sexta-feira, 25 de novembro de 2016

O vendedor de palavras.

Estive lendo este conto e senti um grande identidade com ele. O que mais vemos nos dias atuais é isso mesmo: gente que não consegue ler nem gibi porque acha que é grande demais. O que mais vejo por ai são crianças e adolescentes que pegam um livro e o avaliam pelo tamanho, se for grande deixa pra lá.





O vendedor de palavras.

Um comerciante decidiu ajudar a combater a "indigência lexical" do país, mas ao melhor preço do mercado: ouviu  dizer que o Brasil sofria de uma grave falta de palavras. Em um programa de TV, viu uma escritora lamentando que não se liam livros nesta terra, por isso as palavras estavam em falta na praça. O mal tinha até nome de batismo, como qualquer doença grande, “indigência lexical”.
 
Comerciante de tino que era, não perdeu tempo em ter uma idéia fantástica. Pegou dicionário, mesa e cartolina e saiu ao mercado cavar espaço entre os camelôs. Entre uma banca de relógios e outra de lingerie instalou a sua: mesa, o dicionário e a cartolina na qual se lia:
    - Histriônico – apenas R$ 0,50.
 
Demorou quase quatro horas para que o primeiro de mais de cinqüenta curiosos parasse e perguntasse:
 

  - O que o senhor está vendendo?
   - Palavras, meu senhor. A promoção do dia é “histriônico” a cinqüenta centavos, como diz a placa.
   - O senhor não pode vender palavras. Elas não são suas. Palavras são de todos.
   - O senhor sabe o significado de “histriônico”?
   - Não.
   - Então o senhor não a tem. Não vendo algo que as pessoas já tem ou coisas de que elas não precisem.
   - Mas eu posso pegar essa palavra de graça no dicionário.
   - O senhor tem dicionário em casa?
   - Não. Mas eu poderia muito bem ir à biblioteca pública e consultar um.
   - O senhor estava indo à biblioteca?
   - Não. Na verdade, eu estou a caminho do supermercado.
   - Então veio ao lugar certo. O senhor está para comprar o feijão e a alface, pode muito bem levar para casa uma palavra por apenas cinqüenta centavos de real!
   - Eu não vou usar essa palavra. Vou pagar para depois esquecê-la?
  - Se o senhor não comer a alface ela acaba apodrecendo na geladeira e terá de jogá-la fora e o feijão caruncha.
   - O que pretende com  isto? Vai ficar rico vendendo palavras?
   - O senhor conhece Nélida Piñon?
   - Não.
   - É uma escritora. Esta manhã, ela disse na televisão que o país sofre com a falta de palavras, pois os livros são muito pouco lidos por aqui.
   - E por que o senhor não vende livros?
   - Justamente por isso. As pessoas não compram as palavras no atacado, portanto eu as vendo no varejo.
   - E o que as pessoas vão fazer com as palavras? Palavras são palavras, não enchem a barriga.
   - A escritora também disse que cada palavra corresponde a um pensamento. Se temos poucas palavras, pensamos pouco. Se eu vender uma palavra por dia, trabalhando duzentos dias por ano, serão duzentos novos pensamentos cem por cento brasileiros. Isso sem contar os que furtam o meu produto. São como trombadinhas que saem correndo com os relógios do meu colega aqui do lado.
Olhe aquela senhora com o carrinho de feira dobrando a esquina. Com aquela carinha de dona-de-casa, ela nunca me enganou. Passou por aqui sorrateira. Olhou minha placa e deu um sorrisinho maroto se mordendo de curiosidade. Mas nem parou para perguntar. Eu tenho certeza de que ela tem um dicionário em casa. Assim que chegar lá, vai abri-lo e me roubar a carga.
Suponho que para cada pessoas que se dispõe a comprar uma palavra, pelo menos cinco a roubarão. Então eu provocarei mil pensamentos novos em um ano de trabalho.
   - O senhor não acha muita pretensão? Pegar um...
   - Jactância.
   - Pegar um livro velho...
   - Alfarrábio.
   - O senhor me interrompe!
   - Profaço.
   - Está me enrolando ,não é?
   - Tergiversando.
   - Quanta lenga-lenga...
   - Ambages.
   - Ambages?
   - Pode ser também “evasivas”.
   - Eu sou mesmo um banana para dar trela para gente como você!
   - Pusilânime.
   - O senhor é engraçadinho, não?
   - Finalmente chegamos: histriônico!
   - Adeus.
   - Ei! Vai embora sem pagar?
   - Tome seus cinqüenta centavos.
   - São três reais e cinqüenta.
   - Como é?
   - Pelas minhas contas, são oito palavras novas que eu acabei de entregar para o senhor. Só “histriônico” estava na promoção, mas como o senhor se mostrou interessado, faço todas pelo mesmo preço.
   - Mas oito palavras seriam quatro reais, certo?
   - É que quem leva ambages ganha uma evasiva, entende?
   - Tem troco para cinco?

