragmático, um
compromisso ético que cria novas condições sociais. Os esforços à volta dum
tema específico podem transformar-se num processo em que, através da escuta do
outro, ambas as partes encontram purificação e enriquecimento. Portanto, estes
esforços também podem ter o significado de amor à verdade.
251. Neste diálogo,
sempre amável e cordial, nunca se deve descuidar o vínculo essencial entre
diálogo e anúncio, que leva a Igreja a manter e intensificar as relações com os
não-cristãos. Um sincretismo conciliador seria, no fundo, um totalitarismo de
quantos pretendem conciliar prescindindo de valores que os transcendem e dos
quais não são donos. A verdadeira abertura implica conservar-se firme nas
próprias convicções mais profundas, com uma identidade clara e feliz, mas
«disponível para compreender as do outro» e «sabendo que o diálogo pode
enriquecer a ambos». Não nos serve uma abertura diplomática que diga sim a tudo
para evitar problemas, porque seria um modo de enganar o outro e negar-lhe o
bem que se recebeu como um dom para partilhar com generosidade. Longe de se
contraporem, a evangelização e o diálogo inter-religioso apoiam-se e
alimentam-se reciprocamente.
252. Neste tempo,
adquire grande importância a relação com os crentes do Islão, hoje
particularmente presentes em muitos países de tradição cristã, onde podem
celebrar livremente o seu culto e viver integrados na sociedade. Não se deve
jamais esquecer que eles «professam seguir a fé de Abraão, e connosco adoram o
Deus único e misericordioso, que há-de julgar os homens no último dia». Os
escritos sagrados do Islão conservam parte dos ensinamentos cristãos; Jesus
Cristo e Maria são objecto de profunda veneração e é admirável ver como jovens
e idosos, mulheres e homens do Islão são capazes de dedicar diariamente tempo à
oração e participar fielmente nos seus ritos religiosos. Ao mesmo tempo, muitos
deles têm uma profunda convicção de que a própria vida, na sua totalidade, é de
Deus e para Deus. Reconhecem também a necessidade de Lhe responder com um
compromisso ético e com a misericórdia para com os mais pobres.
253. Para sustentar
o diálogo com o Islão é indispensável a adequada formação dos interlocutores,
não só para que estejam sólida e jubilosamente radicados na sua identidade, mas
também para que sejam capazes de reconhecer os valores dos outros, compreender
as preocupações que subjazem às suas reivindicações e fazer aparecer as
convicções comuns. Nós, cristãos, deveríamos acolher com afecto e respeito os
imigrantes do Islão que chegam aos nossos países, tal como esperamos e pedimos
para ser acolhidos e respeitados nos países de tradição islâmica. Rogo, imploro
humildemente a esses países que assegurem liberdade aos cristãos para poderem
celebrar o seu culto e viver a sua fé, tendo em conta a liberdade que os
crentes do Islão gozam nos países ocidentais. Frente a episódios de
fundamentalismo violento que nos preocupam, o afecto pelos verdadeiros crentes
do Islão deve levar-nos a evitar odiosas generalizações, porque o verdadeiro
Islão e uma interpretação adequada do Alcorão opõem-se a toda a violência.
254. Os não-cristãos
fiéis à sua consciência podem, por gratuita iniciativa divina, viver
«justificados por meio da graça de Deus» e, assim, «associados ao mistério
pascal de Jesus Cristo». Devido, porém, à dimensão sacramental da graça
santificante, a acção divina neles tende a produzir sinais, ritos, expressões
sagradas que, por sua vez, envolvem outros numa experiência comunitária do
caminho para Deus. Não têm o significado e a eficácia dos Sacramentos
instituídos por Cristo, mas podem ser canais que o próprio Espírito suscita
para libertar os não-cristãos do imanentismo ateu ou de experiências religiosas
meramente individuais. O mesmo Espírito suscita por toda a parte diferentes
formas de sabedoria prática que ajudam a suportar as carências da vida e a viver
com mais paz e harmonia. Nós, cristãos, podemos tirar proveito também desta
riqueza consolidada ao longo dos séculos, que nos pode ajudar a viver melhor as
nossas próprias convicções.
O diálogo social
num contexto de liberdade religiosa
255. Os Padres sinodais
lembraram a importância do respeito pela liberdade religiosa, considerada um
direito humano fundamental. Inclui «a liberdade de escolher a religião que se
crê ser verdadeira e de manifestar publicamente a própria crença». Um são
pluralismo, que respeite verdadeiramente aqueles que pensam diferente e os
valorizem como tais, não implica uma privatização das religiões, com a
pretensão de as reduzir ao silêncio e à obscuridade da consciência de cada um
ou à sua marginalização no recinto fechado das igrejas, sinagogas ou mesquitas.
Tratar-se-ia, em definitivo, de uma nova forma de discriminação e
autoritarismo. O respeito devido às minorias de agnósticos ou de não-crentes
não se deve impor de maneira arbitrária que silencie as convicções de maiorias
crentes ou ignore a riqueza das tradições religiosas. No fundo, isso fomentaria
mais o ressentimento do que a tolerância e a paz.
256. Ao
questionar-se sobre a incidência pública da religião, é preciso distinguir
diferentes modos de a viver. Tanto os intelectuais como os jornalistas caem,
frequentemente, em generalizações grosseiras e pouco académicas, quando falam
dos defeitos das religiões e, muitas vezes, não são capazes de distinguir que
nem todos os crentes – nem todos os líderes religiosos – são iguais. Alguns
políticos aproveitam esta confusão para justificar acções discriminatórias.
