terça-feira, 14 de outubro de 2025

Crimes cometidos na Cidade do Vaticano. Como funciona a jurisdição?

Apesar de ser o menor Estado soberano do mundo, a Cidade do Vaticano possui um sistema legal singularmente complexo, especialmente no que tange à jurisdição penal. Esse sistema é rigidamente regulamentado pelo histórico Tratado de Latrão, firmado com a Itália em 1929, que estabeleceu as bases da cooperação judicial entre os dois Estados.

O princípio fundamental é a soberania judicial do Vaticano. Isso significa que, em regra, qualquer pessoa que cometa um crime dentro dos limites da Cidade do Vaticano está sujeita ao seu sistema de justiça autônomo. O julgamento, em primeira instância, corre perante o Tribunal Penal do Vaticano, que aplica a legislação penal vaticana. O sistema judicial próprio do Vaticano abrange desde o Tribunal (primeira instância) até o Tribunal de Apelação.

No entanto, o Tratado de Latrão prevê uma solução prática para a gestão de casos. O Artigo 22º dessa Convenção Acessória confere ao Vaticano a prerrogativa de delegar a jurisdição à Itália. Em outras palavras, se um crime é cometido, o Estado do Vaticano pode, a seu critério, solicitar formalmente ao governo italiano que prossiga com o julgamento. Nesses casos, a pessoa acusada é entregue às autoridades italianas, e todo o processo, desde a investigação até a sentença, corre conforme as leis e nos tribunais da Itália. Essa delegação é frequentemente utilizada em crimes de grande complexidade ou nos casos de flagrante, onde a estrutura policial e judicial da Itália é mais adequada para o processamento imediato.

O ponto mais distintivo e que revela a dependência da cooperação internacional é a execução das penas de prisão. A Cidade do Vaticano é um Estado-Cidade que não possui prisões ou penitenciárias próprias em seu território. Essa carência estrutural é resolvida de forma definitiva pelo Artigo 3º da Convenção Anexa ao Tratado de Latrão.

Se um Tribunal do Vaticano profere uma condenação à prisão, o Estado do Vaticano não executa essa pena internamente. Ele solicita ao governo italiano a execução da sentença. O condenado é, então, detido em instituições penitenciárias italianas. Por exemplo, no notório caso do "Vatileaks" ou em crimes financeiros, a condenação foi proferida pelo Tribunal do Vaticano, mas a pena foi cumprida em prisões italianas. O custo total da detenção e manutenção do condenado nas prisões italianas é, contudo, assumido integralmente pelo Estado da Cidade do Vaticano.

Em suma, a jurisdição penal do Vaticano é autônoma, mas a sua operacionalização é profundamente entrelaçada com o sistema italiano. O julgamento pode ser realizado no Vaticano ou delegado à Itália, mas a custódia e a prisão propriamente dita são sempre realizadas em solo italiano, estabelecendo um raro modelo de cooperação internacional para o exercício da justiça penal.

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Tolerância ou direito?

 

Existe um ponto central da evolução do direito à liberdade religiosa, que é a passagem da mentalidade de "tolerância" para a de "direito natural".

A visão de mera tolerância é inadequada para a relação entre o Estado (e as instituições) com o indivíduo. Essa visão é um resquício de uma época em que o poder político se sobrepunha ao foro íntimo da pessoa, e a não perseguição era vista como uma concessão graciosa. Digo isso no passado porque espero, com mito esperança mesmo, que seja apenas passado, embora os fatos contradigam isso.

A palavra "tolerância" vem do latim tolerare, que significa "suportar", "aguentar" ou "permitir". O Estado tolera aquilo que ele poderia, em tese, proibir, mas opta por não fazê-lo em nome da paz social. Essa visão, que marcou o pensamento de filósofos como John Locke, foi um avanço fundamental para a sua época, pois exigia do Estado que não coagisse a consciência de seus cidadãos. No entanto, ela ainda pressupunha que a liberdade de crença era um bem concedido, e não um direito inato, ou seja, natural do ser humano.

A grande revolução do constitucionalismo moderno, iniciada pela Declaração de Direitos da Virgínia, foi justamente inverter essa lógica. A liberdade de consciência e de crença deixou de ser um favor do Estado para se tornar um direito natural e inalienável. A partir desse momento, o papel do Estado não é mais o de tolerar, mas o de proteger e garantir um direito que o indivíduo já possui por natureza.

Aplicando essa distinção ao contexto da assistência religiosa em hospitais, fica evidente o porquê de a tolerância ser insuficiente. A necessidade de um amparo espiritual em momentos de doença e fragilidade não é algo que possa ser sujeito à discricionariedade ou à benevolência de uma instituição. É um direito que emana da própria dignidade da pessoa humana, que inclui a sua dimensão espiritual.

A Constituição Federal de 1988 e leis esparsas sobre o assunto, ao assegurarem a assistência religiosa, não estão "tolerando" a presença de ministros religiosos. Elas estão, de forma ativa, positivando e regulamentando um direito fundamental do paciente. O assistente religioso, portanto, não está ali por concessão da rotina hospitalar, mas como um agente da efetivação do direito do paciente de ser cuidado em sua totalidade.

A tolerância, no entanto, mantém um papel vital, mas em um contexto diferente: o relacionamento entre as próprias religiões.

Em uma sociedade plural e democrática, onde diferentes crenças coexistem, a tolerância é a virtude ética e social que permite a convivência pacífica. É a capacidade de uma fé respeitar a manifestação de outra, sem buscar sua conversão pela força (busca de conversão pode existir sem problema), sua deslegitimação ou sua eliminação. Enquanto o Estado garante o direito à liberdade religiosa, os cidadãos de diferentes credos devem praticar a tolerância mútua, reconhecendo a dignidade do outro, mesmo diante de convicções diferentes.

A visão de uma evolução gradual e linear, de um progresso constante do conceito de "tolerância" para o de "direito natural", é uma idealização que a história e a prática desmentem. Sua percepção de que há retrocessos significativos é não apenas correta, mas essencial para uma análise honesta do tema.

A declaração de um direito, seja em um documento revolucionário como a Declaração de Direitos da Virgínia ou em uma Constituição moderna, é um ponto de partida, não um ponto de chegada. O reconhecimento formal de uma prerrogativa fundamental não elimina, por si só, os desafios de sua efetivação. A distância entre a norma jurídica e a realidade social é o espaço onde os "retrocessos vultosos" ocorrem.

Essa fragilidade se manifesta de diversas formas. Uma delas é a persistência do autoritarismo que mesmo após as grandes declarações de direitos, regimes totalitários e ditatoriais ao longo do século XX (e XXI) demonstraram que a liberdade religiosa e a dignidade humana podem ser suprimidas por simples ato de força, ignorando solenemente os preceitos de qualquer lei fundamental. O Brasil, em sua própria história, já vivenciou a suspensão de garantias que pareciam inabaláveis.

Outro ponto é o abismo entre a teoria e a prática. O direito à assistência religiosa está garantido em nossa Constituição e em leis federais. No entanto, o positivismo estreito da burocracia e a inércia administrativa das instituições podem transformar essa garantia em letra morta.

O paciente que é impedido de receber uma unção dos enfermos no leito de morte, por conta de um "horário de visitas" ou de um "protocolo" não essencial, é vítima de um retrocesso prático, mesmo que a lei continue em vigor. O direito, que deveria ser um escudo, torna-se prisioneiro de um processo.

A história dos direitos humanos, portanto, não é um conto de progresso ininterrupto, mas uma crônica de lutas constantes, vitórias parciais e derrotas temporárias. A passagem da "tolerância" para o "direito" é uma conquista conceitual imensa, mas que precisa ser reafirmada a cada dia, em cada hospital, em cada instância do Poder Público e, sobretudo, na mentalidade de cada profissional de saúde.  Esses últimos são essenciais.