Fábio Reynol é jornalista especializado em ciências e escritor.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Declaração conjunta. Encontro do Papa com a Igreja Luterana. Texto completo.

Papa assina a Declaração. Foto: L'Osservatore Romano
No dia 31/10/2016 o Papa Francisco e o Bispo Munib Yunan, presidente da Federação Mundial Luterana assinaram uma declaração conjunta ao fim da oração também conjunta quando celebraram na catedral luterana de Lund no primeiro dia da visita do Pontífice à Suécia.

“Apelamos a todas as paróquias e comunidades luteranas e católicas para que sejam corajosas e criativas, alegres e cheias de esperança no seu compromisso de prosseguir na grande aventura que nos espera”, diz parte do texto.

A seguir, colocamos todo o texto completo da Declaração:

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«Permanecei em Mim, que Eu permaneço em vós. Tal como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, mas só permanecendo na videira, assim também acontecerá convosco, se não permanecerdes em Mim» (Jo 15, 4).

Com coração agradecido

Com esta Declaração Conjunta, expressamos jubilosa gratidão a Deus por este momento de oração comum na Catedral de Lund, com que iniciamos o ano comemorativo do quinto centenário da Reforma. Cinquenta anos de constante e frutuoso diálogo ecumênico entre católicos e luteranos ajudaram-nos a superar muitas diferenças e aprofundaram a compreensão e confiança entre nós. Ao mesmo tempo, aproximamo-nos uns dos outros através do serviço comum ao próximo – muitas vezes em situações de sofrimento e de perseguição. Graças ao diálogo e testemunho compartilhado, já não somos desconhecidos; antes, aprendemos que aquilo que nos une é maior do que aquilo que nos separa.

Do conflito à comunhão

Ao mesmo tempo que estamos profundamente gratos pelos dons espirituais e teológicos recebidos através da Reforma, também confessamos e lamentamos diante de Cristo que luteranos e católicos tenham ferido a unidade visível da Igreja. Diferenças teológicas foram acompanhadas por preconceitos e conflitos, e instrumentalizou-se a religião para fins políticos. A nossa fé comum em Jesus Cristo e o nosso Batismo exigem de nós uma conversão diária, graças à qual repelimos as divergências e conflitos históricos que dificultam o ministério da reconciliação. Enquanto o passado não se pode modificar, aquilo que se recorda e o modo como se recorda podem ser transformados. Rezamos pela cura das nossas feridas e das lembranças que turvam a nossa visão uns dos outros. Rejeitamos categoricamente todo o ódio e violência, passados e presentes, especialmente os implementados em nome da religião. Hoje, escutamos o mandamento de Deus para se pôr de parte todo o conflito. Reconhecemos que fomos libertos pela graça para nos dirigirmos para a comunhão a que Deus nos chama sem cessar.