Outras vezes, desprezam-se os escritos que surgiram no âmbito duma convicção
crente, esquecendo que os textos religiosos clássicos podem oferecer um
significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora que abre sempre
novos horizontes, estimula o pensamento, engrandece a mente e a sensibilidade.
São desprezados pela miopia dos racionalismos. Será razoável e inteligente
relegá-los para a obscuridade, só porque nasceram no contexto duma crença
religiosa? Contêm princípios profundamente humanistas que possuem um valor
racional, apesar de estarem permeados de símbolos e doutrinas religiosos.
257. Como crentes,
sentimo-nos próximo também de todos aqueles que, não se reconhecendo parte de
qualquer tradição religiosa, buscam sinceramente a verdade, a bondade e a
beleza, que, para nós, têm a sua máxima expressão e a sua fonte em Deus.
Sentimo-los como preciosos aliados no compromisso pela defesa da dignidade
humana, na construção duma convivência pacífica entre os povos e na guarda da
criação. Um espaço peculiar é o dos chamados novos Areópagos, como
o «Átrio dos Gentios», onde «crentes e não-crentes podem dialogar sobre os
temas fundamentais da ética, da arte e da ciência, e sobre a busca da
transcendência». Também este é um caminho de paz para o nosso mundo ferido.
258. A partir de
alguns temas sociais, importantes para o futuro da humanidade, procurei
explicitar uma vez mais a incontornável dimensão social do anúncio do Evangelho,
para encorajar todos os cristãos a manifestá-la sempre nas suas palavras,
atitudes e acções.
Capítulo V
EVANGELIZADORES COM
ESPÍRITO
259. Evangelizadores
com espírito quer dizer evangelizadores que se abrem sem medo à acção do
Espírito Santo. No Pentecostes, o Espírito faz os Apóstolos saírem de si mesmos
e transforma-os em anunciadores das maravilhas de Deus, que cada um começa a
entender na própria língua. Além disso, o Espírito Santo infunde a força para
anunciar a novidade do Evangelho com ousadia (parresia), em voz alta e
em todo o tempo e lugar, mesmo contra-corrente. Invoquemo-Lo hoje, bem apoiados
na oração, sem a qual toda a acção corre o risco de ficar vã e o anúncio, no
fim de contas, carece de alma. Jesus quer evangelizadores que anunciem a Boa
Nova, não só com palavras mas sobretudo com uma vida transfigurada pela
presença de Deus.
260. Neste último
capítulo, não vou oferecer uma síntese da espiritualidade cristã, nem
desenvolverei grandes temas como a oração, a adoração eucarística ou a
celebração da fé, sobre os quais já possuímos preciosos textos do Magistério e
escritos célebres de grandes autores. Não pretendo substituir nem superar tanta
riqueza. Limitar-me-ei simplesmente a propor algumas reflexões acerca do
espírito da nova evangelização.
261. Quando se diz
de uma realidade que tem «espírito», indica-se habitualmente uma moção interior
que impele, motiva, encoraja e dá sentido à acção pessoal e comunitária. Uma
evangelização com espírito é muito diferente de um conjunto de tarefas vividas
como uma obrigação pesada, que quase não se tolera ou se suporta como algo que
contradiz as nossas próprias inclinações e desejos. Como gostaria de encontrar
palavras para encorajar uma estação evangelizadora mais ardorosa, alegre,
generosa, ousada, cheia de amor até ao fim e feita de vida contagiante! Mas sei
que nenhuma motivação será suficiente, se não arde nos corações o fogo do
Espírito. Em suma, uma evangelização com espírito é uma evangelização com o
Espírito Santo, já que Ele é a alma da Igreja evangelizadora. Antes de propor
algumas motivações e sugestões espirituais, invoco uma vez mais o Espírito
Santo; peço-Lhe que venha renovar, sacudir, impelir a Igreja numa decidida
saída para fora de si mesma a fim de evangelizar todos os povos.
1. Motivações
para um renovado impulso missionário
262. Evangelizadores
com espírito quer dizer evangelizadores que rezam e trabalham. Do ponto de
vista da evangelização, não servem as propostas místicas desprovidas de um
vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e acções sociais e
pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração. Estas propostas
parciais e desagregadoras alcançam só pequenos grupos e não têm força de ampla
penetração, porque mutilam o Evangelho. É preciso cultivar sempre um espaço
interior que dê sentido cristão ao compromisso e à actividade. Sem momentos prolongados
de adoração, de encontro orante com a Palavra, de diálogo sincero com o Senhor,
as tarefas facilmente se esvaziam de significado, quebrantamo-nos com o cansaço
e as dificuldades, e o ardor apaga-se. A Igreja não pode dispensar o pulmão da
oração, e alegra-me imenso que se multipliquem, em todas as instituições
eclesiais, os grupos de oração, de intercessão, de leitura orante da Palavra,
as adorações perpétuas da Eucaristia. Ao mesmo tempo, «há que rejeitar a
tentação duma espiritualidade intimista e individualista, que dificilmente se
coaduna com as exigências da caridade, com a lógica da encarnação». Há o risco
de que alguns momentos de oração se tornem uma desculpa para evitar de dedicar
a vida à missão, porque a privatização do estilo de vida pode levar os cristãos
a refugiarem-se nalguma falsa espiritualidade.
