sexta-feira, 23 de agosto de 2024

As Raízes e Desenvolvimento Histórico da Doutrina Social da Igreja

 Introdução

Em uma brevíssima introdução sobre o tema, a Doutrina Social da Igreja (DSI) pode ser conceituada como o corpo de ensinamentos da Igreja Católica que aborda questões sociais, econômicas e políticas à luz do Evangelho, da doutrina e da tradição católica. Seu desenvolvimento histórico reflete a resposta da Igreja aos desafios sociais de diferentes épocas, sendo profundamente enraizada nas Escrituras, nos ensinamentos dos Padres da Igreja e no desenvolvimento da tradição teológica e filosófica ao longo dos séculos.

Podemos até mesmo dizer que se trata de uma bússola sempre atual para uma visão sem as distorções e sem as manipulações que a política, a mídia e os interesses momentâneos e metassociais tem. É uma visão sem turvês, as obscuridades daquelas inserções apaixonadas e ideológicas das políticas em todos os níveis e globalmente inspiradas.

 

1. As Raízes Bíblicas e Patrísticas.

As raízes da DSI estão firmemente plantadas na Bíblia. Assim o é desde o início. O Antigo Testamento já apresenta a preocupação com a justiça social, a dignidade humana, e o cuidado com os pobres e oprimidos. Textos como o Êxodo, os Profetas e os Salmos destacam a importância da justiça, da caridade e da proteção dos vulneráveis. Infelizmente essas pautas, que sempre foram católicas, acabaram sendo furtadas por diversos movimentos que as tem como suas, tendo uma visão distorcida de humanidade uma vez que são pautas de interesse da humanidade e não de grupos específicos com ideologias políticas específicas.

No Novo Testamento, Jesus vem para expandir e aprofundar essa mensagem, particularmente no Sermão da Montanha, quando ensina a importância do amor ao próximo, da misericórdia e da justiça. O Sermão da Montanha é uma base muito profunda para a DSI. As parábolas de Jesus, como a do Bom Samaritano, ilustram a necessidade de agir em favor dos outros, especialmente dos marginalizados.

Os Padres da Igreja, como Santo Agostinho e São João Crisóstomo, também foram fundamentais na formação da DSI, ao refletirem sobre a relação entre fé e sociedade, e a aplicação dos princípios cristãos às questões econômicas e sociais de suas épocas.

Lembre-se, é claro, que falavam sobre esse assunto, aprofundavam esse tema, debatiam essas teses, mas não havia nada “batizado” com o nome de DSI.

 

2. A Idade Média e a Escolástica

Durante a Idade Média, o pensamento social da Igreja foi amplamente influenciado pela filosofia escolástica, particularmente por São Tomás de Aquino. O Santo Angélico, em sua obra "Suma Teológica", desenvolve uma visão integrada da justiça, tanto distributiva quanto comutativa, e da caridade como virtude central na vida social.

Neste período, a Igreja também começa a formular teorias mais detalhadas sobre o direito natural, a propriedade privada, e o papel do Estado, sempre enfatizando a necessidade de que todas as instituições e práticas sociais respeitem a dignidade humana e promovam o bem comum. Tal desenvolvimento foi essencial para que, séculos depois, A DSI tomasse a forma que tomou.

 

3. A Era Moderna e o Surgimento dos Desafios Sociais

Com o advento da era moderna, a sociedade europeia passou por profundas transformações, marcadas pela Revolução Industrial, o surgimento do capitalismo e do socialismo tentando se antagonizar, e a urbanização acelerada. Estes processos trouxeram consigo novos problemas sociais, como a exploração do trabalho, a concentração de riqueza, e a pobreza urbana em massa. Trouxeram também, não só os problemas, mas amplas discussões sobre esses problemas e possíveis soluções que foram se tornando teses cada vez mais profundas e as vezes extremadas umas das outras.

A resposta inicial da Igreja a esses desafios foi fragmentada, com diferentes vozes dentro da Igreja abordando questões sociais em seus contextos específicos. No entanto, a necessidade de uma abordagem mais sistemática e global tornou-se evidente à medida que os problemas sociais se agravavam. A Igreja precisava engajar nessa discussão temporal.

 

4. O Magistério Social e a Encíclica Rerum Novarum

O ponto de partida oficial da DSI como corpo de ensinamentos foi a encíclica Rerum Novarum, publicada pelo Papa Leão XIII em 1891. Esta encíclica responde diretamente aos problemas da classe trabalhadora e ao crescente conflito entre capital e trabalho, debate efervescente na época. Leão XIII defende os direitos dos trabalhadores, incluindo o direito a um salário justo, a condições de trabalho dignas e à formação de sindicatos (não os sindicatos no formato que temos hoje). Ao mesmo tempo, condena tanto o capitalismo desenfreado quanto o socialismo, propondo uma terceira via baseada na justiça social e na moral cristã.

