terça-feira, 28 de outubro de 2025

Matrimônio no Direito Civil e no Direito Canônico: convergências, diferenças e implicações jurídicas e teológicas

 

O matrimônio é uma das instituições mais antigas e universais da experiência humana. Presente em praticamente todas as culturas, ele traduz uma necessidade fundamental da natureza social do homem: a comunhão estável entre homem e mulher, aberta à vida e ao bem mútuo. Contudo, ao longo da história, essa realidade única passou a ser interpretada de formas diversas conforme o ordenamento jurídico e o contexto religioso.

No mundo moderno, a diferença entre o matrimônio civil, regulado pelo Estado, e o matrimônio canônico, reconhecido pela Igreja, tornou-se uma das distinções mais relevantes do Direito de Família contemporâneo.

O que na antiguidade greco-romana era visto só como contrato social sem qualquer caráter religioso ou sacramental, passou pela Idade Média e passou a ser visto só como pacto com caráter sacramental e reconhecido pelo Estado. Nos últimos dois séculos ou pouco mais que isso, volta a ser visto como contrato social, separado do caráter religioso, mas agora com a manutenção do caráter religioso como opção.

 1. Natureza e fundamento do matrimônio 

No Direito Civil, o casamento é compreendido como um contrato jurídico de direito público, mediante o qual duas pessoas se unem para constituir família, produzindo efeitos pessoais e patrimoniais reconhecidos pelo Estado. Seu fundamento é positivista e voluntarista: o Estado reconhece validade à união enquanto houver vontade das partes e observância da forma legal. Por isso, o casamento civil é dissolúvel[1], podendo ser encerrado pelo divórcio, a partir da manifestação de vontade dos cônjuges.

Já no Direito Canônico, o matrimônio é muito mais que um contrato: trata-se de um pacto natural elevado por Cristo à dignidade de sacramento (cân. 1055 §1–2 do CIC de 1983). Ele é, ao mesmo tempo, um ato jurídico e um mistério teológico. No plano da fé, o matrimônio é sinal eficaz da união entre Cristo e a Igreja (Ef 5, 32), razão pela qual é indissolúvel e exclusivo. No plano jurídico, é uma realidade institucional regulada pela Igreja, dotada de efeitos tanto no foro interno (consciência) quanto externo (ordem canônica).

Enquanto o Estado entende o matrimônio como contrato de vontades temporário, a Igreja o reconhece como aliança irrevogável, fundada na própria natureza humana e confirmada pela graça sacramental. A diferença não é apenas terminológica, mas ontológica: o primeiro é um contrato sujeito à lei humana; o segundo, um sacramento fundado na lei divina. 

2. O consentimento e a causa do vínculo 

Para o Direito Civil, o consentimento é a causa do contrato. Ele deve ser livre, consciente e manifestado de acordo com a forma legal. A lei civil reconhece vícios do consentimento — como erro, dolo ou coação — que podem tornar o casamento anulável (arts. 1.548–1.557 do Código Civil). No entanto, a vontade contratual é revogável: o mesmo consentimento que cria o vínculo pode dissolvê-lo, seja pelo divórcio consensual, seja pela sentença judicial em processo litigioso.

Já o Direito Canônico confere ao consentimento uma natureza sacramental e irrevogável. De acordo com o cânon 1057 do CIC, “o consentimento dos cônjuges faz o matrimônio; nenhuma autoridade humana o pode suprir”. Esse consentimento não é simples manifestação de vontade, mas ato de entrega pessoal, que cria um vínculo perpétuo entre os esposos.

A ausência, defeito ou exclusão desse consentimento não apenas vicia o contrato, mas impede que o sacramento exista — o que gera a nulidade matrimonial (c. 1095–1101).

Dessa diferença decorre um contraste essencial: no civil, o divórcio dissolve um vínculo válido; no canônico, a nulidade declara que o vínculo nunca existiu validamente. A Igreja, portanto, não “anula” casamentos, mas reconhece juridicamente que, por ausência de consentimento verdadeiro, nunca houve matrimônio sacramental. 

3. Finalidade e efeitos jurídicos 

A finalidade do matrimônio também revela a diferença entre os dois sistemas.

No ordenamento civil, o casamento tem como fins principais a organização familiar e a regulação patrimonial, estabelecendo direitos e deveres de convivência, assistência e herança. Os efeitos jurídicos concentram-se na esfera social: partilha de bens, pensão alimentícia, guarda dos filhos e sucessão hereditária.

O Direito Canônico, por sua vez, aponta para fins mais elevados: o bem dos cônjuges (bonum coniugum) e o bem da prole (bonum prolis). A comunhão de vida e amor é vista como meio de santificação e caminho para o crescimento espiritual mútuo. A procriação e educação dos filhos, por sua vez, não são apenas consequências biológicas, mas deveres gravíssimos e direitos primários dos pais (c. 1136).

Assim, o matrimônio canônico tem efeitos não apenas jurídicos, mas espirituais: ele confere graça sacramental e coloca os esposos em estado de vida estável dentro da comunidade eclesial.

No âmbito civil, o matrimônio é dissolvido pelo divórcio; na esfera canônica, o vínculo permanece até a morte de um dos cônjuges. Mesmo quando há separação de corpos[2] ou ruptura afetiva, o laço sacramental subsiste, pois se trata de vínculo de direito divino natural, não sujeito à vontade humana. 

