terça-feira, 2 de setembro de 2025

O consentimento matrimonial segundo o cânon 1104 — presença, forma e expressão

O cânon 1104 do Código de Direito Canônico disciplina um aspecto central do rito e da validade do matrimônio: a maneira pela qual o consentimento dos noivos deve ser prestado. A compreensão correta desse dispositivo exige olhar simultaneamente para três dimensões: (a) a exigência de presença simultânea dos contraentes (ou de seus procuradores), (b) a forma ordinária de expressão do consentimento (a oralidade) e (c) as soluções permitidas quando a oralidade for impossível (os sinais equivalentes). Essas três dimensões articulam o princípio teológico-jurídico básico: o matrimônio é um ato de vontade pessoal, público e verificável, e a legislação canônica busca proteger a liberdade e a clareza desse ato.

 

1. Presença simultânea (§1): o sentido canônico e a figura da procuração

O §1 do cânon 1104 dispõe que, para que o matrimônio seja válido, “os contraentes se achem simultaneamente presentes, por si ou por meio de procurador”. Essa exigência não é um capricho formal: ela assegura a publicidade do consentimento e a possibilidade de sua verificação por parte da comunidade e do próprio ministro da Igreja. O fundamento teológico é claro: na doutrina católica os próprios cônjuges são ministros do sacramento, e o pacto conjugal nasce do ato livre e recíproco de entregar-se e receber-se. A presença simultânea torna esse ato um fato público e imediato, não uma declaração distante ou meramente declaratória.

Contudo, o cânon admite expressamente a figura da procuração (cf. cân. 1105), ou seja, a representação jurídica de um dos contraentes por mandatário legítimo. A procuração, quando corretamente conferida, resolve a impossibilidade física de estar presente: o mandato deve ser inequívoco e realizado de forma que a vontade do ausente fique documentada e claramente transmitida ao momento da celebração. Importante: a presença por procuração exige formalidades que visam garantir que não houve coação, erro ou fraude — afinal, o que se procura é reproduzir, por meios legais, a mesma certeza que haveria com a presença efetiva.

Historicamente, a disciplina sobre representação evoluiu. Em períodos anteriores ao Código de 1917 era relativamente mais frequente aceitar formas menos estritas de representação (casos de casamento “por carta” ou por mensageiro). A codificação do século XX rígida-lizou essa matéria precisamente para aumentar a certeza jurídica e a publicidade do consentimento.

 

2. “Simultaneamente presentes”: presença física ou presença mediada?

A expressão “se achem simultaneamente presentes” deve ser lida em seu sentido literal e canônico: a lei pressupõe a presença física dos contraentes ou dos seus procuradores no mesmo momento ritual. Isso traduz a opção da Igreja por uma presença efetiva do sujeito que consente, não por uma mera conexão mediada por tecnologias. Do ponto de vista sacramental, a corporeidade do ato — o encontro humano real — tem significado: o consentimento matrimonial é um ato pessoal que se dá em presença recíproca.

Com isso decorre uma consequência prática óbvia: modalidades como transmissões por vídeo ou celebrações “virtuais” não satisfazem, em regra, a exigência do cânon enquanto permanecerem redigidos assim os textos legais. Não se trata de rejeitar a tecnologia em si, mas de afirmar que a validade sacramental exige uma presença verificável e pública que a legislação pretende assegurar. Importa, entretanto, registrar que normas disciplinares são, em princípio, passíveis de adaptação normativa pelo legislador competente ou de concessão de dispensas em casos devidamente justificados; contudo, enquanto a norma vigorar em sua redação atual, a interpretação conservadora — que exige presença física ou representação válida — é a que melhor protege a integridade do consentimento.

 

3. A natureza disciplinar das formalidades e o campo da dispensa

É crucial distinguir o que é essencial ao sacramento (o consentimento livre e válido) e o que é dispositivo de direito eclesiástico (formalidades canônicas). As determinações do cân. 1104 — presença simultânea, forma e testemunhas — pertencem à disciplina eclesiástica destinada a salvaguardar o sacramento; não são, em sentido estrito, constitutivas do sacramento em sua essência por direito divino. Por isso, elas podem, em situações excepcionais e segundo as normas, ser objeto de dispensa pelo Ordinário (ou por autoridade competente), quando houver motivos graves que o justifiquem. A operação pastoral dessa faculdade exige prudência: a dispensa deve sempre visar a proteção do consentimento livre e público e não a sua relativização.