A Rerum Novarum estabelece os princípios fundamentais da DSI, como o respeito à dignidade humana, o bem comum, a subsidiariedade e a solidariedade. Esses são fundamentos da DSI. Ela também marca o início de uma tradição de ensino social papal que se desenvolveu ao longo do século XX e continua até hoje sempre com maior aprofundamento e sem perspectiva de retrocessos nesse aprofundar.

 

5. Desenvolvimentos no Século XX

O século XX viu uma expansão significativa da DSI, através de diversas encíclicas e documentos papais que abordaram questões sociais à luz dos novos desafios globais, que foram muitos e variados.

Pio XI, com a encíclica Quadragesimo Anno (1931), expande os ensinamentos de Leão XIII, especialmente no que diz respeito à reestruturação da ordem social, enfatizando a importância da subsidiariedade.

O Concílio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1965, também foi um momento crucial para o desenvolvimento da DSI. A constituição pastoral Gaudium et Spes representa uma reflexão profunda sobre a missão da Igreja no mundo contemporâneo, abordando questões de paz, justiça, desenvolvimento econômico e os direitos humanos.

São Paulo VI, com a encíclica Populorum Progressio (1967), aborda o desenvolvimento econômico e social dos povos, defendendo que o desenvolvimento não deve ser apenas econômico, mas integral, abrangendo todas as dimensões da pessoa humana. Ele não aceita uma visão fragmentada do ser humano.

São João Paulo II, em encíclicas como Laborem Exercens (1981), Sollicitudo Rei Socialis (1987), e Centesimus Annus (1991), reflete sobre a natureza do trabalho humano, os desafios da globalização e a queda dos regimes comunistas na Europa Oriental, todos temas latentes à época e alguns até hoje, mesmo que de forma diferente. Ele reafirma a centralidade da dignidade humana e do bem comum, defendendo uma economia que esteja ao serviço da pessoa e da sociedade.

 

6. A DSI no Século XXI

No século XXI, a DSI continua a evoluir em resposta aos novos desafios globais. A encíclica Caritas in Veritate (2009) do Papa Bento XVI, por exemplo, trata do desenvolvimento humano integral em uma era de globalização, abordando temas como o meio ambiente, a economia global e a responsabilidade social das empresas.

O Papa Francisco, com a encíclica Laudato Si’ (2015), traz uma perspectiva ecológica à DSI, destacando a interconexão entre a crise ambiental e as questões sociais e econômicas. Em Fratelli Tutti (2020), Francisco enfoca a fraternidade e a amizade social como bases para a construção de uma sociedade mais justa e solidária.

 

Arremate.

A Doutrina Social da Igreja é um corpo de ensinamentos dinâmico, que evoluiu ao longo de vários séculos, desde antes da Igreja inclusive, remontando o Antigo Testamento, tudo em resposta às mudanças sociais, econômicas e políticas. Desde suas raízes bíblicas e patrísticas até os desenvolvimentos contemporâneos, a DSI oferece uma visão moral e ética profunda, destinada a orientar os católicos e toda a humanidade na construção de uma sociedade que respeite a dignidade humana e promova o bem comum.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Reflexões sobre alguns princípios do processo civil brasileiro.

 

Os princípios processuais civis no âmbito do sistema judicial brasileiro constituem a base normativa e axiológica que orienta o funcionamento do processo civil com um todo, sendo fundamentais para garantir a efetividade da justiça e a proteção dos direitos dos litigantes. Esses princípios, consagrados tanto na Constituição Federal quanto no Código de Processo Civil (CPC), ou mesmo não constando em nenhuma lei específica, mas que fazem parte do fundamento mais primário que vem antes de qualquer positivação, servem como guias interpretativos e como limites à atuação das partes e do próprio Judiciário. Contudo, a real importância e aplicabilidade desses princípios são temas que merecem uma análise crítica, especialmente no contexto da prática jurídica cotidiana. 

