segunda-feira, 9 de agosto de 2010

DA VEDAÇÃO AO COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO (Venire contra factum proprium)

Atualmente temos um fenômeno interessante acontecendo em todos os âmbitos da administração pública: a contradição. Trata-se de um fenômeno que de tão habitual passou a ser visto como corriqueiro e normal.

Parece simples dizer: ah, mas todos temos direito a errar e o Estado não é diferente. Ouso dizer que o Estado é diferente sim. Ele não pode se contradizer de forma alguma. Devido a autonomia que dizem que os Estados da Federação têm perante a União e que os Municípios têm perante esses dois, claro que a contradição entre esses entes federativos é bem vinda, contudo é bem vinda para que um dia se chegue ao consenso e não que se eternize em debates de pura disputa de vaidade e eloqüência.

Pois bem, essas contradições acontecem desde pequenas falhas de entendimento de questões simplórias como o parâmetro para a aplicação de uma multa ambiental, até decisões de grande porte com a cobrança de tributos que englobam toda uma comunidade estadual.

Desde quando começamos os estudos de Direito, temos uma matéria muitas vezes esquecida, mas que é de suma importância, a Introdução do Estudo do Direito, nela fica claro que a segurança jurídica é algo buscado e desejado sempre e em qualquer âmbito. Sem equilíbrio não há possibilidade de governança em nenhum poder.

A vedação ao comportamento contraditório (Venire contra factum proprium) visa justamente essa segurança jurídica, caso contrário poderiam acontecer diversas conclusões para situações idênticas, causando um caos na jurisprudência e nos atos públicos e privados.

Sendo assim, uma decisão tomada administrativamente pelo Ministério Público do Piauí, não pode, de forma alguma, atingir frontalmente e ter critérios legais de interpretação diferentes do Ministério Público de Goiás. Eis o venire contra factum proprium (vedação ao comportamento contraditório).

Claro que chegamos a um ponto onde pode haver várias outras questões a serem discutidas, entretanto, o que mais vem acontecendo é o mais simples: o próprio órgão consegue ser contraditório com ele mesmo, imagina com outro de igual hierarquia ou posição.

A decisão de um órgão administrativo de um Estado gera a legítima expectativa de poder agir da mesma forma em outros Estados. Ai as teses se dissipam. Até onde vai a autonomia dos Estados da Federação?

Penso não haver discussão quanto a decisões que acontecem dentro do mesmo âmbito federativo, contudo, e em outros Estados da Federação? Eles são autônomos a ponto de cada um ter o direito de usar a interpretação da lei de forma autônoma sem levar em consideração o comportamento contraditório entre eles? Ou estão todos com as mãos atadas devido à tutela de uma mesma lei federal?

Entenda que não estamos falando de Judiciário. O Judiciário já resolveu essa questão há muito tempo, tanto que o Superior Tribunal de Justiça tem justamente a função de unificar os entendimentos infraconstitucionais do país.

A questão se torna complexa por a falta de segurança jurídica entre as decisões de vários órgãos de um mesmo ente e entre entes de vários Estados da Federação, faz com que o processo administrativo se torne mero meio de produção de papéis e atraso processual, já que tudo será julgado no Judiciário mesmo.

Como temos visto o processo administrativo? Será ele um estágio obrigatório, como aqueles de faculdade, para chegar ao Judiciário? A Constituição diz que não, mas então pra que serve se nunca chega à segurança jurídica nenhuma?

A intenção era de chegar a entendimentos no âmbito administrativo para que não fosse necessário abarrotar ainda mais o Judiciário, isso não acontece. O que acontece é o contrário: só existe pacificação de matéria no âmbito administrativo quando o Judiciário, de preferência o STJ ou STF se pronunciam. Que inversão de valores é essa?

A par de argumentos como esses, é possível constatar que a hipótese de qualquer tese subsume-se à teoria dos atos próprios ou venire contra factum proprium, fórmula consagrada pelo canônicos para elucidar a impossibilidade de se praticar atos incompatíveis com condutas anteriormente externadas.

Para podermos relembrar, vamos a um pouco de história.

Existe um lastro filosófico que embasa a Revolução Francesa, um ranço histórico que nos custa muito e custará por muito tempo ainda. Surge ali um rompimento de uma filosofia naturalista, aquela inscrita no ser humano e que ninguém mais estuda nas faculdades por ai.

Essa nova ordem filosófica que surgia influiu muito diretamente no debate e prática jurídicas. Ali se inaugurou a filosofia do positivismo jurídico, aproveitando as idéias do positivismo sociológico de Durkhein e Weber.

Esse positivismo jurídico, tendo forte expressão de suas idéias em Hans Kelsen, filósofo que foi habilidoso em doutrinar o direito e passou a pugnar pela sistematização das normas jurídicas, estruturou todo o Direito em métodos hermeticamente fechados e acorrentados aos ideais de previsibilidade das reações da norma às condutas humanas, como se possível fosse.