4. Nulidade, anulabilidade e dissolução 

A nulidade matrimonial apresenta concepções profundamente distintas em cada sistema.

No Direito Civil, a nulidade é regulada pelo Código Civil (arts. 1.548 e ss.) e ocorre quando falta elemento essencial à validade do ato (como a idade mínima, o consentimento ou a inexistência de impedimentos). Existe ainda a anulabilidade, que permite a convalidação posterior do casamento se os vícios forem sanados.

No Direito Canônico, a distinção entre nulidade e anulabilidade existe da mesma forma, contudo não é possível anular um casamento devido a propriedade da indissolubilidade. O matrimônio é válido ou nulo, jamais “anulável”.

Se o consentimento foi viciado por grave falta de discrição de juízo (c. 1095), por erro essencial (c. 1097) ou por exclusão deliberada de elementos essenciais — como a prole, a fidelidade ou a indissolubilidade (c. 1101 §2) —, o ato é considerado inexistente desde a origem.

Por isso, o tribunal eclesiástico não “desfaz” um matrimônio, mas reconhece juridicamente a inexistência de vínculo válido desde o início.

Essa diferença explica por que a sentença de nulidade canônica não se confunde com o divórcio civil: o primeiro é declaração de inexistência; o segundo é dissolução de vínculo válido. 

5. Os princípios da indissolubilidade e da unidade conjugal 

A indissolubilidade é o ponto mais alto da distinção entre os dois regimes jurídicos.

Enquanto o Direito Civil admite a dissolução do vínculo conjugal por mera vontade das partes, o Direito Canônico afirma que o matrimônio consumado[3] “não pode ser dissolvido por nenhuma autoridade humana nem por qualquer causa, exceto a morte” (c. 1141).

Esse princípio decorre da própria instituição divina do matrimônio, conforme as palavras de Cristo: “O que Deus uniu, o homem não separe” (Mt 19, 6).

A unidade conjugal, por sua vez, garante a exclusividade do vínculo. O casamento simultâneo com mais de uma pessoa é juridicamente nulo e teologicamente inconcebível, pois o matrimônio cristão é reflexo da fidelidade única de Cristo à Igreja.

Assim, fidelidade e indissolubilidade são não apenas propriedades morais, mas estruturas jurídicas que definem a essência do matrimônio[4]. 

6. A questão histórica: do Padroado ao casamento civil 

Historicamente, o Brasil viveu um longo período de confusão entre a esfera civil e a eclesiástica.

Durante o Império, vigorava o Regime do Padroado, pelo qual a Igreja dependia do aval do Imperador (placet régio) para aplicar decretos canônicos, inclusive o decreto Tametsi do Concílio de Trento (1563), que estabelecia a forma pública obrigatória para validade do matrimônio.

Somente com o Decreto 119-A, de 1890, e a Proclamação da República, houve a separação entre Igreja e Estado e a criação do casamento civil obrigatório.

Desde então, coexistem dois regimes jurídicos: o civil, de competência estatal, e o canônico, de competência eclesiástica, isso para o Brasil.

Atualmente, o casamento religioso pode produzir efeitos civis mediante registro (Lei nº 1.110/1970), mas isso não altera a distinção essencial entre ambos. 

7. Convergências e divergências 

Embora partam de fundamentos distintos, ambos os sistemas reconhecem o matrimônio como base da família e instrumento de estabilidade social. Há convergência quanto à necessidade de consentimento livre, à igualdade dos cônjuges e à proteção da prole. 

Todavia, as divergências são estruturais: O direito civil vê o matrimônio como contrato dissolúvel e temporal, sujeito à vontade humana; O direito canônico o entende como sacramento indissolúvel e vocacional, sujeito à lei divina e à fé dos cônjuges. 

Essa diferença explica porque, para a Igreja, o divórcio civil não dissolve o vínculo espiritual e jurídico criado pelo sacramento, permanecendo o impedimento para novas núpcias enquanto não houver declaração de nulidade. 

8. Conclusão 

O confronto entre o matrimônio civil e o matrimônio canônico revela duas antropologias jurídicas distintas.

O Estado vê o casamento como instrumento de regulação social; a Igreja, como expressão do desígnio divino de amor e comunhão.

Ambos partem do consentimento humano, mas divergem quanto à sua natureza: o civil é contrato; o canônico é sacramento. O primeiro depende da lei; o segundo, da graça.

A coexistência desses dois regimes, longe de ser contradição, é expressão da complexidade da condição humana — simultaneamente temporal e espiritual — e recorda que, mesmo diante da pluralidade de sistemas jurídicos, o verdadeiro matrimônio continua a ser, antes de tudo, uma aliança de vida, amor e fé.



[1] O casamento civil no Brasil também foi indissolúvel até 1977 quando entrou em vigor a lei do divórcio.

[2] A Igreja aceita que haja separação de corpos em algumas situações limítrofes, contudo essa separação de corpos não significa que o matrimônio está dissolvido.

[3] O casamento pode ser dissolvido exclusivamente pelo Romano Pontífice, o Papa, no caso de provada a não consumação em processo judicial específico em Tribunal Eclesiástico competente.

[4] Compreender isso é essencial para não entender a estrutura do sacramento do matrimônio apenas no campo teológico ou, pior que isso, no campo sentimentalista. Se trata de um pacto que tem efeitos jurídicos assim como existem seus efeitos e suas consequências teológicas e morais.

Nenhum comentário: