segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

A ruptura abrupta com o feudalismo gerando confusão política e totalitarismos. Uma comparação necessária.

 

É fato que não podemos cunhar o feudalismo como um sistema econômico pura a simplesmente, já que foi muito mais do que isso, basicamente foi uma organização socioeconômica, política e até cultural que envolveu a Europa de uma forma geral, mas não só ela. Outro fato é que podemos firmemente dizer que o feudalismo foi se desfazendo aos poucos na história da humanidade e não de uma hora pra outra. Embora muitos historiadores gostem de colocar como marca do seu fim o ano de 1453 que foi a tomada de Constantinopla pelos Turcos Otomanos, contudo é fato que o feudalismo sobreviveu com muitas das suas estruturas na França até a revolução francesa em 1789 e na Rússia até 1917 quando da Revolução russa. Enfim, creio que podemos dizer que as civilizações que tiveram que sair das estruturas feudais tardiamente tiveram que fazê-lo de forma abrupta com revoluções e não gradativamente como foi o caso da Inglaterra com o uso paulatino do mercantilismo que aos poucos foi gerando o capitalismo mais naturalmente. Vejamos se não foi assim.

O feudalismo baseava-se em relações de dependência pessoal (vassalagem) e economia agrária de subsistência, embora esse não fosse o foco.

A Inglaterra é frequentemente apontada como um exemplo de transição mais gradual do feudalismo para o capitalismo porque conseguiu passar, sem negar as cicatrizes disso, pelo uso do mercantilismo. Essas mudanças iniciaram um deslocamento populacional do campo para as cidades e promoveram o desenvolvimento do capitalismo industrial. Esse processo, embora com tensões, evitou grandes revoluções imediatas e possibilitou a formação de um mercado econômico estruturado antes de mudanças políticas radicais que viram a ser demandados com os novos tempos.

Na França, a Revolução Francesa de 1789 foi um marco que desmantelou o que restava das estruturas feudais à força. A aristocracia foi abolida com violência extrema e no lugar veio uma tirania extremamente raivosa. O clamor por igualdade e liberdade surgiu em um cenário de crise econômica e desigualdade exacerbada, onde a manutenção de estruturas feudais muito mal administradas contribuía para a insatisfação e gerou uma revolução sangrenta que não conseguiu seus objetivos, apenas conseguiu uma nova dinastia do Bonaparte, uma década depois e dezenas de milhares de cabeças guilhotinadas depois, que se arrogou o direito de tomar toda a Europa.

Já na Rússia, a Revolução de 1917 representou o colapso do sistema czarista, que ainda mantinha características feudais, como a servidão, que só foi oficialmente abolida em 1861, mas cujas práticas sociais e econômicas persistiram. O processo foi abrupto porque a transição para a modernidade foi tardia e marcada por crises internas e externas.

A ausência de mudanças graduais na França e na Rússia contrastou com a Inglaterra, onde o mercantilismo desempenhou um papel significativo na transição econômica. A prática comercial, somada a uma monarquia constitucional que acomodou mudanças econômicas e sociais sem grandes rupturas, possibilitou o desenvolvimento do capitalismo como hoje o conhecemos de forma mais natural. Pode-se perceber que na Rússia e mesmo na França, até os dias atuais, o capitalismo e especialmente o que chamamos de democracia nos dias atuais, não são bem o que o se vê no restante do mundo.

Essa visão histórica sugere que a maneira como as sociedades se adaptaram ao fim do feudalismo influenciou diretamente suas trajetórias futuras. Estruturas estáveis e transições graduais parecem ter favorecido um desenvolvimento mais linear, enquanto sociedades com rupturas abruptas enfrentaram períodos de instabilidade e mudanças mais drásticas.

Na Inglaterra, o mercantilismo foi mais do que uma transição econômica; ele criou uma mentalidade que promoveu uma integração Religião-Sociedade. Diferentemente da Revolução Francesa que associou a religião às estruturas de opressão, a Inglaterra manteve a Igreja Anglicana como uma força moderadora, articulando tradição e progresso econômico.

