sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Tolerância ou direito?

 

Existe um ponto central da evolução do direito à liberdade religiosa, que é a passagem da mentalidade de "tolerância" para a de "direito natural".

A visão de mera tolerância é inadequada para a relação entre o Estado (e as instituições) com o indivíduo. Essa visão é um resquício de uma época em que o poder político se sobrepunha ao foro íntimo da pessoa, e a não perseguição era vista como uma concessão graciosa. Digo isso no passado porque espero, com mito esperança mesmo, que seja apenas passado, embora os fatos contradigam isso.

A palavra "tolerância" vem do latim tolerare, que significa "suportar", "aguentar" ou "permitir". O Estado tolera aquilo que ele poderia, em tese, proibir, mas opta por não fazê-lo em nome da paz social. Essa visão, que marcou o pensamento de filósofos como John Locke, foi um avanço fundamental para a sua época, pois exigia do Estado que não coagisse a consciência de seus cidadãos. No entanto, ela ainda pressupunha que a liberdade de crença era um bem concedido, e não um direito inato, ou seja, natural do ser humano.

A grande revolução do constitucionalismo moderno, iniciada pela Declaração de Direitos da Virgínia, foi justamente inverter essa lógica. A liberdade de consciência e de crença deixou de ser um favor do Estado para se tornar um direito natural e inalienável. A partir desse momento, o papel do Estado não é mais o de tolerar, mas o de proteger e garantir um direito que o indivíduo já possui por natureza.

Aplicando essa distinção ao contexto da assistência religiosa em hospitais, fica evidente o porquê de a tolerância ser insuficiente. A necessidade de um amparo espiritual em momentos de doença e fragilidade não é algo que possa ser sujeito à discricionariedade ou à benevolência de uma instituição. É um direito que emana da própria dignidade da pessoa humana, que inclui a sua dimensão espiritual.

A Constituição Federal de 1988 e leis esparsas sobre o assunto, ao assegurarem a assistência religiosa, não estão "tolerando" a presença de ministros religiosos. Elas estão, de forma ativa, positivando e regulamentando um direito fundamental do paciente. O assistente religioso, portanto, não está ali por concessão da rotina hospitalar, mas como um agente da efetivação do direito do paciente de ser cuidado em sua totalidade.

A tolerância, no entanto, mantém um papel vital, mas em um contexto diferente: o relacionamento entre as próprias religiões.

Em uma sociedade plural e democrática, onde diferentes crenças coexistem, a tolerância é a virtude ética e social que permite a convivência pacífica. É a capacidade de uma fé respeitar a manifestação de outra, sem buscar sua conversão pela força (busca de conversão pode existir sem problema), sua deslegitimação ou sua eliminação. Enquanto o Estado garante o direito à liberdade religiosa, os cidadãos de diferentes credos devem praticar a tolerância mútua, reconhecendo a dignidade do outro, mesmo diante de convicções diferentes.

A visão de uma evolução gradual e linear, de um progresso constante do conceito de "tolerância" para o de "direito natural", é uma idealização que a história e a prática desmentem. Sua percepção de que há retrocessos significativos é não apenas correta, mas essencial para uma análise honesta do tema.

A declaração de um direito, seja em um documento revolucionário como a Declaração de Direitos da Virgínia ou em uma Constituição moderna, é um ponto de partida, não um ponto de chegada. O reconhecimento formal de uma prerrogativa fundamental não elimina, por si só, os desafios de sua efetivação. A distância entre a norma jurídica e a realidade social é o espaço onde os "retrocessos vultosos" ocorrem.

Essa fragilidade se manifesta de diversas formas. Uma delas é a persistência do autoritarismo que mesmo após as grandes declarações de direitos, regimes totalitários e ditatoriais ao longo do século XX (e XXI) demonstraram que a liberdade religiosa e a dignidade humana podem ser suprimidas por simples ato de força, ignorando solenemente os preceitos de qualquer lei fundamental. O Brasil, em sua própria história, já vivenciou a suspensão de garantias que pareciam inabaláveis.

Outro ponto é o abismo entre a teoria e a prática. O direito à assistência religiosa está garantido em nossa Constituição e em leis federais. No entanto, o positivismo estreito da burocracia e a inércia administrativa das instituições podem transformar essa garantia em letra morta.