O direito à assistência religiosa nos hospitais é o reflexo mais nítido dessa luta contínua. As barreiras burocráticas não são meros entraves administrativos, mas manifestações contemporâneas de uma mentalidade que, no fundo, ainda vê a liberdade de crença como uma concessão, uma graciosidade, um mero favor e não como um direito fundamental e inviolável.

A conquista da liberdade religiosa e da dignidade humana nunca é definitiva. É uma batalha que se trava continuamente, tanto nas grandes arenas da história quanto nos pequenos espaços do dia a dia.

O Estado, portanto, e suas instituições não devem tolerar a assistência religiosa; eles devem garanti-la como um direito. Já a relação entre as pessoas e os diferentes grupos religiosos deve ser pautada pela tolerância e pelo respeito mútuo, que são a base de uma convivência harmoniosa em uma sociedade laica e plural.

domingo, 14 de setembro de 2025

Ilhas de ecos

Numa sociedade em que a comunicação é instantânea e abundante, a polarização não se manifesta como um debate vibrante entre polos opostos. O que observamos, na realidade, é a formação de ilhas ideológicas, fortificadas por algoritmos que nos servem apenas o que queremos ver. Nesses territórios, a voz do outro não é ouvida, mas distorcida e silenciada por um coro de vozes familiares. A desonestidade intelectual é que tem vez. 

​A expressão "quem tem ouvidos, ouça" assume um novo significado. Já não é um convite à escuta atenta, mas um desafio para romper a bolha. Pois o problema não é a existência de dois lados distintos, o que seria saudável para o debate. O problema reside na recusa de um lado em ouvir o outro. O debate sincero se esvai, dando lugar à desonestidade intelectual, onde a verdade se torna uma ferramenta de ataque e a lógica é sacrificada em nome da lealdade ao grupo.

​O que parece ser uma acalorada batalha de ideias é, na verdade, uma guerra de monólogos. Cada ilha grita sua própria verdade, enquanto o diálogo e a busca por um terreno comum se tornam a grande utopia da nossa era. A polarização, em sua forma mais grotesca, não nos divide em polos, mas nos isola em ilhas de ecos, onde o único som que ouvimos é o da nossa própria voz.

sábado, 13 de setembro de 2025

O dia em que as Cavernas de Aço se tornaram nossas casas

Lembro-me de um dia, em 2020, quando saí para a rua e me vi atravessando-a apenas para evitar cruzar com um vizinho. Nem era muito o meu hábito, apesar de toda a loucura que vivíamos. O vizinho me viu, eu o vi, e a vergonha silenciosa daquele passo para o lado foi mais pesada que o ar em meus pulmões. Naquele instante, não éramos dois seres humanos, mas sim duas bolhas ambulantes, cada uma protegendo-se da suposta ameaça da outra. Foi ali que percebi: a ficção de Isaac Asimov havia se tornado realidade.

​Em "Cavernas de Aço", o mestre da ficção científica nos apresenta a um futuro da Terra onde a humanidade, superpopulosa, vive confinada em gigantescas cidades subterrâneas, as "Cavernas de Aço". Lá dentro, o ar é artificial, a comida é sintética e o contato humano é rigidamente controlado. Os terráqueos, vítimas de uma agorafobia coletiva, temem o espaço aberto, o sol e, sobretudo, os "Spacers" — os humanos que, livres e robustos, colonizaram as estrelas. A sociedade se fechou em si mesma, não apenas fisicamente, mas mentalmente, enxergando no "outro" (seja ele um Spacer ou um robô) a personificação de um medo.

​Essa era uma realidade distante, de um livro de 1954, mas se tornou estranhamente familiar durante a pandemia da COVID-19.

​A "sanha higienista" que se instalou, e ainda vive na cabeça de muitos, não foi apenas uma resposta sanitária, mas um reflexo da nossa própria agorafobia social. Nossas casas se transformaram em bunkers particulares, os escritórios em fortalezas virtuais. O contato físico, antes um gesto natural de afeto, se tornou um ato de risco. O aperto de mão, um abraço, um simples esbarrão — tudo isso passou a ser evitado como se fosse um veneno.

​Nós nos fechamos em nossas próprias "cavernas de aço". O inimigo não era o sol ou a vastidão do espaço, mas um vírus invisível, e o "outro" — o vizinho, o colega, o estranho no supermercado — era o seu portador em potencial. Criamos protocolos rígidos de comportamento social, não apenas por segurança, mas por um medo crescente do contato, uma desconfiança generalizada que ecoava a aversão dos terráqueos aos Spacers.

​Asimov, com sua genialidade, nos mostrou que o confinamento físico gera um confinamento mental, uma aversão ao que está fora de nossa bolha de controle. A pandemia não nos aprisionou em cidades de metal, mas nos impôs uma clausura social e emocional. Olhávamos o mundo através de janelas, de telas de computador, e a vida que acontecia lá fora parecia cada vez mais estranha e perigosa. Descobrimos que morremos, que não somos imortais. 

​A crônica de Asimov, assim como a nossa, é um lembrete de que a verdadeira liberdade não está na fuga ou no isolamento, mas na coragem de enfrentar o mundo, de abrir as portas e de reencontrar o outro, não como uma ameaça, mas como um companheiro de jornada. As "cavernas de aço" não são feitas apenas de concreto e metal, mas de medo e desconfiança. E só nós temos o poder de sair delas.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

"Quem tem ouvidos, ouça"

"Quem tem ouvidos, ouça". Esse é um brocardo, digamos assim, muito antigo e até bíblico. Podemos hoje entender que essa expressão se dá justamente para pessoas que estão tão imersas em suas ideologias que não conseguem seguir a lógica mais clara. Eles não têm mais ouvidos. Não ouvem, seja lá o que for dito, se não os agradar e for a favor de sua ideologia.

Esse é um comportamento que observamos atualmente, onde a adesão a uma ideologia pode influenciar profundamente a maneira como as pessoas percebem e processam informações.

​Essa observação reflete um fenômeno conhecido como viés de confirmação. Ele descreve a tendência humana de buscar, interpretar e favorecer informações que confirmem suas crenças ou ideologias pré-existentes, enquanto se ignora ou desconsidera evidências que as contradizem. Em outras palavras, a pessoa só "ouve" o que já acredita ser verdade.

Em um mundo com um volume enorme de informações e diferentes pontos de vista, o viés de confirmação pode levar a uma polarização desnecessária e dificultar o debate construtivo. A expressão serve, nesse contexto, como um lembrete da importância de estar aberto a diferentes perspectivas, mesmo que elas desafiem as próprias convicções.

Essa percepção de mundo vem aumentando cada dia mais justamente devido ao volume de informações e à "bolha" que ser cria nas redes sociais ao só ouvir, ver e ler o que está de acordo com o que pensa devido ao algoritmo.

Esse fenômeno de só entender o quite já se acredita, de não ter ouvidos para ouvir, impulsionado pelos algoritmos das redes sociais e outras plataformas digitais, amplifica o viés de confirmação.

​Em vez de expor as pessoas a uma variedade de ideias, esses algoritmos criam "câmaras de eco", as famosas "bolhas", onde o indivíduo é constantemente bombardeado com conteúdo que valida suas crenças existentes. Isso pode levar a uma espiral onde a ideologia se fortalece e o pensamento crítico se enfraquece.

A analogia de "não ter mais ouvidos" se torna particularmente relevante nesse contexto. O acesso a informações diversas e a abertura para ouvir outros pontos de vista não são garantidos apenas pela abundância de dados, mas exigem uma atitude proativa para buscar e considerar o que está fora da própria bolha.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

O consentimento matrimonial segundo o cânon 1104 — presença, forma e expressão

O cânon 1104 do Código de Direito Canônico disciplina um aspecto central do rito e da validade do matrimônio: a maneira pela qual o consentimento dos noivos deve ser prestado. A compreensão correta desse dispositivo exige olhar simultaneamente para três dimensões: (a) a exigência de presença simultânea dos contraentes (ou de seus procuradores), (b) a forma ordinária de expressão do consentimento (a oralidade) e (c) as soluções permitidas quando a oralidade for impossível (os sinais equivalentes). Essas três dimensões articulam o princípio teológico-jurídico básico: o matrimônio é um ato de vontade pessoal, público e verificável, e a legislação canônica busca proteger a liberdade e a clareza desse ato.

