O cânon 1104 do Código de Direito
Canônico disciplina um aspecto central do rito e da validade do matrimônio: a
maneira pela qual o consentimento dos noivos deve ser prestado. A compreensão
correta desse dispositivo exige olhar simultaneamente para três dimensões: (a)
a exigência de presença simultânea dos contraentes (ou de seus procuradores),
(b) a forma ordinária de expressão do consentimento (a oralidade) e (c) as
soluções permitidas quando a oralidade for impossível (os sinais equivalentes).
Essas três dimensões articulam o princípio teológico-jurídico básico: o
matrimônio é um ato de vontade pessoal, público e verificável, e a legislação
canônica busca proteger a liberdade e a clareza desse ato.
1. Presença simultânea (§1): o sentido canônico e a figura da
procuração
O §1 do cânon 1104 dispõe que, para
que o matrimônio seja válido, “os contraentes se achem simultaneamente
presentes, por si ou por meio de procurador”. Essa exigência não é um capricho
formal: ela assegura a publicidade do consentimento e a possibilidade de sua
verificação por parte da comunidade e do próprio ministro da Igreja. O
fundamento teológico é claro: na doutrina católica os próprios cônjuges são
ministros do sacramento, e o pacto conjugal nasce do ato livre e recíproco de
entregar-se e receber-se. A presença simultânea torna esse ato um fato público
e imediato, não uma declaração distante ou meramente declaratória.
Contudo, o cânon admite expressamente
a figura da procuração (cf. cân. 1105), ou seja, a representação jurídica de um
dos contraentes por mandatário legítimo. A procuração, quando corretamente
conferida, resolve a impossibilidade física de estar presente: o mandato deve
ser inequívoco e realizado de forma que a vontade do ausente fique documentada
e claramente transmitida ao momento da celebração. Importante: a presença por
procuração exige formalidades que visam garantir que não houve coação, erro ou
fraude — afinal, o que se procura é reproduzir, por meios legais, a mesma
certeza que haveria com a presença efetiva.
Historicamente, a disciplina sobre
representação evoluiu. Em períodos anteriores ao Código de 1917 era
relativamente mais frequente aceitar formas menos estritas de representação
(casos de casamento “por carta” ou por mensageiro). A codificação do século XX
rígida-lizou essa matéria precisamente para aumentar a certeza jurídica e a
publicidade do consentimento.
2. “Simultaneamente presentes”: presença física ou presença
mediada?
A expressão “se achem simultaneamente
presentes” deve ser lida em seu sentido literal e canônico: a lei pressupõe a
presença física dos contraentes ou dos seus procuradores no mesmo momento
ritual. Isso traduz a opção da Igreja por uma presença efetiva do sujeito que
consente, não por uma mera conexão mediada por tecnologias. Do ponto de vista
sacramental, a corporeidade do ato — o encontro humano real — tem significado:
o consentimento matrimonial é um ato pessoal que se dá em presença recíproca.
Com isso decorre uma consequência
prática óbvia: modalidades como transmissões por vídeo ou celebrações
“virtuais” não satisfazem, em regra, a exigência do cânon enquanto permanecerem
redigidos assim os textos legais. Não se trata de rejeitar a tecnologia em si,
mas de afirmar que a validade sacramental exige uma presença verificável e
pública que a legislação pretende assegurar. Importa, entretanto, registrar que
normas disciplinares são, em princípio, passíveis de adaptação normativa pelo
legislador competente ou de concessão de dispensas em casos devidamente
justificados; contudo, enquanto a norma vigorar em sua redação atual, a
interpretação conservadora — que exige presença física ou representação válida
— é a que melhor protege a integridade do consentimento.
3. A natureza disciplinar das formalidades e o campo da
dispensa
É crucial distinguir o que é essencial
ao sacramento (o consentimento livre e válido) e o que é dispositivo de direito
eclesiástico (formalidades canônicas). As determinações do cân. 1104 — presença
simultânea, forma e testemunhas — pertencem à disciplina eclesiástica destinada
a salvaguardar o sacramento; não são, em sentido estrito, constitutivas do
sacramento em sua essência por direito divino. Por isso, elas podem, em situações
excepcionais e segundo as normas, ser objeto de dispensa pelo Ordinário (ou por
autoridade competente), quando houver motivos graves que o justifiquem. A
operação pastoral dessa faculdade exige prudência: a dispensa deve sempre visar
a proteção do consentimento livre e público e não a sua relativização.