O paciente que é impedido de receber uma unção dos enfermos no leito de morte, por conta de um "horário de visitas" ou de um "protocolo" não essencial, é vítima de um retrocesso prático, mesmo que a lei continue em vigor. O direito, que deveria ser um escudo, torna-se prisioneiro de um processo.

A história dos direitos humanos, portanto, não é um conto de progresso ininterrupto, mas uma crônica de lutas constantes, vitórias parciais e derrotas temporárias. A passagem da "tolerância" para o "direito" é uma conquista conceitual imensa, mas que precisa ser reafirmada a cada dia, em cada hospital, em cada instância do Poder Público e, sobretudo, na mentalidade de cada profissional de saúde.  Esses últimos são essenciais.

O direito à assistência religiosa nos hospitais é o reflexo mais nítido dessa luta contínua. As barreiras burocráticas não são meros entraves administrativos, mas manifestações contemporâneas de uma mentalidade que, no fundo, ainda vê a liberdade de crença como uma concessão, uma graciosidade, um mero favor e não como um direito fundamental e inviolável.

A conquista da liberdade religiosa e da dignidade humana nunca é definitiva. É uma batalha que se trava continuamente, tanto nas grandes arenas da história quanto nos pequenos espaços do dia a dia.

O Estado, portanto, e suas instituições não devem tolerar a assistência religiosa; eles devem garanti-la como um direito. Já a relação entre as pessoas e os diferentes grupos religiosos deve ser pautada pela tolerância e pelo respeito mútuo, que são a base de uma convivência harmoniosa em uma sociedade laica e plural.

domingo, 14 de setembro de 2025

Ilhas de ecos

Numa sociedade em que a comunicação é instantânea e abundante, a polarização não se manifesta como um debate vibrante entre polos opostos. O que observamos, na realidade, é a formação de ilhas ideológicas, fortificadas por algoritmos que nos servem apenas o que queremos ver. Nesses territórios, a voz do outro não é ouvida, mas distorcida e silenciada por um coro de vozes familiares. A desonestidade intelectual é que tem vez. 

​A expressão "quem tem ouvidos, ouça" assume um novo significado. Já não é um convite à escuta atenta, mas um desafio para romper a bolha. Pois o problema não é a existência de dois lados distintos, o que seria saudável para o debate. O problema reside na recusa de um lado em ouvir o outro. O debate sincero se esvai, dando lugar à desonestidade intelectual, onde a verdade se torna uma ferramenta de ataque e a lógica é sacrificada em nome da lealdade ao grupo.

​O que parece ser uma acalorada batalha de ideias é, na verdade, uma guerra de monólogos. Cada ilha grita sua própria verdade, enquanto o diálogo e a busca por um terreno comum se tornam a grande utopia da nossa era. A polarização, em sua forma mais grotesca, não nos divide em polos, mas nos isola em ilhas de ecos, onde o único som que ouvimos é o da nossa própria voz.

sábado, 13 de setembro de 2025

O dia em que as Cavernas de Aço se tornaram nossas casas

Lembro-me de um dia, em 2020, quando saí para a rua e me vi atravessando-a apenas para evitar cruzar com um vizinho. Nem era muito o meu hábito, apesar de toda a loucura que vivíamos. O vizinho me viu, eu o vi, e a vergonha silenciosa daquele passo para o lado foi mais pesada que o ar em meus pulmões. Naquele instante, não éramos dois seres humanos, mas sim duas bolhas ambulantes, cada uma protegendo-se da suposta ameaça da outra. Foi ali que percebi: a ficção de Isaac Asimov havia se tornado realidade.

​Em "Cavernas de Aço", o mestre da ficção científica nos apresenta a um futuro da Terra onde a humanidade, superpopulosa, vive confinada em gigantescas cidades subterrâneas, as "Cavernas de Aço". Lá dentro, o ar é artificial, a comida é sintética e o contato humano é rigidamente controlado. Os terráqueos, vítimas de uma agorafobia coletiva, temem o espaço aberto, o sol e, sobretudo, os "Spacers" — os humanos que, livres e robustos, colonizaram as estrelas. A sociedade se fechou em si mesma, não apenas fisicamente, mas mentalmente, enxergando no "outro" (seja ele um Spacer ou um robô) a personificação de um medo.