A Função dos Princípios Processuais 

Os princípios processuais não são meros adornos teóricos, muito menos enfeites ideológicos que não devem ser levados em consideração; eles desempenham um papel essencial na estruturação do processo civil. Princípios como o contraditório, a ampla defesa, a igualdade das partes, a motivação das decisões judiciais, a celeridade processual, e a inafastabilidade da jurisdição são, em teoria, os pilares sobre os quais se edifica um processo justo e eficaz. Obviamente que não se diminui a necessidade de observância nem a importância de tantos outros princípios, cada doutrinador terá uma lista cm alguns princípios faltantes em outras listas, mas aqui tratamos apenas o verdadeiro núcleo dos princípios no processo civil. 

1.      Contraditório e Ampla Defesa: Esses princípios garantem que ambas as partes tenham a oportunidade de se manifestar sobre os fatos e as provas do processo, assegurando a paridade de armas. Na prática, a violação desses princípios pode levar à nulidade processual quando realmente comprovados, o que reforça sua importância.

2.      Motivação das Decisões Judiciais: Este princípio assegura que as decisões sejam fundamentadas, permitindo às partes compreender as razões do julgamento e viabilizando a interposição de recursos. O julgador não pode impor sua decisão pelo simples fato de assim o querer sem explicar os motivos pelos quais deve fazê-lo. Sua aplicabilidade prática é crucial para a transparência e para a legitimidade das decisões judiciais.

3.      Celeridade e Economia Processual: Estes princípios visam garantir que o processo seja conduzido de forma rápida e econômica, evitando que a morosidade judicial comprometa o direito material das partes. No entanto, a realidade forense brasileira frequentemente mostra que esses princípios são mais ideais do que práticas concretas, com processos que se arrastam por anos devido a uma série de fatores estruturais e procedimentais. Sob o mesmo prisma, não se pode, de forma alguma, intentar celeridade ao processo deixando de lados outros princípios essenciais como a eficiência, o contraditório e ampla defesa. Celeridade é importante, mas não é tudo em um processo. Deve-se entender que todo processo tem sua cadência e o bom senso sempre ajuda nessas questões. 

Crítica à Aplicabilidade dos Princípios. 

Embora os princípios processuais sejam fundamentais, sua aplicação prática muitas vezes enfrenta desafios e não são quaisquer desafios. A morosidade processual, a sobrecarga do Judiciário, e as dificuldades de acesso à justiça refletem uma desconexão entre o ideal normativo e a realidade jurídica. A falta de juízes em número necessário para o volume de processos também é um desafio, especialmente no primeiro grau de jurisdição. O desafio humano de não mecanizar decisões é outro problema crescente, especialmente em tempos de processo digital, cobrança de rapidez e inteligência artificial. 

1.      Contraditório e Ampla Defesa na Prática: Embora sejam direitos garantidos, o efetivo exercício do contraditório e da ampla defesa pode ser comprometido em contextos de desigualdade socioeconômica, onde uma das partes não dispõe dos recursos necessários para uma defesa adequada. Além disso, a complexidade técnica de algumas demandas pode dificultar o pleno exercício desses direitos.

2.      Celeridade Processual: A celeridade processual é um princípio que frequentemente esbarra na burocracia e na escassez de recursos do sistema judiciário ou mesmo na morosidade de servidores ou interesses escusos de algumas partes. A sobrecarga de processos resulta em uma justiça que, muitas vezes, é tardia e, por isso, falha.

3.      Inafastabilidade da Jurisdição e Acesso à Justiça: O princípio da inafastabilidade da jurisdição garante que nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação judicial. No entanto, o acesso à justiça ainda é uma questão problemática, especialmente para as camadas mais vulneráveis da sociedade, que enfrentam barreiras econômicas e sociais para acessar o Judiciário, não por falta de acesso físico, mas por falta de entendimento, de confiança, de condição financeira para contratação de um bom procurador etc.

4.      Motivação das Decisões: A exigência de fundamentação nas decisões judiciais é essencial para garantir a transparência e a justiça do processo. No entanto, decisões excessivamente sucintas ou padronizadas, mesmo aquelas sem fundamentação nenhuma comprometem esse princípio, frustrando as expectativas das partes e dificultando o controle recursal. 

Os princípios processuais civis brasileiros são indispensáveis para a construção de um processo justo, equilibrado e eficaz. No entanto, sua real importância só se concretiza na medida em que são efetivamente aplicados e respeitados na prática. A distância entre o ideal normativo e a realidade prática revela a necessidade de reformas estruturais e de um compromisso contínuo com a efetivação desses princípios, para que o processo civil cumpra sua função de instrumento de realização da justiça. Sem isso, os princípios correm o risco de se tornarem apenas declarações formais, idealismos desprovidos de real impacto na vida dos cidadãos e na credibilidade do sistema judiciário.