263. É salutar
recordar-se dos primeiros cristãos e de tantos irmãos ao longo da história que
se mantiveram transbordantes de alegria, cheios de coragem, incansáveis no
anúncio e capazes de uma grande resistência activa. Há quem se console, dizendo
que hoje é mais difícil; temos, porém, de reconhecer que o contexto do Império
Romano não era favorável ao anúncio do Evangelho, nem à luta pela justiça, nem
à defesa da dignidade humana. Em cada momento da história, estão presentes a
fraqueza humana, a busca doentia de si mesmo, a comodidade egoísta e, enfim, a
concupiscência que nos ameaça a todos. Isto está sempre presente, sob uma
roupagem ou outra; deriva mais da limitação humana que das circunstâncias. Por
isso, não digamos que hoje é mais difícil; é diferente. Em vez disso,
aprendamos com os Santos que nos precederam e enfrentaram as dificuldades
próprias do seu tempo. Com esta finalidade, proponho-vos que nos detenhamos a
recuperar algumas motivações que nos ajudem a imitá-los nos nossos dias.
O encontro
pessoal com o amor de Jesus que nos salva
264. A primeira
motivação para evangelizar é o amor que recebemos de Jesus, aquela experiência
de sermos salvos por Ele que nos impele a amá-Lo cada vez mais. Com efeito, um
amor que não sentisse a necessidade de falar da pessoa amada, de a apresentar,
de a tornar conhecida, que amor seria? Se não sentimos o desejo intenso de
comunicar Jesus, precisamos de nos deter em oração para Lhe pedir que volte a
cativar-nos. Precisamos de o implorar cada dia, pedir a sua graça para que abra
o nosso coração frio e sacuda a nossa vida tíbia e superficial. Colocados
diante d’Ele com o coração aberto, deixando que Ele nos olhe, reconhecemos
aquele olhar de amor que descobriu Natanael no dia em que Jesus Se fez presente
e lhe disse: «Eu vi-te, quando estavas debaixo da figueira!» (Jo 1,
48). Como é doce permanecer diante dum crucifixo ou de joelhos diante do
Santíssimo Sacramento, e fazê-lo simplesmente para estar à frente dos seus
olhos! Como nos faz bem deixar que Ele volte a tocar a nossa vida e nos envie
para comunicar a sua vida nova! Sucede então que, em última análise, «o que nós
vimos e ouvimos, isso anunciamos» (1 Jo 1, 3). A melhor motivação
para se decidir a comunicar o Evangelho é contemplá-lo com amor, é deter-se nas
suas páginas e lê-lo com o coração. Se o abordamos desta maneira, a sua beleza
deslumbra-nos, volta a cativar-nos vezes sem conta. Por isso, é urgente
recuperar um espírito contemplativo, que nos permita redescobrir,
cada dia, que somos depositários dum bem que humaniza, que ajuda a levar uma
vida nova. Não há nada de melhor para transmitir aos outros.
265. Toda a vida de
Jesus, a sua forma de tratar os pobres, os seus gestos, a sua coerência, a sua
generosidade simples e quotidiana e, finalmente, a sua total dedicação, tudo é
precioso e fala à nossa vida pessoal. Todas as vezes que alguém volta a
descobri-lo, convence-se de que é isso mesmo o que os outros precisam, embora
não o saibam: «Aquele que venerais sem O conhecer, é Esse que eu vos anuncio» (Act 17,
23). Às vezes perdemos o entusiasmo pela missão, porque esquecemos que o
Evangelho dá resposta às necessidades mais profundas das
pessoas, porque todos fomos criados para aquilo que o Evangelho nos propõe: a
amizade com Jesus e o amor fraterno. Quando se consegue exprimir, de forma
adequada e bela, o conteúdo essencial do Evangelho, de certeza que essa
mensagem fala aos anseios mais profundos do coração: «O missionário está
convencido de que existe já, nas pessoas e nos povos, pela acção do Espírito,
uma ânsia – mesmo se inconsciente – de conhecer a verdade acerca de Deus, do
homem, do caminho que conduz à liberação do pecado e da morte. O entusiasmo
posto no anúncio de Cristo deriva da convicção de responder a tal ânsia».
O entusiasmo na
evangelização funda-se nesta convicção. Temos à disposição um tesouro de vida e
de amor que não pode enganar, a mensagem que não pode manipular nem desiludir.
É uma resposta que desce ao mais fundo do ser humano e pode sustentá-lo e
elevá-lo. É a verdade que não passa de moda, porque é capaz de penetrar onde
nada mais pode chegar. A nossa tristeza infinita só se cura com um amor
infinito.
266. Esta convicção,
porém, é sustentada com a experiência pessoal, constantemente renovada, de
saborear a sua amizade e a sua mensagem. Não se pode perseverar numa
evangelização cheia de ardor, se não se está convencido, por experiência
própria, que não é a mesma coisa ter conhecido Jesus ou não O conhecer, não é a
mesma coisa caminhar com Ele ou caminhar tacteando, não é a mesma coisa poder
escutá-Lo ou ignorar a sua Palavra, não é a mesma coisa poder contemplá-Lo,
adorá-Lo, descansar n’Ele ou não o poder fazer. Não é a mesma coisa procurar
construir o mundo com o seu Evangelho em vez de o fazer unicamente com a
própria razão. Sabemos bem que a vida com Jesus se torna muito mais plena e,
com Ele, é mais fácil encontrar o sentido para cada coisa. É por isso que
evangelizamos. O verdadeiro missionário, que não deixa jamais de ser discípulo,
sabe que Jesus caminha com ele, fala com ele, respira com ele, trabalha com
ele. Sente Jesus vivo com ele, no meio da tarefa missionária. Se uma pessoa não
O descobre presente no coração mesmo da entrega missionária, depressa perde o
entusiasmo e deixa de estar seguro do que transmite, faltam-lhe força e paixão.