 

1. Presença simultânea (§1): o sentido canônico e a figura da procuração

O §1 do cânon 1104 dispõe que, para que o matrimônio seja válido, “os contraentes se achem simultaneamente presentes, por si ou por meio de procurador”. Essa exigência não é um capricho formal: ela assegura a publicidade do consentimento e a possibilidade de sua verificação por parte da comunidade e do próprio ministro da Igreja. O fundamento teológico é claro: na doutrina católica os próprios cônjuges são ministros do sacramento, e o pacto conjugal nasce do ato livre e recíproco de entregar-se e receber-se. A presença simultânea torna esse ato um fato público e imediato, não uma declaração distante ou meramente declaratória.

Contudo, o cânon admite expressamente a figura da procuração (cf. cân. 1105), ou seja, a representação jurídica de um dos contraentes por mandatário legítimo. A procuração, quando corretamente conferida, resolve a impossibilidade física de estar presente: o mandato deve ser inequívoco e realizado de forma que a vontade do ausente fique documentada e claramente transmitida ao momento da celebração. Importante: a presença por procuração exige formalidades que visam garantir que não houve coação, erro ou fraude — afinal, o que se procura é reproduzir, por meios legais, a mesma certeza que haveria com a presença efetiva.

Historicamente, a disciplina sobre representação evoluiu. Em períodos anteriores ao Código de 1917 era relativamente mais frequente aceitar formas menos estritas de representação (casos de casamento “por carta” ou por mensageiro). A codificação do século XX rígida-lizou essa matéria precisamente para aumentar a certeza jurídica e a publicidade do consentimento.

 

2. “Simultaneamente presentes”: presença física ou presença mediada?

A expressão “se achem simultaneamente presentes” deve ser lida em seu sentido literal e canônico: a lei pressupõe a presença física dos contraentes ou dos seus procuradores no mesmo momento ritual. Isso traduz a opção da Igreja por uma presença efetiva do sujeito que consente, não por uma mera conexão mediada por tecnologias. Do ponto de vista sacramental, a corporeidade do ato — o encontro humano real — tem significado: o consentimento matrimonial é um ato pessoal que se dá em presença recíproca.

Com isso decorre uma consequência prática óbvia: modalidades como transmissões por vídeo ou celebrações “virtuais” não satisfazem, em regra, a exigência do cânon enquanto permanecerem redigidos assim os textos legais. Não se trata de rejeitar a tecnologia em si, mas de afirmar que a validade sacramental exige uma presença verificável e pública que a legislação pretende assegurar. Importa, entretanto, registrar que normas disciplinares são, em princípio, passíveis de adaptação normativa pelo legislador competente ou de concessão de dispensas em casos devidamente justificados; contudo, enquanto a norma vigorar em sua redação atual, a interpretação conservadora — que exige presença física ou representação válida — é a que melhor protege a integridade do consentimento.

 

3. A natureza disciplinar das formalidades e o campo da dispensa

É crucial distinguir o que é essencial ao sacramento (o consentimento livre e válido) e o que é dispositivo de direito eclesiástico (formalidades canônicas). As determinações do cân. 1104 — presença simultânea, forma e testemunhas — pertencem à disciplina eclesiástica destinada a salvaguardar o sacramento; não são, em sentido estrito, constitutivas do sacramento em sua essência por direito divino. Por isso, elas podem, em situações excepcionais e segundo as normas, ser objeto de dispensa pelo Ordinário (ou por autoridade competente), quando houver motivos graves que o justifiquem. A operação pastoral dessa faculdade exige prudência: a dispensa deve sempre visar a proteção do consentimento livre e público e não a sua relativização.

Também por essa razão as normas do cân. 1104 se aplicam especificamente no âmbito da jurisdição e disciplina da Igreja (cf. cân. 11 e cân. 1059, que delimitam, respectivamente, a natureza do direito universal e a aplicação das normas matrimoniais entre batizados e demais circunstâncias).

 

4. Oralidade e sinais (§2): validade, liceidade e critérios de certeza

O §2 do cânon fixa a oralidade como meio ordinário para a expressão do consentimento — isto é, a forma normal e preferível para garantir a clareza do “sim”. Todavia, o texto canônico também prevê uma solução prudente e humana: “se não puderem falar, por sinais equivalentes”. Essa previsão protege aqueles que, por razão física (mudez congênita, laringectomia, intubação temporária, afasia, etc.), não podem expressar o consentimento por palavra, mas querem manifestá-lo de modo irreversível e inteligível.

Aqui entra uma distinção prática e teórica importante: a validade do matrimônio depende do consentimento real; a oralidade é meio ordinário (ligeiramente ligado à liceidade da cerimônia), mas a validade subsiste sempre que exista expressão inequívoca da vontade — seja por palavras, seja por sinais compreendidos como equivalentes. Para que sinais sejam aceitos como equivalentes, é necessário que:

  • sejam inequívocos no contexto cultural e pastoral em que ocorrem (gestos que, naquele ambiente, expressem claramente o “sim”);
  • haja, preferencialmente, testemunhas ou intérpretes que atestem que o gesto significou consentimento;
  • o ministro e as testemunhas assegurem que não existe ambiguidade ou coação;
  • registre-se alfabeticamente no livro paroquial a forma da manifestação do consentimento e as observações pertinentes.

Em particular, para pessoas surdas que utilizam língua de sinais, estes sinais constituem perfeitamente meios equivalentes de manifestação, desde que haja intérprete ou testemunhas capazes de certificá-los. Para pessoas temporariamente incapacitadas de falar (p.ex., intubadas), a doutrina pastoral recomenda prudência extrema: convém, sempre que possível, obter confirmação escrita ou sinal inequívoco acompanhado de testemunhas que conheçam a pessoa e possam atestar sua intenção.

Um ponto decisivo: os sinais equivalentes não são um expediente para evitar a clareza; ao contrário, devem aumentar a certeza de que o consentimento foi prestado livremente e com conhecimento suficiente. Se houver qualquer dúvida razoável sobre o significado do gesto, o ministro deve adiar a celebração até que a certeza exista.

 

5. Riscos práticos e recomendações pastorais

A disciplina do cân. 1104 orienta também a prática pastoral dos ministros do matrimônio. Entre medidas prudentes destacam-se:

  • verificar previamente, nas entrevistas de preparação, se o noivo ou a noiva compreendem o significado do casamento e podem manifestar consentimento;
  • quando houver incapacidade de falar, organizar intérpretes ou testemunhas idóneas que atestem a compreensão e o gesto equivalente;
  • registrar de forma detalhada no livro paroquial e, quando possível, obter declaração escrita do contraente que não possa falar;
  • evitar soluções “virtuais” enquanto a norma for interpretada restritivamente; em casos extraordinários, solicitar orientação ao Ordinário ou pedir dispensa devidamente fundamentada;
  • no caso de procuração, exigir documentação clara do mandato e verificar ausência de coação ou vícios.

 

Conclusão

O cânon 1104 procura garantir que o ato por cui o matrimônio se realiza — o consentimento recíproco — seja um evento público, livre e verificável. A presença simultânea e a expressão oral são normas que protegem essa finalidade; a previsão de procuração e de sinais equivalentes expressa a prudência pastoral da Igreja diante das limitações humanas. Na tensão entre fidelidade à tradição sacramental e caridade pastoral, a regra canônica oferece, assim, caminhos rigorosos e ao mesmo tempo humanos para que o “sim” dos noivos seja efetivamente um ato de plena responsabilidade e de verdade.

