O matrimônio é
uma das instituições mais antigas e universais da experiência humana. Presente
em praticamente todas as culturas, ele traduz uma necessidade fundamental da
natureza social do homem: a comunhão estável entre homem e mulher, aberta à
vida e ao bem mútuo. Contudo, ao longo da história, essa realidade única passou
a ser interpretada de formas diversas conforme o ordenamento jurídico e o
contexto religioso.
No mundo moderno,
a diferença entre o matrimônio civil, regulado pelo Estado, e o matrimônio
canônico, reconhecido pela Igreja, tornou-se uma das distinções mais relevantes
do Direito de Família contemporâneo.
O que na antiguidade
greco-romana era visto só como contrato social sem qualquer caráter religioso
ou sacramental, passou pela Idade Média e passou a ser visto só como pacto com
caráter sacramental e reconhecido pelo Estado. Nos últimos dois séculos ou
pouco mais que isso, volta a ser visto como contrato social, separado do
caráter religioso, mas agora com a manutenção do caráter religioso como opção.
No Direito Civil,
o casamento é compreendido como um contrato jurídico de direito público,
mediante o qual duas pessoas se unem para constituir família, produzindo
efeitos pessoais e patrimoniais reconhecidos pelo Estado. Seu fundamento é
positivista e voluntarista: o Estado reconhece validade à união enquanto houver
vontade das partes e observância da forma legal. Por isso, o casamento civil é
dissolúvel[1],
podendo ser encerrado pelo divórcio, a partir da manifestação de vontade dos
cônjuges.
Já no Direito
Canônico, o matrimônio é muito mais que um contrato: trata-se de um pacto
natural elevado por Cristo à dignidade de sacramento (cân. 1055 §1–2 do CIC de
1983). Ele é, ao mesmo tempo, um ato jurídico e um mistério teológico. No plano
da fé, o matrimônio é sinal eficaz da união entre Cristo e a Igreja (Ef 5, 32),
razão pela qual é indissolúvel e exclusivo. No plano jurídico, é uma realidade
institucional regulada pela Igreja, dotada de efeitos tanto no foro interno
(consciência) quanto externo (ordem canônica).
Enquanto o Estado entende o matrimônio como contrato de vontades temporário, a Igreja o reconhece como aliança irrevogável, fundada na própria natureza humana e confirmada pela graça sacramental. A diferença não é apenas terminológica, mas ontológica: o primeiro é um contrato sujeito à lei humana; o segundo, um sacramento fundado na lei divina.
2. O consentimento e a causa do vínculo
Para o Direito
Civil, o consentimento é a causa do contrato. Ele deve ser livre, consciente e
manifestado de acordo com a forma legal. A lei civil reconhece vícios do
consentimento — como erro, dolo ou coação — que podem tornar o casamento
anulável (arts. 1.548–1.557 do Código Civil). No entanto, a vontade contratual
é revogável: o mesmo consentimento que cria o vínculo pode dissolvê-lo, seja
pelo divórcio consensual, seja pela sentença judicial em processo litigioso.
Já o Direito
Canônico confere ao consentimento uma natureza sacramental e irrevogável. De
acordo com o cânon 1057 do CIC, “o consentimento dos cônjuges faz o matrimônio;
nenhuma autoridade humana o pode suprir”. Esse consentimento não é simples
manifestação de vontade, mas ato de entrega pessoal, que cria um vínculo
perpétuo entre os esposos.
A ausência,
defeito ou exclusão desse consentimento não apenas vicia o contrato, mas impede
que o sacramento exista — o que gera a nulidade matrimonial (c. 1095–1101).
Dessa diferença decorre um contraste essencial: no civil, o divórcio dissolve um vínculo válido; no canônico, a nulidade declara que o vínculo nunca existiu validamente. A Igreja, portanto, não “anula” casamentos, mas reconhece juridicamente que, por ausência de consentimento verdadeiro, nunca houve matrimônio sacramental.
3. Finalidade e efeitos jurídicos
A finalidade do
matrimônio também revela a diferença entre os dois sistemas.
No ordenamento
civil, o casamento tem como fins principais a organização familiar e a
regulação patrimonial, estabelecendo direitos e deveres de convivência,
assistência e herança. Os efeitos jurídicos concentram-se na esfera social:
partilha de bens, pensão alimentícia, guarda dos filhos e sucessão hereditária.
O Direito
Canônico, por sua vez, aponta para fins mais elevados: o bem dos cônjuges (bonum
coniugum) e o bem da prole (bonum prolis). A comunhão de vida e amor
é vista como meio de santificação e caminho para o crescimento espiritual
mútuo. A procriação e educação dos filhos, por sua vez, não são apenas
consequências biológicas, mas deveres gravíssimos e direitos primários dos pais
(c. 1136).
Assim, o
matrimônio canônico tem efeitos não apenas jurídicos, mas espirituais: ele
confere graça sacramental e coloca os esposos em estado de vida estável dentro
da comunidade eclesial.
No âmbito civil, o matrimônio é dissolvido pelo divórcio; na esfera canônica, o vínculo permanece até a morte de um dos cônjuges. Mesmo quando há separação de corpos[2] ou ruptura afetiva, o laço sacramental subsiste, pois se trata de vínculo de direito divino natural, não sujeito à vontade humana.
4. Nulidade, anulabilidade e dissolução
A nulidade
matrimonial apresenta concepções profundamente distintas em cada sistema.