Sob o mesmo aspecto de linearidade histórica, levando-se em consideração a estratificação social, a sociedade inglesa aceitou a gradação social como algo natural, estruturado por uma aristocracia que coexistia com uma burguesia comercial emergente, sem rupturas violentas.

O resultado disso foi uma rejeição de modelos totalitários comuns tanto na França quanto na Rússia. Com uma monarquia constitucional desde a Revolução Gloriosa (1688), a Inglaterra estabeleceu um equilíbrio que evitava extremos autoritários ou democracias utópicas.

Nos casos da França e da Rússia, a Revolução Francesa (1789) apesar de abolir o feudalismo, mergulhou em extremos ideológicos que levaram ao Terror Jacobino e, posteriormente, ao autoritarismo napoleônico. A tentativa de erradicar completamente a influência da religião e criar uma sociedade radicalmente igualitária gerou instabilidade. No caso da Revolução Russa (1917), ao eliminar resquícios feudais com um golpe bolchevique, esta optou por um modelo comunista totalitário. O regime soviético instaurou um controle absoluto, causando purgas, repressões e genocídio, além de perpetuar um modelo de Estado centralizador e moralmente destrutivo.

As escolhas por regimes totalitários para substituir sistemas antigos geraram elevado morticínio já que milhões morreram em guerras civis, fomes e purgas políticas, tanto na França quanto na Rússia.

Gerou também confusão política e social com sociedades marcadas por totalitarismos que enfrentaram dificuldade em estabelecer democracias funcionais, oscilando entre autoritarismo e modelos utópicos, isso até os dias atuais.

 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

A Lei não nos torna livres.

"A lei nunca tornará livre os homens, são os homens que precisam tornar a lei livre." Essa frase é de Henry David Thoreau em seu livro intitulado no Brasil como "Desobediência civil". A frase parece deixar claro que o positivismo e o legalismo são um grande mau em países que tem essa tradição jurídica, como é o caso do Brasil.

As leis, por si só, não têm o poder de libertar, quero acreditar que isso está claro nas mentes de todos; esse poder reside nas pessoas e em como elas utilizam a lei como instrumento de justiça e liberdade, seja essa justiça uma social ou individual, seja essa liberdade uma liberdade social ou individual.

Quando pensamos no positivismo jurídico, especialmente no contexto do Brasil, ele frequentemente é criticado por se apegar à literalidade da norma e ignorar os princípios de justiça, equidade e realidade social. Assim somos todos nós. Quem nunca contestou uma ordem perguntando: onde isso está escrito? Ou pelo menos presenciou essa cena?

O legalismo extremo — que é a adesão rigorosa às leis escritas, mesmo que estas sejam injustas ou descontextualizadas — pode, de fato, se tornar um obstáculo ao progresso social e frequentemente se torna essa barreira. Em países com tradição jurídica fortemente influenciada pelo positivismo, como o Brasil, há uma tendência histórica de se valorizar a lei em si, mais do que seus efeitos práticos na sociedade.

Esse tipo de abordagem pode ser problemática por diversas razões. 

A primeira dessas razões é a desconexão da realidade social. A legislação nem sempre acompanha as transformações sociais e culturais. Aliás, normalmente a legislação "corre atrás" das mudanças sociais. Quando a aplicação cega da lei prevalece, cria-se um abismo entre o sistema jurídico e a sociedade. Apenas a título de reflexão, não é isso o que vemos hoje no Brasil? Por outro lado, é muitíssimo perigoso que se subjugue a lei a mero enfeite com o argumento de que ela não consegue acompanhar pari passu as transformações sociais. 

A segunda razão é  a perpetuação de injustiças, uma vez que o positivismo e o legalismo tendem a validar qualquer norma, desde que formalmente e regularmente criada, mesmo que esta norma perpetue desigualdades ou viole direitos fundamentais. Não se trata de verificar a justiça da norma, mas apenas avaliar requisitos formais de existência e criação. Isso faz com que normas ruins e até injustas de mantenham, afinal não há problema legal com elas. O direito natural, os princípios, o contexto cultural, tudo isso é relegado a nada ou praticamente nada. 