 

terça-feira, 12 de agosto de 2025

A Consolidação da Forma Matrimonial: Do Concílio de Trento ao Código Atual

A história do Direito Canônico Matrimonial é uma narrativa contínua de evolução legislativa e de respostas a desafios teológicos, jurídicos e pastorais. Durante séculos, o matrimônio foi considerado, antes de tudo, uma realidade de direito natural, cujo vínculo se estabelecia pelo simples e legítimo consentimento dos nubentes. Esta compreensão, alicerçada no princípio consensus facit nuptias, dispensava formalidades externas para a validade da união.

Contudo, essa liberdade original, embora respeitasse a essência natural do matrimônio, gerou sérios problemas práticos. Os chamados casamentos clandestinos — contraídos sem publicidade, sem testemunhas e muitas vezes contra a vontade das famílias — criavam um cenário de insegurança jurídica e pastoral. A ausência de provas formais do vínculo resultava em disputas sobre a sua existência e validade, colocando em risco não apenas a estabilidade conjugal, mas também a legitimidade dos filhos e a paz social.

 

O Concílio de Trento e o Decreto Tametsi

A resposta definitiva a essa crise veio do Concílio de Trento (1545–1563), em um momento histórico marcado pela Reforma Protestante e pela necessidade de reafirmar a doutrina e a disciplina da Igreja. No dia 11 de novembro de 1563, na Sessão XXIV, foi promulgado o célebre Decreto Tametsi, que introduziu uma profunda transformação na disciplina matrimonial.

O Tametsi estabeleceu que, para a validade do matrimônio, este deveria ser celebrado perante o pároco próprio de um dos contraentes ou um sacerdote delegado, e na presença de ao menos duas testemunhas qualificadas. O descumprimento desta exigência acarretava a invalidade do vínculo — uma medida sem precedentes, pois pela primeira vez na história a Igreja condicionava a validade do matrimônio à observância de uma forma canônica específica.

A motivação para tal medida residia no entendimento amadurecido de que, embora o matrimônio seja um direito natural, o casamento entre batizados é também um sacramento sobre o qual a Igreja possui competência legislativa plena. O objetivo não era substituir o consentimento — elemento constitutivo do vínculo matrimonial — mas protegê-lo, dar-lhe publicidade e prevenir abusos. O Concílio reafirmou que os próprios nubentes são ministros do sacramento e que a validade de sua vontade não dependia de consentimento paterno, assegurando maior autonomia aos contraentes.

 

Dificuldades de aplicação e o caso brasileiro

Embora promulgado em 1563, o Tametsi não teve aplicação universal imediata. Sua execução estava condicionada à promulgação em cada diocese, e em alguns países a implementação encontrou barreiras políticas.

O Brasil é um exemplo emblemático. Durante o período colonial e imperial, vigorava o sistema do Padroado, pelo qual o Estado — representado pela Coroa portuguesa e, posteriormente, pelo Imperador — detinha o direito de aprovar (o chamado placet) ou vetar a aplicação de normas eclesiásticas. Isso impediu a plena vigência do Tametsi no território nacional por mais de três séculos.

Somente com a Proclamação da República (1889) e a promulgação do Decreto 119-A de 1890, que estabeleceu a separação entre Igreja e Estado, foi possível aplicar livremente a legislação tridentina no Brasil, libertando-a das amarras do placet estatal.

 

O Decreto Ne Temere e a universalização da forma canônica

Apesar do avanço trazido pelo Tametsi, sua aplicação limitada geograficamente ainda permitia a existência de casamentos clandestinos em alguns lugares. A solução definitiva veio com o Decreto Ne Temere, promulgado em 1907 pelo Papa Pio X, por meio da Congregação para o Concílio.

O Ne Temere universalizou a obrigatoriedade da forma canônica, eliminando as exceções que ainda subsistiam. A partir de sua vigência, todos os católicos, em qualquer parte do mundo, estavam obrigados a contrair matrimônio segundo a forma estabelecida pela Igreja, sob pena de nulidade. Essa medida garantiu a uniformidade da disciplina matrimonial e praticamente extinguiu os casamentos clandestinos no mundo católico.

 

Do Código de 1917 ao Código de 1983

A codificação do Direito Canônico de 1917 incorporou a essência do Tametsi e do Ne Temere, sistematizando as normas sobre a forma canônica e estabelecendo regras claras para a validade dos matrimônios. Essa disciplina se manteve como base até a promulgação do Código de Direito Canônico de 1983, que, inspirado no Concílio Vaticano II, manteve o núcleo da forma canônica, adaptando-a às exigências pastorais contemporâneas.

Atualmente, o cân. 1108 do Código de 1983 consagra a exigência de celebração diante do Ordinário do lugar, do pároco ou de um sacerdote ou diácono delegado, com a presença de duas testemunhas, para a validade do matrimônio. Trata-se, portanto, da continuidade histórica de uma disciplina iniciada no século XVI e consolidada ao longo de mais de quatro séculos.

 

Conclusão

A trajetória que vai do consensus facit nuptias puro e simples até a forma canônica obrigatória demonstra como o Direito Canônico matrimonial evoluiu para responder a necessidades concretas da vida eclesial. O que começou como uma solução pastoral para combater abusos e incertezas jurídicas se transformou em um pilar da segurança jurídica e sacramental da Igreja.

Hoje, a forma canônica não é um mero formalismo, mas um instrumento que garante a publicidade, a liberdade e a autenticidade do consentimento matrimonial, preservando a dignidade do sacramento e protegendo a comunidade contra vínculos inválidos ou duvidosos.

 

segunda-feira, 28 de julho de 2025

O Vínculo Nupcial não consumado: Uma Análise Canônica da Dispensa Matrimonial

Emanuel de Oliveira Costa Jr. (Advogado canonista e civil, professor, Presidente da UNIJUC – União dos Juristas Católicos de Goiás)

 

 

O matrimônio, no âmbito da Igreja Católica, transcende a mera formalidade legal para se apresentar como uma realidade teológica e jurídica de profunda significação. Este consórcio de toda a vida, ordenado por sua própria índole natural ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, assume, entre batizados, a excelsa dignidade de sacramento[1]. No entanto, a complexidade da condição humana impõe desafios que o próprio ordenamento canônico se propõe a dirimir, notadamente em face da não consumação do vínculo. O presente artigo debruça-se sobre o instituto da dispensa do matrimônio não consumado, suas bases normativas e os intrincados desafios probatórios, especialmente quando a união envolve a disparidade de culto.

I. A Estrutura Matrimonial Canônica: Entre a Natureza e o Sacramento

A compreensão do matrimônio exige uma perscrutação de suas distintas, porém interligadas, dimensões. Primeiramente, é imperativo reconhecer sua natureza intrínseca como uma instituição de direito natural e divino. Tal prerrogativa significa que as características essenciais da união conjugal – a unidade e a indissolubilidade – e seus fins primordiais – o bem recíproco dos cônjuges e a procriação e educação da prole – são elementos inerentes a qualquer casamento válido, independentemente do estatuto batismal das partes envolvidas. Trata-se de um pacto pelo qual um homem e uma mulher se doam e se acolhem mutuamente em uma comunidade de vida e amor.

A esta fundação natural, soma-se, para os batizados, a elevação do matrimônio à categoria de sacramento[2], conforme preceitua o Cânon 1055, §2, do Código de Direito Canônico de 1983. Este matrimônio, denominado "rato" (ratum), adquire uma indissolubilidade particular se, além de rato, for "consumado" (consummatum), tornando-se um vínculo que "nenhuma autoridade humana pode dissolver" (Cân. 1141). Contudo, a Igreja, em sua solicitude pastoral, também contempla e regulamenta os matrimônios válidos entre batizados e não batizados, os quais, embora careçam da sacramentalidade, constituem um vínculo jurídico-natural legítimo, desde que precedidos da necessária dispensa do impedimento de disparidade de culto (Cân. 1086).