Também por essa razão as normas do
cân. 1104 se aplicam especificamente no âmbito da jurisdição e disciplina da
Igreja (cf. cân. 11 e cân. 1059, que delimitam, respectivamente, a natureza do
direito universal e a aplicação das normas matrimoniais entre batizados e
demais circunstâncias).
4. Oralidade e sinais (§2): validade, liceidade e critérios
de certeza
O §2 do cânon fixa a oralidade como
meio ordinário para a expressão do consentimento — isto é, a forma normal e
preferível para garantir a clareza do “sim”. Todavia, o texto canônico também
prevê uma solução prudente e humana: “se não puderem falar, por sinais
equivalentes”. Essa previsão protege aqueles que, por razão física (mudez
congênita, laringectomia, intubação temporária, afasia, etc.), não podem
expressar o consentimento por palavra, mas querem manifestá-lo de modo
irreversível e inteligível.
Aqui entra uma distinção prática e
teórica importante: a validade do matrimônio depende do consentimento real; a
oralidade é meio ordinário (ligeiramente ligado à liceidade da cerimônia), mas a
validade subsiste sempre que exista expressão inequívoca da vontade — seja por
palavras, seja por sinais compreendidos como equivalentes. Para que sinais
sejam aceitos como equivalentes, é necessário que:
- sejam
inequívocos no contexto cultural e pastoral em que ocorrem (gestos que,
naquele ambiente, expressem claramente o “sim”);
- haja,
preferencialmente, testemunhas ou intérpretes que atestem que o gesto
significou consentimento;
- o
ministro e as testemunhas assegurem que não existe ambiguidade ou coação;
- registre-se
alfabeticamente no livro paroquial a forma da manifestação do
consentimento e as observações pertinentes.
Em particular, para pessoas surdas
que utilizam língua de sinais, estes sinais constituem perfeitamente meios
equivalentes de manifestação, desde que haja intérprete ou testemunhas capazes
de certificá-los. Para pessoas temporariamente incapacitadas de falar (p.ex.,
intubadas), a doutrina pastoral recomenda prudência extrema: convém, sempre que
possível, obter confirmação escrita ou sinal inequívoco acompanhado de
testemunhas que conheçam a pessoa e possam atestar sua intenção.
Um ponto decisivo: os sinais
equivalentes não são um expediente para evitar a clareza; ao contrário, devem
aumentar a certeza de que o consentimento foi prestado livremente e com
conhecimento suficiente. Se houver qualquer dúvida razoável sobre o significado
do gesto, o ministro deve adiar a celebração até que a certeza exista.
5. Riscos práticos e recomendações pastorais
A disciplina do cân. 1104 orienta
também a prática pastoral dos ministros do matrimônio. Entre medidas prudentes
destacam-se:
- verificar
previamente, nas entrevistas de preparação, se o noivo ou a noiva
compreendem o significado do casamento e podem manifestar consentimento;
- quando
houver incapacidade de falar, organizar intérpretes ou testemunhas idóneas
que atestem a compreensão e o gesto equivalente;
- registrar
de forma detalhada no livro paroquial e, quando possível, obter declaração
escrita do contraente que não possa falar;
- evitar
soluções “virtuais” enquanto a norma for interpretada restritivamente; em
casos extraordinários, solicitar orientação ao Ordinário ou pedir dispensa
devidamente fundamentada;
- no
caso de procuração, exigir documentação clara do mandato e verificar
ausência de coação ou vícios.
Conclusão
O cânon 1104 procura garantir que o
ato por cui o matrimônio se realiza — o consentimento recíproco — seja um
evento público, livre e verificável. A presença simultânea e a expressão oral
são normas que protegem essa finalidade; a previsão de procuração e de sinais
equivalentes expressa a prudência pastoral da Igreja diante das limitações
humanas. Na tensão entre fidelidade à tradição sacramental e caridade pastoral,
a regra canônica oferece, assim, caminhos rigorosos e ao mesmo tempo humanos
para que o “sim” dos noivos seja efetivamente um ato de plena responsabilidade
e de verdade.