sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

As coleções espúrias.



Emanuel de Oliveira Costa Jr.
Introdução.

É fato que o direito canônico não é lá a matéria de maior interesse de muitos estudiosos do direito e que muito ainda há que ser estudado e divulgado para o amplo público, especialmente dentro de um espaço que consideramos que tudo tem e tudo sabe que é a internet. Entretanto, considero simplesmente surreal que qualquer busca que se faça sobre alguns temas, simplesmente se dê resultado zero. Como é possível que hoje não exista tudo dentro de um clique no Google? Um desses temas é o que abaixo irei escrever sobre as “coleções espúrias” que considero uma história extremamente interessante e que tem resultado zero nas buscas na internet, a não ser por um único livro escrito em português do Mons. Maurílio Cesar de Lima intitulado “Introdução à História do Direito Canônico”.

Pois bem, as chamadas “coleções espúrias” se situam nos séculos IX e X, em um momento muito tenebroso para a Igreja devido a várias dificuldades e falta de crédito que o papado enfrentava nessa época.

No final do século IX já se duvidava seriamente do prestígio do sumo pontífice, no século X sequer se duvidava, já se tinha certeza que não havia crédito algum. Isso tudo devido a uma série de escolhas feitas e Papas eleitos que estavam muito abaixo do nível esperado para o cargo e que sequer conseguiriam conduzir suas próprias casas, quanto mais o leme de Pedro. Não havia sabedoria nas decisões, muito menos firmeza. Não havia crédito algum devido a erros sucessivos e falta de credibilidade por não dar qualquer tipo de bom exemplo quando necessário fosse. Estávamos no que hoje é conhecido como o “século de ferro”. Uma lástima para a administração da Igreja, Corpo Místico de Cristo, mas que precisa existir nesse mundo com todas as questões seculares que nos rodeiam.

As coleções. O que eram?

Antes de entrar especificamente no século de ferro e no motivo que levou a isso, bem como falar das coleções espúrias em si, considero bem interessante explicar, primeiramente o que é uma coleção, já que aqui estamos pinçando uma pequena faixa da história e esses termos podem se perder no caminho.

As coleções canônicas eram, por assim dizer, verdadeiras coleções de leis canônicas esparsas feitas por determinadas pessoas ao longo dos séculos. Saiam literalmente catando documentos de leis canônicas nas diversas dioceses e até da Igreja Universal. Como não haviam codificações de leis como hoje e que só foram inventadas e popularizadas no século XVIII, as leis eram colecionadas por algumas pessoas, clérigos ou não, e algumas acabavam ganhando fama devido a sua abrangência, organização ou mesmo por ser consideradas autênticas (reconhecidas) pela Igreja. Com o tempo algumas dessas coleções acabam sendo autenticadas pela Igreja ou simplesmente, com o sequencial estudo, passavam a ser adotadas consuetudinariamente. Enfim, essas coleções foram os primeiros passos de uma longeva evolução do direito canônico até chegar na estrutura que temos hoje tanto do direito canônico quanto do direito civil que acabou herdando muito disso tudo.

O século de ferro.

O século de ferro aconteceu devido a debilidade dos Papas eleitos. Tal debilidade veio devido a influências políticas externas que impunham o cargo a certas pessoas que não tinham a mínima condição de ocupá-lo. Como tal fato ocorreu sequencialmente por vários papados, a instituição da Igreja se tornou débil, sem crédito e muitas vezes motivo de chacota. Por esse motivo o direito antigo e universal, com algumas coleções de grande autoridade como a Dionisiana e Hispana foram perdendo sua eficácia, afinal o direito é dinâmico e novas situações vão surgindo. Se não houvesse atualização essas coletâneas de leis simplesmente seriam superadas por serem absolutamente ineficientes, como era o caso.

O desprestígio do papado não levada a crédito nenhum para que se pudesse atualizar esse clássico direito. Leigos começavam com uma ingerência exacerbada dentro das coisas eclesiásticas e não havia legislação que impedisse que isso acontecesse; muitas novas situações surgiam a cada dia e o direito sequer havia mencionado algo a respeito. O caos ia se instalando nas coisas e bens elcesiasticos.

Nisso tudo estamos no início do século IX, dentro do reinado de Ludovico, o Pio e a harmonia do poder imperial com o poder papal estava em franca degradação, a interferência de leigos nas nomeações e deposições de bispos era crescente e as invasões de bens eclesiásticos já estava fora de controle. Tudo isso devido a falta de legislação que prevenisse esse tipo de atitude que era totalmente nova na história da Igreja.

As coletâneas espúrias e seus motivos.

A solução que alguns autores anônimos encontraram não foi a mais honesta, muito menos a mais correta, mas era o que conseguiram pensar na época e o que consideraram ser a solução mais rápida e eficiente. Estava em curso a ideia das coletâneas espúrias.

Esses autores anônimos fabricaram um suposto direito autêntico que nunca existiu. Fraudaram documentos, falsificaram assinaturas, criaram fontes fantasiosas e mascararam a autenticidade. Um verdadeiro trabalho de mestre que se arrastou ao longo dos tempos. As falsificações eram de documentos civis e religiosos emanados por autoridades de todos os tipos e atacavam a atividade de leigos poderosos, muitas vezes soberanos e autoridades conhecidas contra investidas deles a bens e direitos da Igreja. Só era possível que esses usurpadores agissem devido a, como já mencionamos, total falta de crédito do papado e falta de atualização legislativa que impedisse que esses leigos agissem.

As coletâneas espúrias buscavam aclamar a autoridade régia como interessada na reforma eclesiástica. O intuito era claro: forçar a Igreja a fazer a dita reforma e resolver o problema o quanto antes com mão pesada e autoridade necessária.

Outro ponto que era preciso reformar e que, por esse motivo, foram temas das coletâneas espúrias é o exercício de clérigos na atividade civil. O exagero desse exercício clérigo em atividade que não lhes pertencem era visto com muito maus olhos pelos falsificadores criadores das coletâneas espúrias. O fato é que várias questões estavam fora de ordem e caminhando para um lado que não era o correto, contudo a Igreja não se via com credibilidade suficiente para impedir.

Essas coleções falsas, chamadas por isso de espúrias, vieram com alguns intuitos também internos e administrativos. Validavam de forma incontestável o poder hierárquico na organização eclesiástica, salvaguardavam o poder dos bispos em seu território com vista a impedir algo muito comum naquela época que era a ingerência do metropolita (arcebispo) nas dioceses sufragâneas, pregavam a obediência tanto entre clérigos quanto também aos leigos em relação a seu bispo para que não se criassem tantos subterfúgios para a desobediência como era o que estava em voga na época. Insistiram na isenção dos mosteiros o que, dado o que conhecemos da história que temos hoje foi um grande acerto. Pesaram a mão contra a existência dos corepíscopos que eram espécies de bispos auxiliares, mas que acabam não auxiliando tanto assim e causavam certos desconfortos devido a indisciplinas dentro da Igreja. O tema da situação jurídica dos corepíscopos por si só já vale um artigo em separado. Enfim, eram uma série de temas que pretendiam organizar o que precisava de organização e que deveria ter sido feito pela hierarquia da Igreja na época, especialmente os sumos pontífices, contudo, sua credibilidade, conhecimento, religiosidade e a pressão política não permitiam.

A ideia das falsificações era restaurar a antiga disciplina, contudo usaram de um caminho muito pouco ortodoxo para realizar o que era certo. Acabaram seguindo pelo caminho de “os fins justificam os meios” e aceitaram cometer o crime e pecado de falsificar documentos para que um bom resultado viesse.

