A história do Direito Canônico
Matrimonial é uma narrativa contínua de evolução legislativa e de respostas a
desafios teológicos, jurídicos e pastorais. Durante séculos, o matrimônio foi
considerado, antes de tudo, uma realidade de direito natural, cujo vínculo se
estabelecia pelo simples e legítimo consentimento dos nubentes. Esta
compreensão, alicerçada no princípio consensus facit nuptias, dispensava
formalidades externas para a validade da união.
Contudo, essa liberdade original,
embora respeitasse a essência natural do matrimônio, gerou sérios problemas
práticos. Os chamados casamentos clandestinos — contraídos sem publicidade, sem
testemunhas e muitas vezes contra a vontade das famílias — criavam um cenário
de insegurança jurídica e pastoral. A ausência de provas formais do vínculo
resultava em disputas sobre a sua existência e validade, colocando em risco não
apenas a estabilidade conjugal, mas também a legitimidade dos filhos e a paz
social.
O Concílio de Trento e o Decreto Tametsi
A resposta definitiva a essa crise
veio do Concílio de Trento (1545–1563), em um momento histórico marcado pela
Reforma Protestante e pela necessidade de reafirmar a doutrina e a disciplina
da Igreja. No dia 11 de novembro de 1563, na Sessão XXIV, foi promulgado o
célebre Decreto Tametsi, que introduziu uma profunda transformação na
disciplina matrimonial.
O Tametsi estabeleceu que,
para a validade do matrimônio, este deveria ser celebrado perante o pároco
próprio de um dos contraentes ou um sacerdote delegado, e na presença de ao
menos duas testemunhas qualificadas. O descumprimento desta exigência
acarretava a invalidade do vínculo — uma medida sem precedentes, pois pela
primeira vez na história a Igreja condicionava a validade do matrimônio à
observância de uma forma canônica específica.
A motivação para tal medida residia
no entendimento amadurecido de que, embora o matrimônio seja um direito
natural, o casamento entre batizados é também um sacramento sobre o qual a
Igreja possui competência legislativa plena. O objetivo não era substituir o
consentimento — elemento constitutivo do vínculo matrimonial — mas protegê-lo,
dar-lhe publicidade e prevenir abusos. O Concílio reafirmou que os próprios
nubentes são ministros do sacramento e que a validade de sua vontade não
dependia de consentimento paterno, assegurando maior autonomia aos contraentes.
Dificuldades de aplicação e o caso brasileiro
Embora promulgado em 1563, o Tametsi
não teve aplicação universal imediata. Sua execução estava condicionada à
promulgação em cada diocese, e em alguns países a implementação encontrou
barreiras políticas.
O Brasil é um exemplo emblemático.
Durante o período colonial e imperial, vigorava o sistema do Padroado, pelo
qual o Estado — representado pela Coroa portuguesa e, posteriormente, pelo
Imperador — detinha o direito de aprovar (o chamado placet) ou vetar a
aplicação de normas eclesiásticas. Isso impediu a plena vigência do Tametsi
no território nacional por mais de três séculos.
Somente com a Proclamação da
República (1889) e a promulgação do Decreto 119-A de 1890, que estabeleceu a
separação entre Igreja e Estado, foi possível aplicar livremente a legislação
tridentina no Brasil, libertando-a das amarras do placet estatal.
O Decreto Ne Temere e a universalização da forma
canônica
Apesar do avanço trazido pelo Tametsi,
sua aplicação limitada geograficamente ainda permitia a existência de
casamentos clandestinos em alguns lugares. A solução definitiva veio com o Decreto
Ne Temere, promulgado em 1907 pelo Papa Pio X, por meio da Congregação
para o Concílio.
O Ne Temere universalizou a
obrigatoriedade da forma canônica, eliminando as exceções que ainda subsistiam.
A partir de sua vigência, todos os católicos, em qualquer parte do mundo,
estavam obrigados a contrair matrimônio segundo a forma estabelecida pela
Igreja, sob pena de nulidade. Essa medida garantiu a uniformidade da disciplina
matrimonial e praticamente extinguiu os casamentos clandestinos no mundo
católico.
Do Código de 1917 ao Código de 1983
A codificação do Direito Canônico de
1917 incorporou a essência do Tametsi e do Ne Temere,
sistematizando as normas sobre a forma canônica e estabelecendo regras claras
para a validade dos matrimônios. Essa disciplina se manteve como base até a
promulgação do Código de Direito Canônico de 1983, que, inspirado no Concílio
Vaticano II, manteve o núcleo da forma canônica, adaptando-a às exigências
pastorais contemporâneas.
Atualmente, o cân. 1108 do Código de
1983 consagra a exigência de celebração diante do Ordinário do lugar, do pároco
ou de um sacerdote ou diácono delegado, com a presença de duas testemunhas,
para a validade do matrimônio. Trata-se, portanto, da continuidade histórica de
uma disciplina iniciada no século XVI e consolidada ao longo de mais de quatro
séculos.
Conclusão
A trajetória que vai do consensus
facit nuptias puro e simples até a forma canônica obrigatória demonstra
como o Direito Canônico matrimonial evoluiu para responder a necessidades
concretas da vida eclesial. O que começou como uma solução pastoral para
combater abusos e incertezas jurídicas se transformou em um pilar da segurança
jurídica e sacramental da Igreja.
Hoje, a forma canônica não é um mero
formalismo, mas um instrumento que garante a publicidade, a liberdade e a
autenticidade do consentimento matrimonial, preservando a dignidade do
sacramento e protegendo a comunidade contra vínculos inválidos ou duvidosos.
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