E uma pessoa que não está convencida, entusiasmada, segura, enamorada, não
convence ninguém.
267. Unidos a Jesus,
procuramos o que Ele procura, amamos o que Ele ama. Em última instância, o que
procuramos é a glória do Pai, vivemos e agimos «para que seja prestado louvor à
glória da sua graça» (Ef 1, 6). Se queremos entregar-nos a sério e
com perseverança, esta motivação deve superar toda e qualquer outra. O movente
definitivo, o mais profundo, o maior, a razão e o sentido último de tudo o
resto é este: a glória do Pai que Jesus procurou durante toda a sua existência.
Ele é o Filho eternamente feliz, com todo o seu ser «no seio do Pai» (Jo 1,
18). Se somos missionários, antes de tudo é porque Jesus nos disse: «A glória
do meu Pai [consiste] em que deis muito fruto» (Jo 15, 8).
Independentemente de que nos convenha, interesse, aproveite ou não, para além
dos estreitos limites dos nossos desejos, da nossa compreensão e das nossas motivações,
evangelizamos para a maior glória do Pai que nos ama.
O prazer
espiritual de ser povo
268. A Palavra de
Deus convida-nos também a reconhecer que somos povo: «Vós que outrora não éreis
um povo, agora sois povo de Deus» (1 Pd 2, 10). Para ser evangelizadores
com espírito é preciso também desenvolver o prazer espiritual de estar próximo
da vida das pessoas, até chegar a descobrir que isto se torna fonte duma
alegria superior. A missão é uma paixão por Jesus, e simultaneamente uma paixão
pelo seu povo. Quando paramos diante de Jesus crucificado, reconhecemos todo o
seu amor que nos dignifica e sustenta, mas lá também, se não formos cegos,
começamos a perceber que este olhar de Jesus se alonga e dirige, cheio de
afecto e ardor, a todo o seu povo. Lá descobrimos novamente que Ele quer
servir-Se de nós para chegar cada vez mais perto do seu povo amado. Toma-nos do
meio do povo e envia-nos ao povo, de tal modo que a nossa identidade não se
compreende sem esta pertença.
269. O próprio Jesus
é o modelo desta opção evangelizadora que nos introduz no coração do povo. Como
nos faz bem vê-Lo perto de todos! Se falava com alguém, fitava os seus olhos
com uma profunda solicitude cheia de amor: «Jesus, fitando nele o olhar, sentiu
afeição por ele» (Mc 10, 21). Vemo-Lo disponível ao encontro,
quando manda aproximar-se o cego do caminho (cf. Mc 10, 46-52)
e quando come e bebe com os pecadores (cf. Mc 2, 16), sem Se
importar que O chamem de glutão e beberrão (cf. Mt 11, 19).
Vemo-Lo disponível, quando deixa uma prostituta ungir-Lhe os pés (cf. Lc 7,
36-50) ou quando recebe, de noite, Nicodemos (cf. Jo 3, 1-21).
A entrega de Jesus na cruz é apenas o culminar deste estilo que marcou toda a
sua vida. Fascinados por este modelo, queremos inserir-nos a fundo na
sociedade, partilhamos a vida com todos, ouvimos as suas preocupações,
colaboramos material e espiritualmente nas suas necessidades, alegramo-nos com
os que estão alegres, choramos com os que choram e comprometemo-nos na
construção de um mundo novo, lado a lado com os outros. Mas não por obrigação,
nem como um peso que nos desgasta, mas como uma opção pessoal que nos enche de
alegria e nos dá uma identidade.
270. Às vezes
sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente distância das chagas
do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne
sofredora dos outros. Espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos
pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama
humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com a vida
concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida
complica-se sempre maravilhosamente e vivemos a intensa experiência de ser
povo, a experiência de pertencer a um povo.
271. É verdade que,
na nossa relação com o mundo, somos convidados a dar razão da nossa esperança,
mas não como inimigos que apontam o dedo e condenam. A advertência é muito clara:
fazei-o «com mansidão e respeito» (1 Pd 3, 16) e «tanto quanto for
possível e de vós dependa, vivei em paz com todos os homens» (Rm 12,
18). E somos incentivados também a vencer «o mal com o bem» (Rm 12,
21), sem nos cansarmos de «fazer o bem» (Gal 6, 9) e sem
pretendermos aparecer como superiores, antes «considerai os outros superiores a
vós próprios» (Fl 2, 3). Na realidade, os Apóstolos do Senhor
«tinham a simpatia de todo o povo» (Act 2, 47; cf. 4, 21.33; 5,
13). Está claro que Jesus não nos quer como príncipes que olham
desdenhosamente, mas como homens e mulheres do povo. Esta não é a opinião de um
Papa, nem uma opção pastoral entre várias possíveis; são indicações da Palavra
de Deus tão claras, directas e contundentes, que não precisam de interpretações
que as despojariam da sua força interpeladora. Vivamo-las sine glossa,
sem comentários. Assim, experimentaremos a alegria missionária de partilhar a
vida com o povo fiel de Deus, procurando acender o fogo no coração do mundo.
272. O amor às
pessoas é uma força espiritual que favorece o encontro em plenitude com Deus, a
ponto de se dizer, de quem não ama o irmão, que «está nas trevas e nas trevas
caminha» (1 Jo 2, 11), «permanece na morte» (1 Jo 3,
14) e «não chegou a conhecer a Deus» (1 Jo 4, 8). Bento XVI disse
que «fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus», e
que o amor é fundamentalmente a única luz que «ilumina
incessantemente um mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e agir».