II. A Consumação Matrimonial: Conceituação e Relevância Jurídica

A consumação do matrimônio, elemento fulcral para a compreensão de sua indissolubilidade absoluta, é definida pelo Cânon 1061, §1, como "o ato conjugal, realizado de modo humano, de que o matrimônio é apto por sua própria natureza para a geração da prole, ao qual os cônjuges livremente se dedicaram." Em essência, refere-se à primeira realização do ato sexual completo e penetrativo após a celebração das núpcias, possuindo intrinsecamente a potencialidade procriativa.

A ausência de tal consumação confere ao matrimônio uma peculiaridade jurídica: impede que ele atinja sua plena e absoluta indissolubilidade. É precisamente essa circunstância que fundamenta a possibilidade de sua dissolução por um ato gracioso e soberano da suprema autoridade eclesiástica.

III. A Dispensa Papal: Dissolução do Vínculo Não Consumado (Dispensatio Super Rato)

Diversamente da declaração de nulidade matrimonial, que postula a inexistência do vínculo desde sua origem, a dispensa do matrimônio não consumado pressupõe a pré-existência de um vínculo matrimonial válido que, por não ter sido consumado, é passível de ser dissolvido pela autoridade pontifícia.

O Cânon 1142 consagra essa prerrogativa, estabelecendo que "o matrimônio não consumado, entre batizados ou entre parte batizada e parte não batizada, pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice por justa causa, a pedido de ambas as partes ou de uma delas, mesmo que a outra não queira."

Esta dispensa pontifícia abrange, portanto, ambas as modalidades de matrimônio não consumado:

A) O matrimônio rato e não consumado: Aquele em que ambos os cônjuges são batizados, e a união, embora sacramental em sua origem, não foi aperfeiçoada pela comunhão corpórea.

B) O matrimônio válido com disparidade de culto e não consumado: Aquele em que um dos cônjuges é batizado e o outro não. Embora careça da sacramentalidade, é um matrimônio válido sob a lei natural, e sua não consumação também o torna passível da dispensa.

O cerne dessa dispensa não reside na mera "liberação de obrigações naturais". Sua finalidade precípua e seu efeito jurídico direto são a dissolução do próprio vínculo matrimonial. Ao ser concedida, a união que outrora vinculava as partes é desfeita de forma plena e definitiva aos olhos da Igreja, restituindo-lhes a liberdade para contrair novo matrimônio canonicamente válido, caso assim o desejem e as demais condições jurídicas o permitam.

IV. A Extensão da Jurisdição Eclesiástica na Disparidade de Culto

A natureza da jurisdição da Igreja sobre o matrimônio com disparidade de culto é um ponto de notável profundidade conceitual. Embora a parte não batizada não se encontre, por princípio, sujeita às leis meramente eclesiásticas (Cân. 11), a autoridade da Santa Sé para dissolver um matrimônio válido não consumado que a envolva não decorre de uma submissão geral de sua parte ao ordenamento canônico.

Em vez disso, essa prerrogativa advém de um poder especial da Igreja sobre o vínculo matrimonial em si, poder que se entende derivado da instituição divina e do "poder das chaves" confiado a Pedro. O matrimônio, mesmo na disparidade de culto, é reconhecido como uma realidade de direito natural e divino, e suas propriedades essenciais são consideradas de origem transcendente, não meramente positiva.

Desse modo, ao conceder a dispensa, a Igreja atua sobre uma realidade jurídica – o vínculo válido – que, por sua própria natureza, obriga a ambas as partes. A dissolução do vínculo tem o condão de liberar ambas as partes daquela união específica. Para o cônjuge batizado, a consequência é a plena liberdade para contrair novo matrimônio na Igreja. Para o cônjuge não batizado, a dispensa papal significa que, para os fins do ordenamento canônico, seu casamento anterior com o católico é considerado inexistente, removendo assim qualquer impedimento para um futuro matrimônio canônico, caso venha a se casar com outro católico, por exemplo. Não se trata, portanto, de impor leis eclesiásticas a quem a elas não está sujeito, mas de exercer uma prerrogativa divina sobre um vínculo validamente estabelecido que tem implicações para o ordenamento da Igreja.

V. A Prova da Não Consumação: Da Intimidade aos Meios Processuais

A comprovação da não consumação é um dos maiores desafios probatórios, dada a natureza intrínseca e privada do ato conjugal. No entanto, a busca pela verdade material é um imperativo no processo canônico (Cân. 1526 §1), e o sistema jurídico eclesiástico oferece instrumentos para sua elucidação.

O Cânon 1061, §2, estabelece uma presunção crucial: "Depois da celebração do matrimônio, se os cônjuges coabitaram, presume-se a consumação; se o matrimônio foi rato, ou rato e não consumado, é o contrário, permanecendo a prova." Esta presunção iuris tantum (que admite prova em contrário) inverte o ônus da prova: uma vez demonstrada a coabitação, caberá à parte que alega a não consumação prová-la. O Comentário Exegético ao Código de Direito Canônico (Marzoa et al., Vol. III/2, Comentário ao Cân. 1061) destaca que a coabitação funciona como um "indício externo de um ato interno que normalmente ocorre entre cônjuges", visando à celeridade processual.

A prova da não consumação, portanto, é multifacetada:

A) Depoimento das Partes: As declarações dos próprios cônjuges são a principal fonte de prova. O interrogatório deve ser conduzido com prudência, mas com rigor e precisão, indagando sobre os detalhes da vida íntima, os motivos da ausência do ato conjugal (impedimentos físicos, psicológicos, recusas reiteradas) e as tentativas de sua realização. A coerência interna das narrativas e a concordância entre os relatos dos cônjuges são elementos de peso.

B) Prova Testemunhal: Embora indiretas, as testemunhas podem oferecer "provas morais" e circunstanciais. Familiares próximos, amigos ou confidentes podem depor sobre: confissões feitas pelos cônjuges acerca da intimidade, observações sobre a dinâmica da vida conjugal que sugeriam a ausência de coabitação sexual (e.g., dormirem em quartos separados), ou conhecimento de condições de saúde impeditivas. A jurisprudência da Rota Romana, conforme uma Sentença coram Wynen, de 27 de novembro de 1980 (RR, vol. LXXII, p. 770, n. 4), preconiza que, embora os depoimentos de parentes devam ser avaliados "com cautela", não devem ser "sumariamente rejeitados", especialmente quando os fatos se desenrolam no âmbito familiar e o conhecimento de terceiros é limitado. A credibilidade de cada testemunho é sopesada pelo juiz à luz do Cânon 1572.

C) Prova Pericial: Em situações onde a não consumação é atribuída a impedimentos de ordem física (e.g., vaginismo, impotência antecedente e perpétua) ou psicológica (e.g., aversão sexual grave, bloqueios), a expertise de peritos médicos ou psicólogos nomeados pelo Tribunal é essencial para corroborar as alegações. O Comentário Exegético (Marzoa et al.) certamente sublinha a importância de tais pareceres para elucidar as causas clínicas da não consumação.

D) Prova Documental: Registros médicos, laudos de terapias conjugais focadas em questões de intimidade, ou outras correspondências que corroborem as alegações podem ser apresentados.

Conclusão

A dispensa do matrimônio não consumado, seja ele sacramental ou válido com disparidade de culto, é um instrumento do Direito Canônico que reflete a pastoralidade da Igreja e sua busca pela verdade. Embora o percurso probatório possa ser árduo devido à intimidade dos fatos, a precisão normativa, a flexibilidade processual e a exigência de uma prova consistente permitem ao Tribunal eclesiástico discernir a realidade do vínculo e, quando cabível, proceder à sua dissolução. Tal instituto não apenas oferece uma via de libertação para os fiéis, mas também reafirma a compreensão da Igreja sobre a sacralidade e a natureza do matrimônio em todas as suas dimensões.