Também por essa razão as normas do cân. 1104 se aplicam especificamente no âmbito da jurisdição e disciplina da Igreja (cf. cân. 11 e cân. 1059, que delimitam, respectivamente, a natureza do direito universal e a aplicação das normas matrimoniais entre batizados e demais circunstâncias).

 

4. Oralidade e sinais (§2): validade, liceidade e critérios de certeza

O §2 do cânon fixa a oralidade como meio ordinário para a expressão do consentimento — isto é, a forma normal e preferível para garantir a clareza do “sim”. Todavia, o texto canônico também prevê uma solução prudente e humana: “se não puderem falar, por sinais equivalentes”. Essa previsão protege aqueles que, por razão física (mudez congênita, laringectomia, intubação temporária, afasia, etc.), não podem expressar o consentimento por palavra, mas querem manifestá-lo de modo irreversível e inteligível.

Aqui entra uma distinção prática e teórica importante: a validade do matrimônio depende do consentimento real; a oralidade é meio ordinário (ligeiramente ligado à liceidade da cerimônia), mas a validade subsiste sempre que exista expressão inequívoca da vontade — seja por palavras, seja por sinais compreendidos como equivalentes. Para que sinais sejam aceitos como equivalentes, é necessário que:

  • sejam inequívocos no contexto cultural e pastoral em que ocorrem (gestos que, naquele ambiente, expressem claramente o “sim”);
  • haja, preferencialmente, testemunhas ou intérpretes que atestem que o gesto significou consentimento;
  • o ministro e as testemunhas assegurem que não existe ambiguidade ou coação;
  • registre-se alfabeticamente no livro paroquial a forma da manifestação do consentimento e as observações pertinentes.

Em particular, para pessoas surdas que utilizam língua de sinais, estes sinais constituem perfeitamente meios equivalentes de manifestação, desde que haja intérprete ou testemunhas capazes de certificá-los. Para pessoas temporariamente incapacitadas de falar (p.ex., intubadas), a doutrina pastoral recomenda prudência extrema: convém, sempre que possível, obter confirmação escrita ou sinal inequívoco acompanhado de testemunhas que conheçam a pessoa e possam atestar sua intenção.

Um ponto decisivo: os sinais equivalentes não são um expediente para evitar a clareza; ao contrário, devem aumentar a certeza de que o consentimento foi prestado livremente e com conhecimento suficiente. Se houver qualquer dúvida razoável sobre o significado do gesto, o ministro deve adiar a celebração até que a certeza exista.

 

5. Riscos práticos e recomendações pastorais

A disciplina do cân. 1104 orienta também a prática pastoral dos ministros do matrimônio. Entre medidas prudentes destacam-se:

  • verificar previamente, nas entrevistas de preparação, se o noivo ou a noiva compreendem o significado do casamento e podem manifestar consentimento;
  • quando houver incapacidade de falar, organizar intérpretes ou testemunhas idóneas que atestem a compreensão e o gesto equivalente;
  • registrar de forma detalhada no livro paroquial e, quando possível, obter declaração escrita do contraente que não possa falar;
  • evitar soluções “virtuais” enquanto a norma for interpretada restritivamente; em casos extraordinários, solicitar orientação ao Ordinário ou pedir dispensa devidamente fundamentada;
  • no caso de procuração, exigir documentação clara do mandato e verificar ausência de coação ou vícios.

 

Conclusão

O cânon 1104 procura garantir que o ato por cui o matrimônio se realiza — o consentimento recíproco — seja um evento público, livre e verificável. A presença simultânea e a expressão oral são normas que protegem essa finalidade; a previsão de procuração e de sinais equivalentes expressa a prudência pastoral da Igreja diante das limitações humanas. Na tensão entre fidelidade à tradição sacramental e caridade pastoral, a regra canônica oferece, assim, caminhos rigorosos e ao mesmo tempo humanos para que o “sim” dos noivos seja efetivamente um ato de plena responsabilidade e de verdade.