Portanto, quando vivemos a mística de nos aproximar dos outros com a intenção
de procurar o seu bem, ampliamos o nosso interior para receber os mais belos
dons do Senhor. Cada vez que nos encontramos com um ser humano no amor, ficamos
capazes de descobrir algo de novo sobre Deus. Cada vez que os nossos olhos se
abrem para reconhecer o outro, ilumina-se mais a nossa fé para reconhecer a
Deus. Em consequência disto, se queremos crescer na vida espiritual, não
podemos renunciar a ser missionários. A tarefa da evangelização enriquece a
mente e o coração, abre-nos horizontes espirituais, torna-nos mais sensíveis
para reconhecer a acção do Espírito, faz-nos sair dos nossos esquemas
espirituais limitados. Ao mesmo tempo, um missionário plenamente devotado ao
seu trabalho experimenta o prazer de ser um manancial que transborda e refresca
os outros. Só pode ser missionário quem se sente bem procurando o bem do
próximo, desejando a felicidade dos outros. Esta abertura do coração é fonte de
felicidade, porque «a felicidade está mais em dar do que em receber» (Act 20,
35). Não se vive melhor fugindo dos outros, escondendo-se, negando-se a
partilhar, resistindo a dar, fechando-se na comodidade. Isto não é senão um
lento suicídio.
273. A missão no
coração do povo não é uma parte da minha vida, ou um ornamento que posso pôr de
lado; não é um apêndice ou um momento entre tantos outros da minha vida. É algo
que não posso arrancar do meu ser, se não me quero destruir. Eu sou uma
missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. É preciso
considerarmo-nos como que marcados a fogo por esta missão de iluminar,
abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar. Nisto se revela a enfermeira
autêntica , o professor autêntico, o político autêntico, aqueles que decidiram,
no mais íntimo do seu ser, estar com os outros e ser para os outros. Mas, se
uma pessoa coloca a tarefa dum lado e a vida privada do outro, tudo se torna
cinzento e viverá continuamente à procura de reconhecimentos ou defendendo as
suas próprias exigências. Deixará de ser povo.
274. Para partilhar
a vida com a gente e dar-nos generosamente, precisamos de reconhecer também que
cada pessoa é digna da nossa dedicação. E não pelo seu aspecto físico, suas
capacidades, sua linguagem, sua mentalidade ou pelas satisfações que nos pode
dar, mas porque é obra de Deus, criatura sua. Ele criou-a à sua imagem, e
reflecte algo da sua glória. Cada ser humano é objecto da ternura infinita do
Senhor, e Ele mesmo habita na sua vida. Na cruz, Jesus Cristo deu o seu sangue
precioso por essa pessoa. Independentemente da aparência, cada um é imensamente
sagrado e merece o nosso afecto e a nossa dedicação. Por isso, se consigo
ajudar uma só pessoa a viver melhor, isso já justifica o dom da minha vida. É
maravilhoso ser povo fiel de Deus. E ganhamos plenitude, quando derrubamos os muros
e o coração se enche de rostos e de nomes!
A acção
misteriosa do Ressuscitado e do seu Espírito
275. No terceiro
capítulo, reflectimos sobre a carência de espiritualidade profunda que se
traduz no pessimismo, no fatalismo, na desconfiança. Algumas pessoas não se
dedicam à missão, porque crêem que nada pode mudar e assim, segundo elas, é
inútil esforçar-se. Pensam: «Para quê privar-me das minhas comodidades e
prazeres, se não vejo algum resultado importante?» Com esta mentalidade,
torna-se impossível ser missionário. Esta atitude é precisamente uma desculpa
maligna para continuar fechado na própria comodidade, na preguiça, na tristeza
insatisfeita, no vazio egoísta. Trata-se de uma atitude autodestrutiva, porque
«o homem não pode viver sem esperança: a sua vida, condenada à insignificância,
tornar-se-ia insuportável». No caso de pensarmos que as coisas não vão mudar,
recordemos que Jesus Cristo triunfou sobre o pecado e a morte e possui todo o
poder. Jesus Cristo vive verdadeiramente. Caso contrário, «se Cristo não
ressuscitou, é vã a nossa pregação» (1 Cor 15, 14). Diz-nos o
Evangelho que, quando os primeiros discípulos saíram a pregar, «o Senhor
cooperava com eles, confirmando a Palavra» (Mc 16, 20). E o mesmo
acontece hoje. Somos convidados a descobri-lo, a vivê-lo. Cristo ressuscitado e
glorioso é a fonte profunda da nossa esperança, e não nos faltará a sua ajuda
para cumprir a missão que nos confia.
276. A sua
ressurreição não é algo do passado; contém uma força de vida que penetrou o
mundo. Onde parecia que tudo morreu, voltam a aparecer por todo o lado os
rebentos da ressurreição. É uma força sem igual. É verdade que muitas vezes
parece que Deus não existe: vemos injustiças, maldades, indiferenças e
crueldades que não cedem. Mas também é certo que, no meio da obscuridade,
sempre começa a desabrochar algo de novo que, mais cedo ou mais tarde, produz
fruto. Num campo arrasado, volta a aparecer a vida, tenaz e invencível. Haverá
muitas coisas más, mas o bem sempre tende a reaparecer e espalhar-se. Cada dia,
no mundo, renasce a beleza, que ressuscita transformada através dos dramas da
história. Os valores tendem sempre a reaparecer sob novas formas, e na
realidade o ser humano renasceu muitas vezes de situações que pareciam
irreversíveis. Esta é a força da ressurreição, e cada evangelizador é um
instrumento deste dinamismo.
