Existe um ponto central da evolução
do direito à liberdade religiosa, que é a passagem da mentalidade de "tolerância"
para a de "direito natural".
A visão de mera tolerância é
inadequada para a relação entre o Estado (e as instituições) com o indivíduo.
Essa visão é um resquício de uma época em que o poder político se sobrepunha ao
foro íntimo da pessoa, e a não perseguição era vista como uma concessão
graciosa. Digo isso no passado porque espero, com mito esperança mesmo, que
seja apenas passado, embora os fatos contradigam isso.
A palavra "tolerância" vem
do latim tolerare, que significa "suportar",
"aguentar" ou "permitir". O Estado tolera aquilo que ele
poderia, em tese, proibir, mas opta por não fazê-lo em nome da paz social. Essa
visão, que marcou o pensamento de filósofos como John Locke, foi um avanço
fundamental para a sua época, pois exigia do Estado que não coagisse a
consciência de seus cidadãos. No entanto, ela ainda pressupunha que a liberdade
de crença era um bem concedido, e não um direito inato, ou seja, natural do ser
humano.
A grande revolução do
constitucionalismo moderno, iniciada pela Declaração de Direitos da Virgínia,
foi justamente inverter essa lógica. A liberdade de consciência e de crença
deixou de ser um favor do Estado para se tornar um direito natural e
inalienável. A partir desse momento, o papel do Estado não é mais o de tolerar,
mas o de proteger e garantir um direito que o indivíduo já possui por natureza.
Aplicando essa distinção ao contexto
da assistência religiosa em hospitais, fica evidente o porquê de a tolerância
ser insuficiente. A necessidade de um amparo espiritual em momentos de doença e
fragilidade não é algo que possa ser sujeito à discricionariedade ou à
benevolência de uma instituição. É um direito que emana da própria dignidade da
pessoa humana, que inclui a sua dimensão espiritual.
A Constituição Federal de 1988 e leis
esparsas sobre o assunto, ao assegurarem a assistência religiosa, não estão
"tolerando" a presença de ministros religiosos. Elas estão, de forma
ativa, positivando e regulamentando um direito fundamental do paciente. O
assistente religioso, portanto, não está ali por concessão da rotina
hospitalar, mas como um agente da efetivação do direito do paciente de ser
cuidado em sua totalidade.
A tolerância, no entanto, mantém um
papel vital, mas em um contexto diferente: o relacionamento entre as próprias
religiões.
Em uma sociedade plural e
democrática, onde diferentes crenças coexistem, a tolerância é a virtude ética
e social que permite a convivência pacífica. É a capacidade de uma fé respeitar
a manifestação de outra, sem buscar sua conversão pela força (busca de conversão
pode existir sem problema), sua deslegitimação ou sua eliminação. Enquanto o
Estado garante o direito à liberdade religiosa, os cidadãos de diferentes
credos devem praticar a tolerância mútua, reconhecendo a dignidade do outro,
mesmo diante de convicções diferentes.
A visão de uma evolução gradual e
linear, de um progresso constante do conceito de "tolerância" para o
de "direito natural", é uma idealização que a história e a prática
desmentem. Sua percepção de que há retrocessos significativos é não apenas
correta, mas essencial para uma análise honesta do tema.
A declaração de um direito, seja em
um documento revolucionário como a Declaração de Direitos da Virgínia ou em uma
Constituição moderna, é um ponto de partida, não um ponto de chegada. O
reconhecimento formal de uma prerrogativa fundamental não elimina, por si só,
os desafios de sua efetivação. A distância entre a norma jurídica e a realidade
social é o espaço onde os "retrocessos vultosos" ocorrem.
Essa fragilidade se manifesta de
diversas formas. Uma delas é a persistência do autoritarismo que mesmo após as
grandes declarações de direitos, regimes totalitários e ditatoriais ao longo do
século XX (e XXI) demonstraram que a liberdade religiosa e a dignidade humana
podem ser suprimidas por simples ato de força, ignorando solenemente os
preceitos de qualquer lei fundamental. O Brasil, em sua própria história, já
vivenciou a suspensão de garantias que pareciam inabaláveis.
Outro ponto é o abismo entre a teoria
e a prática. O direito à assistência religiosa está garantido em nossa
Constituição e em leis federais. No entanto, o positivismo estreito da
burocracia e a inércia administrativa das instituições podem transformar essa
garantia em letra morta.
O paciente que é impedido de receber
uma unção dos enfermos no leito de morte, por conta de um "horário de
visitas" ou de um "protocolo" não essencial, é vítima de um
retrocesso prático, mesmo que a lei continue em vigor. O direito, que deveria
ser um escudo, torna-se prisioneiro de um processo.
A história dos direitos humanos,
portanto, não é um conto de progresso ininterrupto, mas uma crônica de lutas
constantes, vitórias parciais e derrotas temporárias. A passagem da
"tolerância" para o "direito" é uma conquista conceitual
imensa, mas que precisa ser reafirmada a cada dia, em cada hospital, em cada
instância do Poder Público e, sobretudo, na mentalidade de cada profissional de
saúde. Esses últimos são essenciais.
O direito à assistência religiosa nos
hospitais é o reflexo mais nítido dessa luta contínua. As barreiras
burocráticas não são meros entraves administrativos, mas manifestações
contemporâneas de uma mentalidade que, no fundo, ainda vê a liberdade de crença
como uma concessão, uma graciosidade, um mero favor e não como um direito
fundamental e inviolável.
A conquista da liberdade religiosa e
da dignidade humana nunca é definitiva. É uma batalha que se trava
continuamente, tanto nas grandes arenas da história quanto nos pequenos espaços
do dia a dia.
O Estado, portanto, e suas
instituições não devem tolerar a assistência religiosa; eles devem garanti-la
como um direito. Já a relação entre as pessoas e os diferentes grupos
religiosos deve ser pautada pela tolerância e pelo respeito mútuo, que são a
base de uma convivência harmoniosa em uma sociedade laica e plural.
Nenhum comentário:
Postar um comentário