O terceiro e último ponto é  a burocratização excessiva: O foco no cumprimento estrito das normas pode levar a um sistema jurídico engessado, pouco responsivo às demandas sociais e distante das necessidades das pessoas. É a lei pela lei. O homem passa a servir a lei e não a lei ao homem. 

Por outro lado, é importante destacar que há movimentos no Brasil, como o neoconstitucionalismo e o pós-positivismo, que em teoria buscam superar essas limitações, mas que tem causado mais mal do que bem devido ao excesso de ideologias e liberdade demais nas mãos de poucos que podem decidir. 

A liberdade que a frase de Thoreau sugere não está em desprezar a lei, longe disso, mas em interpretá-la e aplicá-la com sensibilidade e bom senso. Trata-se de colocar os valores humanos e os direitos fundamentais acima da mera formalidade legal. É essencial que os operadores do Direito não sejam apenas técnicos, e daí vem uma crítica ao termo operadores que já está consagrado. Precisamos ser mais que técnicos operadores.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Os desafios dos católicos em um mundo majoritariamente humanista.

INTRODUÇÃO AO PROBLEMA.

Ao analisar a situação atual, temos que hoje os fiéis católicos vivem em um mundo humanista, mas com uma fé e uma estrutura eclesial teocrática e teocêntrica. Afinal, assim é a doutrina católica: teocêntrica e teocrática. Isso causa alguns prejuízos no entendimento da fé por parte dos católicos.

Ao afirmar que os fiéis católicos vivem em um mundo humanista apenas faço uma reflexão sobre o que se vê, sem necessitar de aprofundar muito nos termos, muito menos buscar dados estatísticos sobre o assunto. Trata-se apenas de verificar a realidade e tirar conclusões. O mundo vive atualmente sob conceitos humanistas pelo simples fato de que o homem está no centro e não Deus como era em outros períodos ou ainda é em outras civilizações como no caso do islamismo.

Por outro lado, o católico tem uma fé e uma estrutura eclesial teocrática e teocêntrica imersa nesse mundo humanista. Isso reflete um dilema cultural e espiritual contemporâneos. São conflitos inevitáveis e crises de identidade que são gerados diariamente.

O humanismo atual enfatiza a centralidade do ser humano, a autonomia da razão e a liberdade individual, enquanto a fé católica e a estrutura da Igreja estão enraizadas em princípios teocêntricos, que colocam Deus no centro da existência e da moralidade. Esse contraste pode gerar algumas tensões e prejuízos na vivência da fé.

 

1. Confusão Doutrinária.

Muitos fiéis, talvez a maioria, têm dificuldade em compreender os ensinamentos da Igreja, pois estão constantemente expostos a valores e princípios seculares que podem divergir da doutrina cristã. Essa exposição constante é um fato inegável. Exemplos disso incluem debates sobre ética sexual, o papel da religião na política e questões de bioética. Todos esses temas, causam um verdadeiro caos na cabeça da grande maioria dos católicos que simplesmente não tem formação suficiente pra entender, debater e chegar a conclusões simples sobre esses assuntos, quanto mais a conclusões mais complexas.

A Doutrina católica passa a ser um contrassenso com o mundo em cada vez mais temas. Tudo à volta dos católicos tem uma concepção enquanto que a doutrina católica tem outra. Isso causa prejuízos enormes no entendimento uma vez que os católicos são alvejados diariamente com questões que atingem frontalmente sua fé.

 

2. Relativismo Moral

O humanismo moderno, frequentemente (ou quase sempre) é influenciado pelo relativismo, e isso pode levar, e realmente leva, alguns fiéis a questionar ou reinterpretar verdades absolutas da fé católica, criando uma crise de identidade religiosa.

A própria palavra “moral” já vem sendo, há décadas, destruída em seu conceito mais puro. O moralista não é mais aquele que estuda moral, mas sim aquele que tem uma moralidade tacanha, anacrônica, atrasada e afastada da realidade. O casamento, a fidelidade, a ombridade, a família e até o “gênero” é algo relativizado. A crise de identidade, especialmente com os mais novos, é inevitável.

 

3. Individualismo X Comunhão

O foco humanista no individualismo entra em conflito com a dimensão comunitária da Igreja, que enfatiza a comunhão eclesial e a solidariedade.