277. E continuamente
aparecem também novas dificuldades, a experiência do fracasso, as mesquinhices
humanas que tanto ferem. Todos sabemos, por experiência, que às vezes uma
tarefa não nos dá as satisfações que desejaríamos, os frutos são escassos e as
mudanças são lentas, e vem-nos a tentação de se dar por cansado. Todavia, não é
a mesma coisa quando alguém, por cansaço, baixa momentaneamente os braços e
quando os baixa definitivamente dominado por um descontentamento crónico, por
uma acédia que lhe mirra a alma. Pode acontecer que o coração se canse de
lutar, porque, em última análise, se busca a si mesmo num carreirismo sedento
de reconhecimentos, aplausos, prémios, promoções; então a pessoa não baixa os
braços, mas já não tem garra, carece de ressurreição. Assim, o Evangelho, que é
a mensagem mais bela que há neste mundo, fica sepultado sob muitas desculpas.
278. A fé significa
também acreditar n’Ele, acreditar que nos ama verdadeiramente, que está vivo,
que é capaz de intervir misteriosamente, que não nos abandona, que tira bem do
mal com o seu poder e a sua criatividade infinita. Significa acreditar que Ele
caminha vitorioso na história «e, com Ele, estarão os chamados, os escolhidos,
os fiéis» (Ap 17, 14). Acreditamos no Evangelho que diz que o Reino
de Deus já está presente no mundo, e vai-se desenvolvendo-se aqui e além de
várias maneiras: como a pequena semente que pode chegar a transformar-se numa
grande árvore (cf. Mt 13, 31-32), como o punhado de fermento
que leveda uma grande massa (cf. Mt 13, 33), e como a boa
semente que cresce no meio do joio (cf. Mt 13, 24-30) e sempre
nos pode surpreender positivamente: ei-la que aparece, vem outra vez, luta para
florescer de novo. A ressurreição de Cristo produz por toda a parte rebentos
deste mundo novo; e, ainda que os cortem, voltam a despontar, porque a
ressurreição do Senhor já penetrou a trama oculta desta história; porque Jesus
não ressuscitou em vão. Não fiquemos à margem desta marcha da esperança viva!
279. Como nem sempre
vemos estes rebentos, precisamos de uma certeza interior, ou seja, da convicção
de que Deus pode actuar em qualquer circunstância, mesmo no meio de aparentes
fracassos, porque «trazemos este tesouro em vasos de barro» (2 Cor 4,
7). Esta certeza é o que se chama «sentido de mistério», que consiste em
saber, com certeza, que a pessoa que se oferece e entrega a Deus por amor,
seguramente será fecunda (cf. Jo 15, 5). Muitas vezes esta
fecundidade é invisível, incontrolável, não pode ser contabilizada. A pessoa
sabe com certeza que a sua vida dará frutos, mas sem pretender conhecer como,
onde ou quando; está segura de que não se perde nenhuma das suas obras feitas
com amor, não se perde nenhuma das suas preocupações sinceras com os outros,
não se perde nenhum acto de amor a Deus, não se perde nenhuma das suas
generosas fadigas, não se perde nenhuma dolorosa paciência. Tudo isto circula
pelo mundo como uma força de vida. Às vezes invade-nos a sensação de não termos
obtido resultado algum com os nossos esforços, mas a missão não é um negócio
nem um projecto empresarial, nem mesmo uma organização humanitária, não é um
espectáculo para que se possa contar quantas pessoas assistiram devido à nossa
propaganda. É algo de muito mais profundo, que escapa a toda e qualquer medida.
Talvez o Senhor Se sirva da nossa entrega para derramar bênçãos noutro lugar do
mundo, aonde nunca iremos. O Espírito Santo trabalha como quer, quando quer e
onde quer; e nós gastamo-nos com grande dedicação, mas sem pretender ver
resultados espectaculares. Sabemos apenas que o dom de nós mesmos é necessário.
No meio da nossa entrega criativa e generosa, aprendamos a descansar na ternura
dos braços do Pai. Continuemos para diante, empenhemo-nos totalmente, mas
deixemos que seja Ele a tornar fecundos, como melhor Lhe parecer, os nossos
esforços.
280. Para manter
vivo o ardor missionário, é necessária uma decidida confiança no Espírito
Santo, porque Ele «vem em auxílio da nossa fraqueza» (Rm 8, 26).
Mas esta confiança generosa tem de ser alimentada e, para isso, precisamos de O
invocar constantemente. Ele pode curar-nos de tudo o que nos faz esmorecer no
compromisso missionário. É verdade que esta confiança no invisível pode
causar-nos alguma vertigem: é como mergulhar num mar onde não sabemos o que
vamos encontrar. Eu mesmo o experimentei tantas vezes. Mas não há maior
liberdade do que a de se deixar conduzir pelo Espírito, renunciando a calcular
e controlar tudo e permitindo que Ele nos ilumine, guie, dirija e impulsione
para onde Ele quiser. O Espírito Santo bem sabe o que faz falta em cada época e
em cada momento. A isto chama-se ser misteriosamente fecundos!