​Essa era uma realidade distante, de um livro de 1954, mas se tornou estranhamente familiar durante a pandemia da COVID-19.

​A "sanha higienista" que se instalou, e ainda vive na cabeça de muitos, não foi apenas uma resposta sanitária, mas um reflexo da nossa própria agorafobia social. Nossas casas se transformaram em bunkers particulares, os escritórios em fortalezas virtuais. O contato físico, antes um gesto natural de afeto, se tornou um ato de risco. O aperto de mão, um abraço, um simples esbarrão — tudo isso passou a ser evitado como se fosse um veneno.

​Nós nos fechamos em nossas próprias "cavernas de aço". O inimigo não era o sol ou a vastidão do espaço, mas um vírus invisível, e o "outro" — o vizinho, o colega, o estranho no supermercado — era o seu portador em potencial. Criamos protocolos rígidos de comportamento social, não apenas por segurança, mas por um medo crescente do contato, uma desconfiança generalizada que ecoava a aversão dos terráqueos aos Spacers.

​Asimov, com sua genialidade, nos mostrou que o confinamento físico gera um confinamento mental, uma aversão ao que está fora de nossa bolha de controle. A pandemia não nos aprisionou em cidades de metal, mas nos impôs uma clausura social e emocional. Olhávamos o mundo através de janelas, de telas de computador, e a vida que acontecia lá fora parecia cada vez mais estranha e perigosa. Descobrimos que morremos, que não somos imortais. 

​A crônica de Asimov, assim como a nossa, é um lembrete de que a verdadeira liberdade não está na fuga ou no isolamento, mas na coragem de enfrentar o mundo, de abrir as portas e de reencontrar o outro, não como uma ameaça, mas como um companheiro de jornada. As "cavernas de aço" não são feitas apenas de concreto e metal, mas de medo e desconfiança. E só nós temos o poder de sair delas.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

"Quem tem ouvidos, ouça"

"Quem tem ouvidos, ouça". Esse é um brocardo, digamos assim, muito antigo e até bíblico. Podemos hoje entender que essa expressão se dá justamente para pessoas que estão tão imersas em suas ideologias que não conseguem seguir a lógica mais clara. Eles não têm mais ouvidos. Não ouvem, seja lá o que for dito, se não os agradar e for a favor de sua ideologia.

Esse é um comportamento que observamos atualmente, onde a adesão a uma ideologia pode influenciar profundamente a maneira como as pessoas percebem e processam informações.

​Essa observação reflete um fenômeno conhecido como viés de confirmação. Ele descreve a tendência humana de buscar, interpretar e favorecer informações que confirmem suas crenças ou ideologias pré-existentes, enquanto se ignora ou desconsidera evidências que as contradizem. Em outras palavras, a pessoa só "ouve" o que já acredita ser verdade.

Em um mundo com um volume enorme de informações e diferentes pontos de vista, o viés de confirmação pode levar a uma polarização desnecessária e dificultar o debate construtivo. A expressão serve, nesse contexto, como um lembrete da importância de estar aberto a diferentes perspectivas, mesmo que elas desafiem as próprias convicções.

Essa percepção de mundo vem aumentando cada dia mais justamente devido ao volume de informações e à "bolha" que ser cria nas redes sociais ao só ouvir, ver e ler o que está de acordo com o que pensa devido ao algoritmo.

Esse fenômeno de só entender o quite já se acredita, de não ter ouvidos para ouvir, impulsionado pelos algoritmos das redes sociais e outras plataformas digitais, amplifica o viés de confirmação.

​Em vez de expor as pessoas a uma variedade de ideias, esses algoritmos criam "câmaras de eco", as famosas "bolhas", onde o indivíduo é constantemente bombardeado com conteúdo que valida suas crenças existentes. Isso pode levar a uma espiral onde a ideologia se fortalece e o pensamento crítico se enfraquece.

