sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Turquia restituirá propriedades confiscadas

Decreto não inclui católicos latinos

Por Paul De Maeyer

ROMA, quinta-feira, 1° de setembro de 2011 (ZENIT.org) – Em discurso após a nova vitória do AKP (Partido pela Justiça e Desenvolvimento) nas eleições legislativas de 12 de junho, o primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan prometeu trabalhar por todos os cidadãos do país, de todas as religiões e estilos de vida. O governo Erdogan aprovou um decreto-lei para restituir a minorias cristãs e judaica as propriedades confiscadas desde 1936.

O novo decreto entrou em vigor neste 27 de agosto, após sua publicação na gazeta oficial de Ancara, noticiada poucas horas depois do jantar festivo do Iftar, o fim do jejum de Ramadã. O jantar, no domingo 28 de agosto, foi organizado pela primeira vez em homenagem a Erdogan pelo representante das minorias perante a Diretoria Geral das Fundações Religiosas, Lakis Vingas, da comunidade ortodoxa. No acontecimento, definido como um "novum" na história da Turquia pela revista alemã especializada em migração e integração MiGAZIN (29 de agosto), participaram representantes de 161 fundações não muçulmanas.

A nova normativa sanciona que todas as minorias reconhecidas no Tratado de Lausanne, assinado em julho de 1923 em Ancara pelo então novo governo de Mustafa Kemal Atatürk, têm um ano para pedir a restituição de todas as propriedades registradas como pertencentes às fundações religiosas no censo de 1936 e confiscadas sucessivamente pelo Estado turco. Dado que o tratado reconhecia oficialmente como “minorias” só as não muçulmanas historicamente presentes no território turco, ou seja, armênios, greco-ortodoxos e judeus, significa que o decreto não contempla a restituição dos bens imóveis desapropriados dos católicos latinos. Já os católicos caldeus poderão se beneficiar do decreto, segundo a Rádio Vaticano (29 de agosto).

O texto prevê não só a devolução dos edifícios, mas também dos cemitérios e até dos mananciais pertencentes às fundações não muçulmanas. Segundo a AsiaNews (29 de agosto), serão devolvidos também os bens imobiliários com títulos de propriedade não definidos, como os de mosteiros e paróquias, que não têm personalidade jurídica e portanto não existem para a lei turca. Estima-se que mil propriedades imobiliárias serão restituídas aos greco-ortodoxos e cerca de cem aos armênios. De acordo com informações do Today's Zaman (28 de agosto), ao menos 157 casas, 21 complexos de apartamentos, uma fábrica e três cemitérios voltarão à posse do Hospital Grego de Balikli, um bairro de Istambul. A normativa estabelece ainda que as fundações não muçulmanas serão ressarcidas se as propriedades confiscadas tiverem sido vendidas a terceiros. Segundo cálculos dos meios de comunicação locais, esta operação poderia custar ao Estado turco em torno de 700 milhões de euros (Domradio, 30 de agosto).

O próprio Erdogan explicou a decisão do governo, que a AsiaNews chamou de "coup de théâtre", como um passo na luta contra as injustiças do passado e contra a exclusão e a desigualdade na Turquia. "Os tempos em que os nossos cidadãos eram oprimidos por causa de sua fé, de sua etnia, de sua vestimenta ou estilo de vida, pertencem agora ao passado do nosso país" (MiGAZIN, 29 de agosto). “Os 74 milhões que vivem neste país são cidadãos de primeira classe, e, com todas as suas diferenças, são iguais aos nossos olhos", prosseguiu o político do AKP.

As declarações do primeiro-ministro suscitaram reações positivas, como as palavras do rabino chefe da Turquia, Ishak Haleva. "É extraordinário. Hoje é uma jornada histórica. A luz do Império Otomano continua brilhando", disse Haleva, que falou de “correção de uma injustiça”.

Um dos mais conhecidos empresários da Turquia, Ishak Alaton, qualificou a iniciativa do governo como “uma espécie de revolução”, que “aplana o caminho rumo à paz social". Segundo o expoente da comunidade judaica, "até hoje tínhamos falado sempre de cidadãos de primeira e de segunda classe. Agora deixamos esta discriminação para trás. Todos serão iguais”.