A força
missionária da intercessão
281. Há uma forma de
oração que nos incentiva particularmente a gastarmo-nos na evangelização e nos
motiva a procurar o bem dos outros: é a intercessão. Fixemos, por momentos, o
íntimo dum grande evangelizador como São Paulo, para perceber como era a sua
oração. Esta estava repleta de seres humanos: «Em todas as minhas orações,
sempre peço com alegria por todos vós (...), pois tenho-vos no coração» (Fl 1,
4.7). Descobrimos, assim, que interceder não nos afasta da verdadeira
contemplação, porque a contemplação que deixa de fora os outros é uma farsa.
282. Esta atitude
transforma-se também num agradecimento a Deus pelos outros. «Antes de mais, dou
graças ao meu Deus por todos vós, por meio de Jesus Cristo» (Rm 1,
8). Trata-se de um agradecimento constante: «Dou incessantemente graças
ao meu Deus por vós, pela graça de Deus que vos foi concedida em Cristo Jesus»
(1 Cor 1, 4); «todas as vezes que me lembro de vós, dou
graças ao meu Deus» (Fl 1, 3). Não é um olhar incrédulo, negativo e
sem esperança, mas uma visão espiritual, de fé profunda, que reconhece aquilo
que o próprio Deus faz neles. E, simultaneamente, é a gratidão que brota de um
coração verdadeiramente solícito pelos outros. Deste modo, quando um
evangelizador sai da oração, o seu coração tornou-se mais generoso, libertou-se
da consciência isolada e está ansioso por fazer o bem e partilhar a vida com os
outros.
283. Os grandes
homens e mulheres de Deus foram grandes intercessores. A intercessão é como
«fermento» no seio da Santíssima Trindade. É penetrarmos no Pai e descobrirmos
novas dimensões que iluminam as situações concretas e as mudam. Poderíamos
dizer que o coração de Deus se deixa comover pela intercessão, mas na realidade
Ele sempre nos antecipa, pelo que, com a nossa intercessão, apenas
possibilitamos que o seu poder, o seu amor e a sua lealdade se manifestem mais
claramente no povo.
2. Maria, a Mãe
da evangelização
284. Juntamente com
o Espírito Santo, sempre está Maria no meio do povo. Ela reunia os discípulos
para O invocarem (Act 1, 14), e assim tornou possível a explosão
missionária que se deu no Pentecostes. Ela é a Mãe da Igreja evangelizadora e,
sem Ela, não podemos compreender cabalmente o espírito da nova evangelização.
O dom de Jesus ao
seu povo
285. Na cruz, quando
Cristo suportava em sua carne o dramático encontro entre o pecado do mundo e a
misericórdia divina, pôde ver a seus pés a presença consoladora da Mãe e do
amigo. Naquele momento crucial, antes de declarar consumada a obra que o Pai
Lhe havia confiado, Jesus disse a Maria: «Mulher, eis o teu filho!» E, logo a
seguir, disse ao amigo bem-amado: «Eis a tua mãe!» (Jo 19, 26-27).
Estas palavras de Jesus, no limiar da morte, não exprimem primariamente uma
terna preocupação por sua Mãe; mas são, antes, uma fórmula de revelação que
manifesta o mistério duma missão salvífica especial. Jesus deixava-nos a sua
Mãe como nossa Mãe. E só depois de fazer isto é que Jesus pôde sentir que «tudo
se consumara» (Jo 19, 28). Ao pé da cruz, na hora suprema da nova
criação, Cristo conduz-nos a Maria; conduz-nos a Ela, porque não quer que
caminhemos sem uma mãe; e, nesta imagem materna, o povo lê todos os mistérios
do Evangelho. Não é do agrado do Senhor que falte à sua Igreja o ícone
feminino. Ela, que O gerou com tanta fé, também acompanha «o resto da sua
descendência, isto é, os que observam os mandamentos de Deus e guardam o
testemunho de Jesus» (Ap 12, 17). Esta ligação íntima entre Maria,
a Igreja e cada fiel, enquanto de maneira diversa geram Cristo, foi
maravilhosamente expressa pelo Beato Isaac da Estrela: «Nas Escrituras
divinamente inspiradas, o que se atribui em geral à Igreja, Virgem e Mãe,
aplica-se em especial à Virgem Maria (...). Alem disso, cada alma fiel é
igualmente, a seu modo, esposa do Verbo de Deus, mãe de Cristo, filha e irmã,
virgem e mãe fecunda. (...) No tabernáculo do ventre de Maria, Cristo habitou
durante nove meses; no tabernáculo da fé da Igreja, permanecerá até ao fim do
mundo; no conhecimento e amor da alma fiel habitará pelos séculos dos séculos».
286. Maria é aquela
que sabe transformar um curral de animais na casa de Jesus, com uns pobres
paninhos e uma montanha de ternura. Ela é a serva humilde do Pai, que
transborda de alegria no louvor. É a amiga sempre solícita para que não falte o
vinho na nossa vida. É aquela que tem o coração trespassado pela espada, que
compreende todas as penas. Como Mãe de todos, é sinal de esperança para os
povos que sofrem as dores do parto até que germine a justiça. Ela é a
missionária que Se aproxima de nós, para nos acompanhar ao longo da vida,
abrindo os corações à fé com o seu afecto materno. Como uma verdadeira mãe,
caminha connosco, luta connosco e aproxima-nos incessantemente do amor de Deus.