 



[1] Cânon 1055, §1 do CIC de 1983

[2] Cânon 1055, §2 do CIC de 1983

sexta-feira, 25 de julho de 2025

A Lei Magnitsky e o debate sobre soberania nacional no Brasil.

Recentemente, a discussão sobre a aplicação da Lei Magnitsky a figuras políticas no Brasil, especialmente a um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), gerou um intenso debate público. A resposta de setores do governo, do próprio STF e de parte da classe política e militância tem sido a defesa intransigente da soberania nacional. Mas o que significa, de fato, soberania neste contexto? 

I - O Equívoco do Discurso Soberanista Atual

O uso do termo "soberania nacional" por alguns grupos de direita e esquerda, e a preocupação com um suposto "impacto do globalismo" pelas sanções externas, denota uma compreensão equivocada do conceito. A ideia de que uma lei estrangeira – com suas punições como congelamento de bens ou contas bancárias nos Estados Unidos – "afrontaria a soberania nacional" é um equívoco.

No campo da Ciência Política, soberania refere-se à capacidade de um povo ou de um país de tomar suas próprias decisões cruciais, sem interferência externa. Um país é soberano quando suas escolhas mais importantes são feitas internamente, e não ditadas por forças ou nações estrangeiras.

II - Soberania Não é Ditadura ou Nacionalismo Tacanho

É fundamental desassociar a ideia de soberania de um nacionalismo obsoleto e autoritário, como o "nacionalismo getulista" ou outras vertentes ditatoriais. Getúlio Vargas, ao se tornar soberano em relação ao povo – ou seja, ao concentrar o poder e anular a soberania popular –, exemplifica justamente o que deve ser combatido. Ditadores precisam ser derrubados, e essa derrubada pode e, muitas vezes, deve contar com forças externas, conforme argumentam autores como Gene Sharp.

Getúlio Vargas, em sua ditadura que ele mesmo confirmava ser, era o único soberano. Nem o Estado, nem o povo e suas decisões, nem o parlamento exerciam essa soberania.

O jurista alemão Carl Schmitt, em sua conhecida obra "Legalidade e Legitimidade", cunhou a expressão de que "soberano é aquele que decide sobre a exceção". Um estado de exceção é precisamente o momento em que a soberania das leis e o funcionamento natural das instituições são suspensos. Quando as instituições democráticas se desviam de seu propósito e passam a atuar tiranicamente, a soberania popular é abolida. Schmitt descreve que o verdadeiro soberano é aquele que, mesmo em meio a uma crise institucional brutal, mantém-se de pé e detém o poder de comando, inclusive o poder de polícia do Estado.

 III - O Verdadeiro Soberano e a Lei Magnitsky: Por Que o Discurso de "Não Intromissão" é Frágil

A descrição de Schmitt não é uma defesa de tal poder, mas uma análise de como ele funciona na prática. No Brasil, se as instituições não operam em harmonia e a decisão final recai sobre uma única pessoa, o conceito de soberania popular é, na essência, esvaziado. O verdadeiro soberano pode ser a expressão da vontade popular (como idealizado na Constituição Americana, que preza a liberdade e os freios e contrapesos), ou, lamentavelmente, um tirano que se apropria do poder em um estado de exceção – muitas vezes provocado por ele próprio, como historicamente vimos com Getúlio Vargas e Hitler.

Quando setores da política brasileira, tanto da chamada direita quanto da esquerda, utilizam o termo "soberania" para se opor à Lei Magnitsky, o fazem de forma retórica. Eles não estão, de fato, defendendo a participação popular ou o poder do povo decidir seu próprio destino em relação a políticos, ao mercado financeiro ou a estatais que, por vezes, controlam o país com mão de ferro. Pelo contrário, o discurso parece ter como objetivo principal apenas rejeitar qualquer "intromissão" externa.

Mas é preciso questionar: há condições reais para essa autossuficiência absoluta? Vivemos isolados no mundo? Temos, como nação, poder moral, bélico e diplomático para ignorar por completo a comunidade internacional, justificando a ausência de qualquer "intromissão" em nossas decisões, sejam elas certas ou erradas? A resposta é clara: não. Nenhum país é uma ilha, e o Brasil, como parte da comunidade global, interage em diversas frentes. A negação de uma possível intervenção externa – especialmente quando se trata de violações de direitos humanos ou corrupção – ignora a realidade das relações internacionais e a interdependência dos Estados.

A realidade brasileira demonstra que, muitas vezes, a voz do povo é silenciada. Suas decisões e sua voz são frequentemente censuradas, controladas e ignoradas por quem detém o poder em um estado de exceção, onde uma única pessoa ou grupo decide de forma autocrática.

Portanto, a Lei Magnitsky, ao permitir sanções a indivíduos que violam direitos humanos ou cometem atos de corrupção, não "afronta" a verdadeira soberania de um povo oprimido. Pelo contrário, ela pode ser uma ferramenta externa essencial para desestabilizar regimes tirânicos e fortalecer a legitimidade e a capacidade de um povo exercer sua própria soberania. É um fato histórico que tiranos caem tanto por forças internas quanto por forças externas. Ao permitir que a comunidade internacional atue contra abusos sistêmicos, a Lei Magnitsky, de forma crucial, pode paradoxalmente aumentar a soberania popular, oferecendo um caminho para que o povo retome o controle de seu próprio destino.

 

A Certeza Moral no Julgamento Eclesiástico: Um Pilar da Justiça Canônica e suas Ressonâncias no Direito Secular

 Emanuel de Oliveira Costa Jr. (Advogado canonista e civil, professor, Presidente da UNIJUC – União dos Juristas Católicos de Goiás)

 

 

Em qualquer sistema jurídico, a integridade da decisão judicial repousa sobre a solidez da convicção do magistrado. No Direito Canônico, especialmente nas causas matrimoniais, fala-se frequentemente em "certeza moral" como o patamar probatório a ser alcançado pelo juiz. Longe de ser um critério subjetivo ou um mero arbítrio, essa certeza representa uma convicção robusta e racionalmente fundamentada, essencial para a declaração de um fato ou a imposição de uma obrigação. A compreensão de seus contornos é vital para assegurar que a justiça eclesiástica se fundamente em princípios de equidade e veracidade, compartilhando, inclusive, fundamentos com a formação do juízo em sistemas jurídicos seculares.

I. A Natureza da Certeza Moral no Ordenamento Canônico

A certeza moral, no contexto do Direito Canônico, não se confunde com a certeza matemática ou física, que exige a exclusão de qualquer possibilidade de erro. Em matérias que envolvem a complexidade da intenção humana, da vida íntima ou de fatos pretéritos, como as causas de nulidade matrimonial ou as dispensas por não consumação, tal grau de certeza seria inatingível. A certeza moral, portanto, é uma convicção prudencial, que se forma quando, após uma análise diligente de todas as provas e argumentos, o juiz alcança um estado de espírito no qual a dúvida razoável foi dissipada.

Esse conceito está intrinsecamente ligado ao princípio da busca da verdade, que permeia o processo canônico. O Cânon 1526, §1, do Código de Direito Canônico de 1983, prescreve que o juiz "deve procurar por todos os meios que lhes parecem idôneos a verdade, mesmo sobre fatos que não foram alegados pelas partes". Não se busca uma "verdade formal" – aquela que emerge meramente da correta aplicação das regras processuais, mas que pode não corresponder à realidade material –, mas sim a verdade substancial dos fatos, a fim de proferir uma decisão justa.

II. Os Critérios de Valoração da Prova e a Construção da Certeza Moral

A formação da certeza moral do juiz não é um processo intuitivo, mas um exercício de racionalidade jurídica pautado em critérios objetivos de valoração da prova. O Cânon 1572, ao tratar da força probatória do testemunho, oferece um guia que se estende, por analogia, à avaliação de todas as provas nos autos: "A força probatória do testemunho deve ser avaliada pelo juiz, considerando todas as circunstâncias, principalmente a honestidade do depoente e as outras pessoas de quem pode ter havido conhecimento."