A advogada Kezban Hatemi, comprometida na defesa dos interesses das minorias, entre elas a católica, afirmou: “Este é um primeiro passo na história da República turca e um fato muito significativo. É o restabelecimento de um direito. Uma medida requerida pelo Tratado de Lausanne, que faz os cidadãos não muçulmanos da Turquia se sentirem cidadãos com a mesma igualdade”.

Para o diretor da Secretaria para os Direitos Humanos da organização católica alemã Missio, Otmar Oehring, que há anos segue de perto a situação das minorias religiosas na Turquia, o decreto será um passo “valente e surpreendente" se for ratificado (Domradio, 30 de agosto).

O presidente da Conferência Episcopal da Turquia, Dom Ruggero Franceschini, também afirmou acolher a notícia “com alegria" (Radio Vaticano, 29 de agosto), embora a comunidade dos católicos latinos fique de fora das disposições do decreto.

Para os analistas, a decisão deve ser lida à luz das recentes condenações infligidas à Turquia pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Após batalha começada em 2007, o tribunal com sede em Estrasburgo condenou o país, em junho de 2010,  a devolver o orfanato de Büyükada, na homônima ilha do Mar de Mármara, ao patriarcado ecumênico de Constantinopla. A sentença foi considerada de “grandíssima importância" (AsiaNews, 16 de junho de 2010), porque reconhecia o status jurídico do Patriarcado.

Não há que excluir que Erdogan – datado de uma grande intuição política – tenha querido julgar antecipadamente e impedir um recurso ao Tribunal de Estrasburgo por parte de outras entidades cristãs, por exemplo os monges do mosteiro sírio-ortodoxo de Mor Gabriel. Além de perder uma parte de suas terras, o mosteiro, situado no sudeste de Anatolia, corre risco de ter de derrubar os poderosos muros que o protegem de ataques e ladrões. “Não queremos mais belas palavras, mas atos”, declarou o metropolita Mor Timotheus Samuel Aktas, após um decepcionante encontro com Erdogan, celebrado no mês de abril (Domradio, 2 de junho).

“Se o governo não tivesse tomado nenhuma iniciativa, a Turquia teria enfrentado severas sanções do Tribunal Europeu”, disse ao Today's Zaman o sociólogo Ayhan Aktar, autor de vários livros sobre as minorias em seu país. Além disso, se poderia considerar a negociação com Bruxelas sobre a entrada da Turquia na União Europeia. Em várias ocasiões, a UE pediu a Ancara passos para eliminar as discriminações pelas minorias. Em uma primeira reação, um porta-voz do Comissário para a ampliação da UE, Stefan Füle, falou de um passo “positivo e oportuno" (Domradio, 30 de agosto). "A Comissão europeia vigiará com atenção o cumprimento da nova lei, mantendo-se em contato tanto com as autoridades turcas como com as comunidades religiosas não muçulmanas”, acrescentou o porta-voz.

Um funcionário do governo grego mostrou-se mais cauteloso. “Houve ao menos cinco ocasiões em que se deram modificações na legislação atual desde que o AKP está no governo, mas não foram muito satisfatórias na prática”, disse o representante de Atenas, que preferiu se manter no anonimato (The New York Times, 28 de agosto). “Esperamos que desta vez as mudanças produzam verdadeiras transformações”, desejou.

No entanto, há rejeição da parte do presidente do Armenian National Committee of America (ANCA), Ken Hachikian. "96 anos depois do genocídio perpetrado contra os armênios, gregos e sírios, este decreto é uma cortina de fumaça para evitar consequências muito mais amplas desses atos brutais”, declarou (Asbarez Armenian News, 28 de agosto). Segundo Hachikian, com o decreto voltará de fato “menos de 1% das igrejas e propriedades eclesiásticas confiscadas durante o genocídio armênio e nas décadas que o seguiram”. Segundo especialistas da Igreja armênia, dos mais de 2.000 lugares de culto armênios antes de 1915, menos de 40 funcionam hoje como igrejas.

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