A analogia de "não ter mais ouvidos" se torna particularmente relevante nesse contexto. O acesso a informações diversas e a abertura para ouvir outros pontos de vista não são garantidos apenas pela abundância de dados, mas exigem uma atitude proativa para buscar e considerar o que está fora da própria bolha.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

O consentimento matrimonial segundo o cânon 1104 — presença, forma e expressão

O cânon 1104 do Código de Direito Canônico disciplina um aspecto central do rito e da validade do matrimônio: a maneira pela qual o consentimento dos noivos deve ser prestado. A compreensão correta desse dispositivo exige olhar simultaneamente para três dimensões: (a) a exigência de presença simultânea dos contraentes (ou de seus procuradores), (b) a forma ordinária de expressão do consentimento (a oralidade) e (c) as soluções permitidas quando a oralidade for impossível (os sinais equivalentes). Essas três dimensões articulam o princípio teológico-jurídico básico: o matrimônio é um ato de vontade pessoal, público e verificável, e a legislação canônica busca proteger a liberdade e a clareza desse ato.

 

1. Presença simultânea (§1): o sentido canônico e a figura da procuração

O §1 do cânon 1104 dispõe que, para que o matrimônio seja válido, “os contraentes se achem simultaneamente presentes, por si ou por meio de procurador”. Essa exigência não é um capricho formal: ela assegura a publicidade do consentimento e a possibilidade de sua verificação por parte da comunidade e do próprio ministro da Igreja. O fundamento teológico é claro: na doutrina católica os próprios cônjuges são ministros do sacramento, e o pacto conjugal nasce do ato livre e recíproco de entregar-se e receber-se. A presença simultânea torna esse ato um fato público e imediato, não uma declaração distante ou meramente declaratória.

Contudo, o cânon admite expressamente a figura da procuração (cf. cân. 1105), ou seja, a representação jurídica de um dos contraentes por mandatário legítimo. A procuração, quando corretamente conferida, resolve a impossibilidade física de estar presente: o mandato deve ser inequívoco e realizado de forma que a vontade do ausente fique documentada e claramente transmitida ao momento da celebração. Importante: a presença por procuração exige formalidades que visam garantir que não houve coação, erro ou fraude — afinal, o que se procura é reproduzir, por meios legais, a mesma certeza que haveria com a presença efetiva.

Historicamente, a disciplina sobre representação evoluiu. Em períodos anteriores ao Código de 1917 era relativamente mais frequente aceitar formas menos estritas de representação (casos de casamento “por carta” ou por mensageiro). A codificação do século XX rígida-lizou essa matéria precisamente para aumentar a certeza jurídica e a publicidade do consentimento.

 

2. “Simultaneamente presentes”: presença física ou presença mediada?

A expressão “se achem simultaneamente presentes” deve ser lida em seu sentido literal e canônico: a lei pressupõe a presença física dos contraentes ou dos seus procuradores no mesmo momento ritual. Isso traduz a opção da Igreja por uma presença efetiva do sujeito que consente, não por uma mera conexão mediada por tecnologias. Do ponto de vista sacramental, a corporeidade do ato — o encontro humano real — tem significado: o consentimento matrimonial é um ato pessoal que se dá em presença recíproca.

Com isso decorre uma consequência prática óbvia: modalidades como transmissões por vídeo ou celebrações “virtuais” não satisfazem, em regra, a exigência do cânon enquanto permanecerem redigidos assim os textos legais. Não se trata de rejeitar a tecnologia em si, mas de afirmar que a validade sacramental exige uma presença verificável e pública que a legislação pretende assegurar. Importa, entretanto, registrar que normas disciplinares são, em princípio, passíveis de adaptação normativa pelo legislador competente ou de concessão de dispensas em casos devidamente justificados; contudo, enquanto a norma vigorar em sua redação atual, a interpretação conservadora — que exige presença física ou representação válida — é a que melhor protege a integridade do consentimento.

 

3. A natureza disciplinar das formalidades e o campo da dispensa

É crucial distinguir o que é essencial ao sacramento (o consentimento livre e válido) e o que é dispositivo de direito eclesiástico (formalidades canônicas). As determinações do cân. 1104 — presença simultânea, forma e testemunhas — pertencem à disciplina eclesiástica destinada a salvaguardar o sacramento; não são, em sentido estrito, constitutivas do sacramento em sua essência por direito divino. Por isso, elas podem, em situações excepcionais e segundo as normas, ser objeto de dispensa pelo Ordinário (ou por autoridade competente), quando houver motivos graves que o justifiquem. A operação pastoral dessa faculdade exige prudência: a dispensa deve sempre visar a proteção do consentimento livre e público e não a sua relativização.