O nosso compromisso em prol de um testemunho comum

Enquanto superamos os episódios da nossa história que gravam sobre nós, comprometemo-nos a testemunhar juntos a graça misericordiosa de Deus, que se tornou visível em Cristo crucificado e ressuscitado. Cientes de que o modo como nos relacionamos entre nós incide sobre o nosso testemunho do Evangelho, comprometemo-nos a crescer ainda mais na comunhão radicada no Batismo, procurando remover os obstáculos ainda existentes que nos impedem de alcançar a unidade plena. Cristo quer que sejamos um só, para que o mundo possa acreditar (cf. Jo 17, 21).

Muitos membros das nossas comunidades anseiam por receber a Eucaristia a uma única Mesa como expressão concreta da unidade plena. Temos experiência da dor de quantos partilham toda a sua vida, mas não podem partilhar a presença redentora de Deus na Mesa Eucarística. Reconhecemos a nossa responsabilidade pastoral comum de dar resposta à sede e fome espirituais que o nosso povo tem de ser um só em Cristo. Desejamos ardentemente que esta ferida no Corpo de Cristo seja curada. Este é o objetivo dos nossos esforços ecuménicos, que desejamos levar por diante inclusive renovando o nosso empenho no diálogo teológico.

Rezamos a Deus para que católicos e luteranos saibam testemunhar juntos o Evangelho de Jesus Cristo, convidando a humanidade a ouvir e receber a boa notícia da ação redentora de Deus. Pedimos a Deus inspiração, ânimo e força para podermos continuar juntos no serviço, defendendo a dignidade e os direitos humanos, especialmente dos pobres, trabalhando pela justiça e rejeitando todas as formas de violência. Deus chama-nos a estar perto de todos aqueles que anseiam por dignidade, justiça, paz e reconciliação. Hoje, de modo particular, levantamos as nossas vozes para pedir o fim da violência e do extremismo que ferem tantos países e comunidades, e inumeráveis irmãos e irmãs em Cristo. Exortamos luteranos e católicos a trabalharem juntos para acolher quem é estrangeiro, prestar auxílio a quantos são forçados a fugir por causa da guerra e da perseguição, e defender os direitos dos refugiados e de quantos procuram asilo.

Hoje mais do que nunca, damo-nos conta de que o nosso serviço comum no mundo deve estender-se à criação inteira, que sofre a exploração e os efeitos duma ganância insaciável. Reconhecemos o direito que têm as gerações futuras de gozar do mundo, obra de Deus, em todo o seu potencial e beleza. Rezamos por uma mudança dos corações e das mentes que leve a um cuidado amoroso e responsável da criação.

Um só em Cristo

Nesta auspiciosa ocasião, expressamos a nossa gratidão aos irmãos e irmãs das várias Comunhões e Associações cristãs mundiais que estão presentes e unidos conosco em oração. Ao renovar o nosso compromisso de passar do conflito à comunhão, fazemo-lo como membros do único Corpo de Cristo, no qual estamos incorporados pelo Batismo. Convidamos os nossos companheiros de estrada no caminho ecumênico a lembrar-nos dos nossos compromissos e a encorajar-nos. Pedimos-lhes que continuem a rezar por nós, caminhar conosco, apoiar-nos na observância dos compromissos de religião que hoje manifestamos.

Apelo aos católicos e luteranos do mundo inteiro


Apelamos a todas as paróquias e comunidades luteranas e católicas para que sejam corajosas e criativas, alegres e cheias de esperança no seu compromisso de prosseguir na grande aventura que nos espera. Mais do que os conflitos do passado, há de ser o dom divino da unidade entre nós a guiar a colaboração e a aprofundar a nossa solidariedade. Estreitando-nos a Cristo na fé, rezando juntos, ouvindo-nos mutuamente, vivendo o amor de Cristo nas nossas relações, nós, católicos e luteranos, abrimo-nos ao poder de Deus Uno e Trino. Radicados em Cristo e testemunhando-O, renovamos a nossa determinação de ser fiéis arautos do amor infinito de Deus por toda a humanidade.