As falsificações foram tão bem feitas e guardadas com um sigilo tão grande e bem pensado que, até hoje, não se sabe a autoria das falsificações que chega a desafiar investigadores com todos os seus aparatos tecnológicos e acessos a informação que se tem hoje em dia.

Algumas das maiores falsificações.

Entre as maiores falsificações temos as seguintes: Hispana Augustodonense que apresenta correções, adições, interpolações, alterações e cortes de acordo com as finalidades dos falsários; Capitula Angilramni que é um documento que visou impedir as interferências de leigos na área judicial da Igreja, especialmente quanto a jurisdição processual civil e criminal em causas que envolviam clérigos; Capitularia de Benedito Levita, na época se disse que o texto foi casualmente encontrado convenientemente quando da reforma (segundo semestre de 846 na reunião de Epernay) e que serviu para dar uma maior autonomia aos bispos e padres para proceder com a reforma em a interferência dos príncipes que eram exortados a seguirem o correto exemplo de seus antepassados. Outros documentos foram alguns chamados Capitularia de Pepino, o Breve, Carlos Magno e Ludovico I, o Pio, todas de leis civis; Pseudo-Isidorianas teria sido escrita por um desconhecido Isidoro Mercator. Trazia cânones de concílios e até cânones dos apóstolos em suas primeira e segunda parte, tudo falsificado e inteiramente imaginário. Na terceira parte aparecem textos de papas como São Silvestre e Gregório II com textos autênticos e espúrios misturados. As pseudo-isidorianas chegaram a ser plenamente aceitas pelo grande Graciano que as incluiu ipsi verbi em sua grandiosa obra.

A Donatio Constantianiana

Por fim, considerado o auge das falsificações, temos a Donatio Constantiniana. Constava da tradição que quando Constantino assinou o Edito de Milão, que concedeu a liberdade de culto aos cristãos a partir do ano 313, ele teria entregue ao Papa São Silvestre I muitas posses e até o domínio total de toda a parte ocidental do Império Romano, além de ter reconhecido o seu primado sobre todas as demais igrejas. Tudo isso já em conjunto com o Edito de Milão ou pouco depois. Essa tradição nunca tinha sido comprovada devido a falta de documentação concreta que a comprovasse. Eis que surge o documento, mas por motivos políticos sempre foi deixado um pouco de lado até ser seriamente questionado em sua validade ainda na Idade Média.

Conclusão.

Resumidamente, essa é a história das coleções espúrias, entretanto, o mais interessante não é perceber apenas que se trataram de falsificações, algo que para os dias atuais seria muito fácil reconhecer, mas que para a época foi possível com alguns peritos em falsificações que, depois de tanto tempo continuam anônimos. Não é bem isso que é o interessante da história toda, mas sim como essas coleções falsas de leis civis e eclesiásticas prosperaram e cumpriram seu papel já que tinham a clara intenção de fazer com que a antiga disciplina voltasse, além de provocar uma reforma na Igreja conduzida por Roma e arrumar o grande problema que Papas sem credibilidade, conhecimento e até religiosidade causaram. Foram falsificações que conduziram a Igreja para o caminho correto. Apesar de um ato criminoso, foi por meio desse tipo de ação que os trilhos corretos voltaram a ser trilhados.

Como não se pode entender as coisas da Igreja como coisas meramente humanas, sob pena de cair em um racionalismo sem alicerces na fé, algo que pode nos levar a um tecnicismo quase ateu, precisamos, portanto, entender de forma sobrenatural o porque de tais coisas terem acontecido. Seria possível outra forma de trazer a Igreja para os trilhos corretos novamente? A pergunta é difícil, pode ser que sim, pode ser que não. A questão é entender que esse meio foi usado e que a Igreja sobrevive por mais de dois mil anos, o que por si só é um milagre dados todos os fatos históricos como esses aqui relatados, dado todos os maus padres, bispos, papas e leigos que mais prejudicaram do que ajudaram. Qualquer outra instituição, meramente humana teria sobrevivido?

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