Também por essa razão as normas do cân. 1104 se aplicam especificamente no âmbito da jurisdição e disciplina da Igreja (cf. cân. 11 e cân. 1059, que delimitam, respectivamente, a natureza do direito universal e a aplicação das normas matrimoniais entre batizados e demais circunstâncias).

 

4. Oralidade e sinais (§2): validade, liceidade e critérios de certeza

O §2 do cânon fixa a oralidade como meio ordinário para a expressão do consentimento — isto é, a forma normal e preferível para garantir a clareza do “sim”. Todavia, o texto canônico também prevê uma solução prudente e humana: “se não puderem falar, por sinais equivalentes”. Essa previsão protege aqueles que, por razão física (mudez congênita, laringectomia, intubação temporária, afasia, etc.), não podem expressar o consentimento por palavra, mas querem manifestá-lo de modo irreversível e inteligível.

Aqui entra uma distinção prática e teórica importante: a validade do matrimônio depende do consentimento real; a oralidade é meio ordinário (ligeiramente ligado à liceidade da cerimônia), mas a validade subsiste sempre que exista expressão inequívoca da vontade — seja por palavras, seja por sinais compreendidos como equivalentes. Para que sinais sejam aceitos como equivalentes, é necessário que:

  • sejam inequívocos no contexto cultural e pastoral em que ocorrem (gestos que, naquele ambiente, expressem claramente o “sim”);
  • haja, preferencialmente, testemunhas ou intérpretes que atestem que o gesto significou consentimento;
  • o ministro e as testemunhas assegurem que não existe ambiguidade ou coação;
  • registre-se alfabeticamente no livro paroquial a forma da manifestação do consentimento e as observações pertinentes.

Em particular, para pessoas surdas que utilizam língua de sinais, estes sinais constituem perfeitamente meios equivalentes de manifestação, desde que haja intérprete ou testemunhas capazes de certificá-los. Para pessoas temporariamente incapacitadas de falar (p.ex., intubadas), a doutrina pastoral recomenda prudência extrema: convém, sempre que possível, obter confirmação escrita ou sinal inequívoco acompanhado de testemunhas que conheçam a pessoa e possam atestar sua intenção.

Um ponto decisivo: os sinais equivalentes não são um expediente para evitar a clareza; ao contrário, devem aumentar a certeza de que o consentimento foi prestado livremente e com conhecimento suficiente. Se houver qualquer dúvida razoável sobre o significado do gesto, o ministro deve adiar a celebração até que a certeza exista.

 

5. Riscos práticos e recomendações pastorais

A disciplina do cân. 1104 orienta também a prática pastoral dos ministros do matrimônio. Entre medidas prudentes destacam-se:

  • verificar previamente, nas entrevistas de preparação, se o noivo ou a noiva compreendem o significado do casamento e podem manifestar consentimento;
  • quando houver incapacidade de falar, organizar intérpretes ou testemunhas idóneas que atestem a compreensão e o gesto equivalente;
  • registrar de forma detalhada no livro paroquial e, quando possível, obter declaração escrita do contraente que não possa falar;
  • evitar soluções “virtuais” enquanto a norma for interpretada restritivamente; em casos extraordinários, solicitar orientação ao Ordinário ou pedir dispensa devidamente fundamentada;
  • no caso de procuração, exigir documentação clara do mandato e verificar ausência de coação ou vícios.

 

Conclusão

O cânon 1104 procura garantir que o ato por cui o matrimônio se realiza — o consentimento recíproco — seja um evento público, livre e verificável. A presença simultânea e a expressão oral são normas que protegem essa finalidade; a previsão de procuração e de sinais equivalentes expressa a prudência pastoral da Igreja diante das limitações humanas. Na tensão entre fidelidade à tradição sacramental e caridade pastoral, a regra canônica oferece, assim, caminhos rigorosos e ao mesmo tempo humanos para que o “sim” dos noivos seja efetivamente um ato de plena responsabilidade e de verdade.