Através dos diferentes títulos marianos, geralmente ligados aos santuários,
compartilha as vicissitudes de cada povo que recebeu o Evangelho e entra a
formar parte da sua identidade histórica. Muitos pais cristãos pedem o Baptismo
para seus filhos num santuário mariano, manifestando assim a fé na acção
materna de Maria que gera novos filhos para Deus. É lá, nos santuários, que se
pode observar como Maria reúne ao seu redor os filhos que, com grandes
sacrifícios, vêm peregrinos para A ver e deixar-se olhar por Ela. Lá encontram
a força de Deus para suportar os sofrimentos e as fadigas da vida. Como a São
João Diego, Maria oferece-lhes a carícia da sua consolação materna e diz-lhes:
«Não se perturbe o teu coração. (...) Não estou aqui eu, que sou tua
Mãe?»
A Estrela da nova
evangelização
287. À Mãe do
Evangelho vivente, pedimos a sua intercessão a fim de que este convite para uma
nova etapa da evangelização seja acolhido por toda a comunidade eclesial. Ela é
a mulher de fé, que vive e caminha na fé, e «a sua excepcional peregrinação da
fé representa um ponto de referência constante para a Igreja». Ela deixou-Se
conduzir pelo Espírito, através dum itinerário de fé, rumo a uma destinação
feita de serviço e fecundidade. Hoje fixamos n’Ela o olhar, para que nos ajude
a anunciar a todos a mensagem de salvação e para que os novos discípulos se
tornem operosos evangelizadores. Nesta peregrinação evangelizadora, não faltam
as fases de aridez, de ocultação e até de um certo cansaço, como as que viveu
Maria nos anos de Nazaré enquanto Jesus crescia: «Este é o início do Evangelho,
isto é, da boa nova, da jubilosa nova. Não é difícil, porém, perceber naquele
início um particular aperto do coração, unido a uma espécie de “noite da fé” –
para usar as palavras de São João da Cruz – como que um “véu” através do qual é
forçoso aproximar-se do Invisível e viver na intimidade com o mistério. Foi
deste modo efectivamente que Maria, durante muitos anos, permaneceu na
intimidade com o mistério do seu Filho, e avançou no seu itinerário de fé».
288. Há um estilo
mariano na actividade evangelizadora da Igreja. Porque sempre que olhamos para
Maria, voltamos a acreditar na força revolucionária da ternura e do afecto.
N’Ela, vemos que a humildade e a ternura não são virtudes dos fracos, mas dos
fortes, que não precisam de maltratar os outros para se sentir importantes.
Fixando-A, descobrimos que aquela que louvava a Deus porque «derrubou os
poderosos de seus tronos» e «aos ricos despediu de mãos vazias» (Lc 1,
52.53) é mesma que assegura o aconchego dum lar à nossa busca de justiça. E é a
mesma também que conserva cuidadosamente «todas estas coisas ponderando-as no
seu coração» (Lc 2, 19). Maria sabe reconhecer os vestígios do
Espírito de Deus tanto nos grandes acontecimentos como naqueles que parecem
imperceptíveis. É contemplativa do mistério de Deus no mundo, na história e na
vida diária de cada um e de todos. É a mulher orante e trabalhadora em Nazaré,
mas é também nossa Senhora da prontidão, a que sai «à pressa» (Lc 1,
39) da sua povoação para ir ajudar os outros. Esta dinâmica de justiça e
ternura, de contemplação e de caminho para os outros faz d’Ela um modelo
eclesial para a evangelização. Pedimos-Lhe que nos ajude, com a sua oração
materna, para que a Igreja se torne uma casa para muitos, uma mãe para todos os
povos, e torne possível o nascimento dum mundo novo. É o Ressuscitado que nos
diz, com uma força que nos enche de imensa confiança e firmíssima esperança:
«Eu renovo todas as coisas» (Ap 21, 5). Com Maria, avançamos
confiantes para esta promessa, e dizemos-Lhe:
Virgem e Mãe
Maria,
Vós que, movida pelo
Espírito,
acolhestes o
Verbo da vida
na profundidade
da vossa fé humilde,
totalmente
entregue ao Eterno,
ajudai-nos a
dizer o nosso «sim»
perante a
urgência, mais imperiosa do que nunca,
de fazer ressoar
a Boa Nova de Jesus.
Vós, cheia da
presença de Cristo,
levastes a
alegria a João o Baptista,
fazendo-o exultar
no seio de sua mãe.
Vós, estremecendo
de alegria,
cantastes as
maravilhas do Senhor.
Vós, que
permanecestes firme diante da Cruz
com uma fé
inabalável,
e recebestes a
jubilosa consolação da ressurreição,
reunistes os
discípulos à espera do Espírito
para que nascesse
a Igreja evangelizadora.
Alcançai-nos
agora um novo ardor de ressuscitados
para levar a
todos o Evangelho da vida
que vence a
morte.
Dai-nos a santa
ousadia de buscar novos caminhos
para que chegue a
todos
o dom da beleza
que não se apaga.
Vós, Virgem da
escuta e da contemplação,
Mãe do amor,
esposa das núpcias eternas
intercedei pela
Igreja, da qual sois o ícone puríssimo,
para que ela
nunca se feche nem se detenha
na sua paixão por
instaurar o Reino.
Estrela da nova
evangelização,
ajudai-nos a
refulgir com o testemunho da comunhão,
do serviço, da fé
ardente e generosa,
da justiça e do
amor aos pobres,
para que a
alegria do Evangelho
chegue até aos
confins da terra
e nenhuma periferia
fique privada da sua luz.
Mãe do Evangelho
vivente,
manancial de
alegria para os pequeninos,
rogai por nós.
Amen. Aleluia!
Dado em Roma, junto
de São Pedro, no encerramento do Ano da Fé, dia 24 de Novembro –
Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo – do ano de 2013,
primeiro do meu Pontificado.
[Franciscus
PP]
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