Quando falamos em individualismo, não falamos em pessoas que não fazem caridade ou não pensam além de si mesmas (apesar de que cresce assustadoramente o número de pessoas que já passou do conceito de egoísmo e já estão na autorreferência), mas sim em pessoas que não entendem que nem tudo precisa de contrapartida. Caridade não se trata de dar coisas a alguém, mas sim de lutar para que cada um tenha o que precisa para viver lembrando que em cada um será encontrada uma necessidade diferente do outro.

 

4. Desconexão Litúrgica e Espiritual

Muitos fiéis podem se sentir desconectados de práticas litúrgicas e sacramentais que exigem uma visão teocêntrica, como a adoração eucarística ou a confissão, por não compreenderem plenamente seu significado em um contexto teológico.

A grande maioria dos católicos hoje em dia não sabem o que é o sacrifício da missa. Não compreendem a dimensão do sacrifício, porque não querem ou não podem entender a dimensão do sofrimento. Não buscam sair de si mesmos para entender o transcendente, mas sim buscam que Deus os entenda dentro das suas necessidades, não importando o que a perfeição de Deus entendeu desde a eternidade. Sequer têm a consciência de eternidade.

 

5. Desafios à Transmissão da Fé

Os pais e educadores católicos enfrentam dificuldades para transmitir a fé às novas gerações em um ambiente cultural que costuma sempre apresentar valores contrários à tradição católica.

Aqui tratamos especificamente de pais e educadores que pelo menos tentam transmitir essa fé de geração em geração, uma vez que um número muito grande sequer tenta fazer essa transmissão e um percentual também muito representativo pretende fazer o contrário, ou seja, destruir essa transmissão, interromper o que vem sendo feito há milênios.

Os desafios para a transmissão da fé são de tamanha enormidade em um mundo em que o humano está no centro e que relega Deus a escanteio, ou sequer o relega a nada, sendo indiferente, o que é pior ainda, que as novas gerações chegam à idade adulta perdidas em relação à fé e com um entendimento eclesial e da fé infantis.

 

Estratégias para Mitigar os Prejuízos.

Na tentativa de mitigar os prejuízos, algumas soluções podem ser propostas, contudo nada pode ser considerado absoluto, porque a variedade de problemas é tão grande que “receitas de bolo” são inúteis e até indesejáveis.

Temos, contudo, algumas manobras à frente:

A primeira delas é repensar a catequese. A chamada Catequese Renovada, que nas décadas de 80 e 90 do século XX fizeram muito sucesso, nunca respondeu de forma gratificante aos desafios propostos. Continuar por simples arqueologismo com a catequese dada há cem, duzentos ou mais anos atrás, não parece também ser a solução, contudo virar para o outro extremo com a chamada “catequese renovada” fez com que a transmissão da fé pela catequese se tornasse fraca, vazia e relativizada. A proposta é que tenhamos não uma catequese renovada, mas uma catequese redescoberta que possa enfatizar a importância de uma catequese que dialogue com os desafios contemporâneos, sem comprometer os princípios teocêntricos da fé, muito menos minorar a doutrina frente as exigências do mundo humanista atual.

A segunda proposta seria uma formação intelectual que possa proporcionar uma verdadeira formação que integre razão e fé, mostrando a compatibilidade entre um humanismo autêntico, se é que assim podemos expressar, e a visão cristã que tem Deus no centro a favor da salvação da humanidade.

Em terceiro lugar é preciso um testemunho prático para demonstrar como a fé católica pode enriquecer a vida humana em todos os seus aspectos, incluindo os desafios modernos. Que não se trata de uma concepção íntima e privada de Deus, muito menos de uma filosofia de vida pura e simples, como se não englobasse o ser humano de forma integral e não apenas nas suas particularidades.

 

CONCLUSÃO.

Esse contexto exige um esforço pastoral e teológico para ajudar os fiéis a integrar sua fé em um mundo marcado pelo secularismo, reafirmando a centralidade de Deus sem alienar a dignidade e a liberdade humanas promovidas pelo cristianismo, especialmente pela Igreja Católica que foi a instituição bimilenar que tornou possível temas como a dignidade humana se tornarem conceitos bem definidos.