Dentre os critérios que conduzem à formação da certeza moral, destacam-se:

A) Concordância e Convergência das Provas: A força probatória de um conjunto de evidências aumenta exponencialmente quando diversos elementos probatórios, mesmo de naturezas distintas (depoimentos das partes, testemunhos, laudos periciais, documentos), apontam coerentemente para a mesma conclusão. A convergência de indícios, mesmo que isoladamente não constituam prova plena, pode, em seu conjunto, edificar uma convicção robusta.

B) Coerência Interna e Externa: Cada peça probatória, especialmente os depoimentos, deve apresentar uma lógica interna, livre de contradições manifestas. Além disso, as provas devem ser coerentes com os fatos notórios, com as leis naturais e com outras evidências consideradas verídicas nos autos. Descrenças sobre a capacidade de uma testemunha ter conhecimento de um fato, por exemplo, ou inconsistências factuais em um relato, minam sua credibilidade.

C) Credibilidade das Fontes: O juiz avalia a idoneidade moral e intelectual daqueles que produzem a prova. Fatores como a honestidade do depoente, a ausência de interesse indevido na causa (animus nocendi ou lucrandi), a capacidade de percepção e rememoração dos fatos, e a ausência de motivos para deturpar a verdade são cruciais. No que tange aos parentes como testemunhas, sua admissibilidade é reconhecida (Cân. 1550, §2), mas sua credibilidade é ponderada com especial cautela. A jurisprudência da Rota Romana tem sido clara, como na Sentença coram Wynen, de 27 de novembro de 1980 (RR, vol. LXXII, p. 770, n. 4), ao afirmar que "embora os parentes das partes devam ser ouvidos com cautela, seus depoimentos não devem ser sumariamente rejeitados, especialmente quando se trata de fatos que se desenrolam no âmbito familiar e dos quais dificilmente outras pessoas teriam conhecimento."

D) A Refutação de Presunções Legais: O Direito Canônico estabelece presunções que auxiliam na prova. O Cânon 1061, §2, por exemplo, presume a consumação do matrimônio se os cônjuges coabitaram. Essa é uma presunção iuris tantum, ou seja, admite prova em contrário. A formação da certeza moral pela não consumação, neste caso, exige que a parte interessada apresente provas suficientes para refutar eficazmente essa presunção legal, demonstrando a ausência do ato conjugal.

A persuasão do juiz deve ser um ato racional, ancorado nas provas apresentadas, e não uma mera manifestação de sua subjetividade.

III. A Motivação da Sentença: O Freio ao Arbítrio Judicial

A garantia mais robusta contra o arbítrio na formação da certeza moral reside na exigência de que a sentença seja motivada. O Cânon 1608, §3, impõe ao juiz o dever de "expor os motivos, tanto de direito como de fato, em que se funda a parte dispositiva da sentença".

Essa exigência implica que o juiz não apenas declare sua conclusão, mas demonstre o percurso lógico-jurídico que o levou a ela. Deve-se indicar quais provas foram acolhidas e por quê, como foram valoradas, e, se for o caso, por que outras provas foram descartadas ou consideradas insuficientes. Essa fundamentação exaustiva é a baliza que distingue a certeza moral de uma opinião pessoal. Ela permite que a decisão seja compreendida, verificada e, se necessário, revista por instâncias superiores em caso de recurso, assegurando a transparência e a responsabilidade judicial.

IV. A Certeza Moral no Direito Civil: Uma Analogia Essencial

A formação de uma convicção judicial baseada na razoabilidade e na prova dos autos, distinguindo-se de uma certeza absoluta ou do arbítrio, não é exclusividade do Direito Canônico. Diversos sistemas de Direito Civil, influenciados por princípios iluministas e pela superação da "prova tarifada" (onde o valor da prova era predeterminado por lei), adotam o princípio do livre convencimento motivado do juiz (ou similar).

No Brasil, por exemplo, o Código de Processo Civil de 2015 estabelece que "o juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver produzido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento" (Art. 371, CPC de 2015). Este "livre convencimento" não significa liberdade para decidir sem provas ou contra as provas, mas sim a liberdade de valorar a prova de forma crítica e fundamentada, sem estar atrelado a regras pré-definidas para cada tipo de evidência. A convicção do juiz, em processos civis, também deve ser uma certeza moral, construída sobre o conjunto probatório e expressa na motivação da sentença.

Analogias podem ser traçadas em áreas como o Direito Penal, onde a convicção sobre a autoria e a materialidade de um crime, especialmente o dolo (intenção), é frequentemente uma questão de certeza moral, baseada em indícios e provas circunstanciais, e não em provas diretas e absolutas da mente do réu. No Direito de Família civil, a prova de elementos subjetivos como a "afetividade" ou a "intenção" também depende da capacidade do juiz de formar uma convicção razoável a partir de comportamentos e relatos.

Conclusão

A certeza moral no julgamento canônico, portanto, é um conceito de elevado rigor jurídico. Longe de ser uma prerrogativa arbitrária do juiz, ela é a culminância de um processo metódico de busca da verdade, valoração criteriosa das provas e justificação racional da decisão. Essa abordagem, que busca uma convicção razoável e fundamentada onde a certeza absoluta é inatingível, encontra paralelos nos mais diversos ordenamentos jurídicos seculares, reafirmando o caráter universal dos princípios que regem a formação do juízo judicial em prol da justiça.

 

quarta-feira, 23 de julho de 2025

A dissolução do vínculo matrimonial não consumado: Aspectos canônicos e jurisprudenciais.

 

Por Emanuel de Oliveira Costa Jr. (Advogado, professor, Presidente da UNIJUC – União dos Juristas Católicos de Goiás)

 

O matrimônio na Igreja Católica é uma instituição de profunda relevância teológica e jurídica. Compreendido como um sacramento entre batizados, ou como um contrato válido de direito natural e divino para os não batizados, o vínculo conjugal possui características de unidade e indissolubilidade. Contudo, em determinadas circunstâncias, o próprio Direito Canônico prevê a possibilidade de sua dissolução, destacando-se, nesse contexto, a dispensa do matrimônio não consumado. Este artigo busca explorar a natureza dessa dispensa, suas implicações jurídicas e as nuances conceituais que a cercam, especialmente no que tange aos casamentos com disparidade de culto.

I. O Matrimônio no Ordenamento Canônico: Vínculo e Sacramento

A Igreja Católica define o matrimônio pelo Cânon 1055, §1, como "o pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o consórcio de toda a vida, ordenado por sua própria índole natural ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, entre batizados foi elevado por Cristo Senhor à dignidade de sacramento."

Essa definição revela duas dimensões cruciais:

1.      Dimensão Natural: O matrimônio é, em sua essência, uma realidade de direito natural e divino, fundado na própria natureza humana e instituído por Deus. Isso significa que suas propriedades essenciais (unidade e indissolubilidade) e seus fins são inerentes a qualquer união conjugal válida, independentemente da fé dos contraentes. É um pacto pelo qual o homem e a mulher se entregam e se aceitam mutuamente.

2.      Dimensão Sacramental: Para que o matrimônio seja elevado à dignidade de sacramento, é indispensável que ambos os contraentes sejam batizados (Cân. 1055, §2). Um matrimônio entre dois batizados é, por definição, um sacramento, sendo chamado de "matrimônio rato" (matrimonium ratum). Se esse matrimônio sacramental for consumado, ele se torna "rato e consumado" (ratum et consummatum), adquirindo uma indissolubilidade absoluta, que "nenhuma autoridade humana pode dissolver" (Cân. 1141).

Ainda que o foco principal da atenção canônica recaia sobre o matrimônio sacramental, a Igreja reconhece e regulamenta os casamentos válidos entre batizados e não batizados, desde que obtida a necessária dispensa do impedimento de disparidade de culto (Cân. 1086). Tais uniões, embora válidas e geradoras de um vínculo legítimo, não são consideradas sacramentos.