No Direito Civil,
a nulidade é regulada pelo Código Civil (arts. 1.548 e ss.) e ocorre quando
falta elemento essencial à validade do ato (como a idade mínima, o
consentimento ou a inexistência de impedimentos). Existe ainda a anulabilidade,
que permite a convalidação posterior do casamento se os vícios forem sanados.
No Direito
Canônico, a distinção entre nulidade e anulabilidade existe da mesma forma,
contudo não é possível anular um casamento devido a propriedade da indissolubilidade.
O matrimônio é válido ou nulo, jamais “anulável”.
Se o
consentimento foi viciado por grave falta de discrição de juízo (c. 1095), por
erro essencial (c. 1097) ou por exclusão deliberada de elementos essenciais —
como a prole, a fidelidade ou a indissolubilidade (c. 1101 §2) —, o ato é
considerado inexistente desde a origem.
Por isso, o
tribunal eclesiástico não “desfaz” um matrimônio, mas reconhece juridicamente a
inexistência de vínculo válido desde o início.
Essa diferença explica por que a sentença de nulidade canônica não se confunde com o divórcio civil: o primeiro é declaração de inexistência; o segundo é dissolução de vínculo válido.
5. Os princípios da indissolubilidade e da unidade conjugal
A
indissolubilidade é o ponto mais alto da distinção entre os dois regimes
jurídicos.
Enquanto o
Direito Civil admite a dissolução do vínculo conjugal por mera vontade das
partes, o Direito Canônico afirma que o matrimônio consumado[3]
“não pode ser dissolvido por nenhuma autoridade humana nem por qualquer causa,
exceto a morte” (c. 1141).
Esse princípio
decorre da própria instituição divina do matrimônio, conforme as palavras de
Cristo: “O que Deus uniu, o homem não separe” (Mt 19, 6).
A unidade
conjugal, por sua vez, garante a exclusividade do vínculo. O casamento
simultâneo com mais de uma pessoa é juridicamente nulo e teologicamente
inconcebível, pois o matrimônio cristão é reflexo da fidelidade única de Cristo
à Igreja.
Assim, fidelidade e indissolubilidade são não apenas propriedades morais, mas estruturas jurídicas que definem a essência do matrimônio[4].
6. A questão histórica: do Padroado ao casamento civil
Historicamente, o
Brasil viveu um longo período de confusão entre a esfera civil e a eclesiástica.
Durante o
Império, vigorava o Regime do Padroado, pelo qual a Igreja dependia do aval do
Imperador (placet régio) para aplicar decretos canônicos, inclusive o
decreto Tametsi do Concílio de Trento (1563), que estabelecia a forma
pública obrigatória para validade do matrimônio.
Somente com o
Decreto 119-A, de 1890, e a Proclamação da República, houve a separação entre
Igreja e Estado e a criação do casamento civil obrigatório.
Desde então,
coexistem dois regimes jurídicos: o civil, de competência estatal, e o
canônico, de competência eclesiástica, isso para o Brasil.
Atualmente, o casamento religioso pode produzir efeitos civis mediante registro (Lei nº 1.110/1970), mas isso não altera a distinção essencial entre ambos.
7. Convergências e divergências
Embora partam de fundamentos distintos, ambos os sistemas reconhecem o matrimônio como base da família e instrumento de estabilidade social. Há convergência quanto à necessidade de consentimento livre, à igualdade dos cônjuges e à proteção da prole.
Todavia, as divergências são estruturais: O direito civil vê o matrimônio como contrato dissolúvel e temporal, sujeito à vontade humana; O direito canônico o entende como sacramento indissolúvel e vocacional, sujeito à lei divina e à fé dos cônjuges.
Essa diferença explica porque, para a Igreja, o divórcio civil não dissolve o vínculo espiritual e jurídico criado pelo sacramento, permanecendo o impedimento para novas núpcias enquanto não houver declaração de nulidade.
8. Conclusão
O confronto entre
o matrimônio civil e o matrimônio canônico revela duas antropologias jurídicas
distintas.
O Estado vê o
casamento como instrumento de regulação social; a Igreja, como expressão do
desígnio divino de amor e comunhão.
Ambos partem do
consentimento humano, mas divergem quanto à sua natureza: o civil é contrato; o
canônico é sacramento. O primeiro depende da lei; o segundo, da graça.
A coexistência
desses dois regimes, longe de ser contradição, é expressão da complexidade da
condição humana — simultaneamente temporal e espiritual — e recorda que, mesmo
diante da pluralidade de sistemas jurídicos, o verdadeiro matrimônio continua a
ser, antes de tudo, uma aliança de vida, amor e fé.
[1] O
casamento civil no Brasil também foi indissolúvel até 1977 quando entrou em
vigor a lei do divórcio.
[2] A
Igreja aceita que haja separação de corpos em algumas situações limítrofes,
contudo essa separação de corpos não significa que o matrimônio está
dissolvido.
[3]
O casamento pode ser dissolvido exclusivamente pelo Romano Pontífice, o Papa,
no caso de provada a não consumação em processo judicial específico em Tribunal
Eclesiástico competente.
[4]
Compreender isso é essencial para não entender a estrutura do sacramento do
matrimônio apenas no campo teológico ou, pior que isso, no campo
sentimentalista. Se trata de um pacto que tem efeitos jurídicos assim como
existem seus efeitos e suas consequências teológicas e morais.
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