Esse é o sistema que, levando em consideração pequenas modificações, ainda nos conduz juridicamente. Quem nunca ouviu alguém perguntar onde está na lei tal coisa? Ou então quem nunca ficou indignado de tal questão estar ou não estar na lei? Esse positivismo trouxe atraso nas interpretações e engessamento dos julgadores e interpretadores.

Este novo pensamento jurídico trouxe como grande novidade e benefício imediatos a segurança jurídica, já mencionada e que é forte alicerce deste novo mundo liberal que surgia e que advogava a tese de que o conhecimento prévio das conseqüências dos atos das pessoas, traria uma igualdade de oportunidade entre elas.

A conclusão era de que tudo ficaria mais justo do que as doutrinas naturais, já que essas que dependiam, muito mais, do ânimo dos donos do poder. Esquecia-se que o ser humano precisa mais de confiar em sua natureza do que em sua esperteza.

A grande vantagem que os positivistas propagavam era a igualdade formal estabelecida pela Lei, já que todos seriam iguais perante a Lei, e isto faria com que as pessoas tivessem igual oportunidade. Esqueciam-se, também, que ninguém é igual a ninguém, e precisaram entender que as pessoas são iguais dentro do que as torna iguais e diferentes dentro dos limites de suas diferenças. O sistema começa a se contradizer.

Pelo que vimos ficou claro que todos eles estavam errados, e a tão sonhada igualdade foi substituída por um domínio dos donos do dinheiro e/ou do poder, muito mais do que no sistema naturalista que não se contradizia na sua raiz, mas na sua interpretação rasa. O sistema positivista passa a se contradizer em sua raiz e atinge todos os frutos, afinal: árvore envenenada, frutos envenenados.

Por esse motivo vieram fatos que são verdadeiras provas das barbáries que o ser humano é capaz, são os horrores ocorridos durante, por exemplo, a segunda guerra mundial, quando o nazismo se confirmou absolutamente lastreado na lei para seus desatinos que feriram a história da humanidade e deixaram cicatrizes feias e incorrigíveis.

Outras tantas guerras e golpes depois “legalizados” fizeram barbáries, especialmente nos governos socialistas. Tudo amparado pela lei e amordaçando o direito que passa a ser refém da letra fria lançada em um papel que desconhece as partes envolvidas, mas lhes impõe sua sentença.

Um grande exemplo dessa cicatriz é o direito de contratar que era quase ilimitado, esbarrando apenas na questão de ordem pública, lembrando sempre que esta ordem pública era de filosofia liberal. Daí nasceu a velha máxima do direito que o Contrato é lei entre as partes. Até hoje não é tão fácil convencer um juiz de a coisa não é bem assim.

Quando a humanidade caiu em si e sentiu o choque causado pelo entendimento de que a ordem jurídica positivista prestou bons serviços ao nazismo, fez com que a teoria positivista extremada fosse repensada, sendo certo que seu abrandamento e relativização eram providências necessárias à própria sobrevivência humana. Mas como fazer isso? Ninguém queria um retorno ao naturalismo.

O naturalismo tentava chegar ao equilíbrio pela lei natural inscrita no ser humano, leis essas que não precisavam da letra fria da lei, mas que precisavam de um julgador extremamente ético e justo.

Esse equilíbrio viria com a lei natural que é imutável, portanto estável e equilibrada.

E onde ficaria a evolução se não é possível mudar de posição? Em primeiro lugar ninguém disse que é impossível mudar de posição. A partir do momento em que mudam a situação do fato, as leis que regem o fato e o fato em si, muda tudo, inclusive pode mudar a decisão. O que não pode são decisões tomadas no norte sempre absolutamente discrepantes de decisões de casos idênticos tomados no sul. Ou mesmo dentro de um mesmo Município, coisa que acontece frequentemente.

Assim chegamos à tão sonhada segurança jurídica e ao equilíbrio, como tudo na vida e na natureza.

No STJ, a teoria dos atos próprios foi empregada de forma precursora e notável pelo eminente Ministro Ruy Rosado de Aguiar, o qual consignou que:

O princípio da boa-fé deve ser atendido também pela administração pública, e até com mais razão por ela, e o seu comportamento nas relações com os cidadãos pode ser controlado pela teoria dos atos próprios, que não lhe permite voltar sobre os próprios passos depois de estabelecer relações em cuja seriedade os cidadãos confiam.
(Resp 141.879/SP, Rel: Min. Rosado de Aguiar, DJ 22.06.1998)

Várias perguntas nos ficam nesse momento. Vemos ataques de todos os lados da ordem jurídica medieval sendo que ela criou muito menos discrepâncias jurídicas que a atual.

Atacamos uma ordem natural sendo que a ordem positivista nos cria injustiças não por um julgador injusto, mas por um julgador justo que não pode usar de sua justiça latente por estar amarrado aos pés de uma lei injusta e imoral.

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