II. A Não Consumação: Conceito e Consequências Jurídicas

A consumação do matrimônio é um ato de singular importância para o Direito Canônico. O Cânon 1061, §1, esclarece que a consumação se dá "pelo ato conjugal, realizado de modo humano, de que o matrimônio é apto por sua própria natureza para a geração da prole, ao qual os cônjuges livremente se dedicaram". Em termos práticos, refere-se à primeira realização do ato sexual completo e penetrativo após a celebração do casamento, que por si mesmo seja apto à geração da prole.

A não consumação impede que um matrimônio rato e válido se torne absolutamente indissolúvel. É justamente essa ausência de consumação que abre a porta para a possibilidade de sua dissolução, por um ato de graça pontifícia.

III. A Dispensa do Matrimônio Não Consumado (Dispensatio Super Rato)

Ao contrário da declaração de nulidade matrimonial, que reconhece que o vínculo nunca existiu validamente desde o início, a dispensa do matrimônio não consumado pressupõe a existência de um vínculo matrimonial válido que, por não ter sido consumado, pode ser dissolvido pela autoridade suprema da Igreja.

O Cânon 1142 expressa essa prerrogativa: "O matrimônio não consumado, entre batizados ou entre parte batizada e parte não batizada, pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice por justa causa, a pedido de ambas as partes ou de uma delas, mesmo que a outra não queira."

É crucial notar que essa dispensa aplica-se a:

  • Matrimônio rato e não consumado: Onde ambos são batizados, e o casamento é sacramental. A dissolução do vínculo sacramental não consumado é uma prerrogativa única do Papa.
  • Matrimônio válido com disparidade de culto e não consumado: Onde um é batizado e o outro não. Apesar de não ser sacramental, este matrimônio é válido, e a não consumação também abre a possibilidade da dispensa.

O objeto da dispensa não são meramente as "obrigações naturais" do casamento. Ao contrário, a dispensa visa e efetivamente dissolve o vínculo matrimonial em si. Isso significa que a união existente entre as duas pessoas é desfeita de forma plena e definitiva para a Igreja, permitindo que as partes contraiam um novo matrimônio canonicamente válido, caso assim desejem e as demais condições sejam atendidas.

IV. A Questão da Jurisdição em Casos de Disparidade de Culto

A discussão sobre a aplicabilidade da dispensa do vínculo a uma parte não batizada é de grande acuidade conceitual. A objeção de que a parte não batizada não está sujeita às leis meramente eclesiásticas da Igreja é, em princípio, correta (Cân. 11). No entanto, a capacidade da Santa Sé de dissolver um matrimônio válido não consumado que envolve uma parte não batizada não se baseia na submissão geral do não batizado a todas as leis canônicas.

Pelo contrário, essa autoridade deriva de um poder específico sobre o vínculo matrimonial em si, que a Igreja entende ter por instituição divina. O matrimônio, mesmo na disparidade de culto, é visto como uma instituição de direito natural e divino, e as propriedades essenciais deste vínculo (unidade e indissolubilidade) são consideradas de origem divina e natural, não meramente eclesiástica.

Assim, quando o Romano Pontífice concede a dispensa, ele age sobre uma realidade jurídica (o vínculo válido) que, por sua própria natureza, afeta ambas as partes. A dissolução do vínculo, para a Igreja, tem o efeito de liberar ambas as partes daquela união específica. Para a parte batizada, isso significa a plena liberdade para um novo matrimônio canônico. Para a parte não batizada, embora não esteja sujeita às demais leis eclesiásticas, a dispensa papal significa que, do ponto de vista da Igreja, seu casamento anterior com o católico não mais existe, o que teria implicações caso ela quisesse, no futuro, casar-se com outro católico, por exemplo. Não se trata de impor uma lei eclesiástica sobre o não batizado, mas de exercer uma prerrogativa divina sobre um vínculo válido que foi estabelecido e que envolve um fiel da Igreja. A dissolução é um ato que atinge a própria raiz da união, eliminando-a para todos os efeitos canônicos.

V. A Prova da Não Consumação: Desafios e Meios Processuais

A prova da não consumação é um dos aspectos mais delicados do processo de dispensa, dada a natureza íntima do ato conjugal. A busca da verdade, contudo, é um princípio basilar do Direito Canônico (Cân. 1526 §1), e o ordenamento prevê meios para essa apuração.

A. Depoimento das Partes

Os depoimentos da parte demandante e demandada são a base da prova. O juiz ou instrutor deve conduzir o interrogatório com a máxima discrição e sensibilidade, mas com a profundidade necessária para apurar os fatos. Perguntas específicas sobre a vida íntima, as razões para a não consumação (seja por impedimento físico, psicológico, recusa ou outros motivos), as tentativas realizadas e as reações de cada cônjuge são essenciais. A coerência interna dos relatos e a consistência entre os depoimentos de ambos os cônjuges são fatores-chave para a credibilidade.

B. Prova Testemunhal

Embora a intimidade da relação conjugal limite o conhecimento direto de terceiros, as testemunhas podem fornecer "provas morais" ou circunstanciais da não consumação. Familiares próximos, amigos íntimos ou confidentes podem depor sobre:

  • Confidências diretas de uma das partes acerca da ausência de relações ou dificuldades na intimidade.
  • Comportamentos observados no casal que sugeriam falta de intimidade (dormir em quartos separados, ausência de afeto público, queixas sobre a vida conjugal).
  • Conhecimento de problemas de saúde (físicos ou psicológicos) que pudessem impedir a consumação.
  • Admissibilidade de Parentes: É importante ressaltar que o Direito Canônico não exclui os parentes de depor (Cân. 1550 §2). A jurisprudência da Rota Romana tem reiteradamente afirmado que, embora seus depoimentos devam ser avaliados com cautela, eles não devem ser sumariamente rejeitados, especialmente em matérias que se desenrolam no âmbito familiar e das quais poucos outros teriam conhecimento. Como se lê em uma Sentença Rotalis coram Wynen, de 27 de novembro de 1980 (RR, vol. LXXII, p. 770, n. 4): "Embora os parentes das partes devam ser ouvidos com cautela, seus depoimentos não devem ser sumariamente rejeitados, especialmente quando se trata de fatos que se desenrolam no âmbito familiar e dos quais dificilmente outras pessoas teriam conhecimento." A força probatória é avaliada pelo juiz, considerando todas as circunstâncias (Cân. 1572).

C. Prova Pericial

Em casos onde a não consumação é atribuída a um impedimento físico (ex: vaginismo, anomalias físicas) ou psicológico (ex: aversão sexual grave, bloqueios), a perícia médica ou psicológica (realizada por peritos nomeados pelo Tribunal) pode ser fundamental para corroborar as alegações das partes e das testemunhas.

D. Prova Documental

Registros médicos, laudos de terapia de casais ou aconselhamento conjugal focados em disfunções sexuais ou ausência de intimidade, e até mesmo correspondências ou mensagens (com a devida cautela em relação à autenticidade e contextualização) podem ser anexados para reforçar a prova da não consumação.

VI. Conclusão

A dispensa do matrimônio não consumado, seja ele sacramental ou válido com disparidade de culto, é um instrumento do Direito Canônico que reflete a pastoralidade da Igreja e sua busca pela verdade e pelo bem das almas. Embora a prova da não consumação seja um desafio intrínseco à sua natureza íntima, o processo canônico oferece um arcabouço sólido de meios probatórios, que, quando avaliados com diligência e prudência pelo Tribunal, permitem alcançar a certeza moral necessária para a dissolução do vínculo. Compreender as distinções conceituais entre sacramento, vínculo válido de direito natural e divino, e a jurisdição da Igreja sobre esses elementos é essencial para a correta aplicação e interpretação dessa importante figura do Direito Matrimonial Canônico.