quarta-feira, 22 de junho de 2016

A maioria dos sacramentos matrimoniais é nulo. Será mesmo?

Esses dias tivemos mais um capítulo das pequenas frases do Papa Francisco que ficam no ar sem explicação. Antes que alguém me acuse de qualquer coisa que seja, já que uma afirmação dessa gera ataque de gente tradicionalista e de gente que defende o Papa como já canonizado na Terra, então vou explicar. É muito óbvio que o Papa Francisco, sendo latino-americano, não tem muita preocupação com estabelecer conceitos antes de iniciar um debate, discussão ou mesmo conversação sobre seja lá o tema que for. Muito diferente de Bento XVI que é alemão e tem isso como premissa. Nós, por aqui nessa América Latina, falamos e discutimos assuntos sem sequer termos noção do que o outro fala. Nós somos assim! O Papa Francisco não deixou de ser emocional e latino-americano só porque se tornou Papa. Os documentos dele são a maior prova de que parece que está escrevendo para esse povo do hemisfério baixo e não para o mundo inteiro. Não se trata, portanto, de uma crítica, é uma constatação.

Passado esse momento de desculpas antecipadas, vamos ao que interessa: o
Papa Francisco disse em rápidas palavras, que a maioria dos casamentos são nulos. A questão agora é entender o que é que ele disse e por que. Vamos tentar iniciar o assunto porque ele é grande.

Vou dizer desde já que concordo com o Papa e vou tentar explicitar o porque.

Primeiramente é bom saber os motivos pelos quais um sacramento matrimonial pode ser declarado nulo e saber também que nunca poderá ser anulado. Anular é fazer perder a validade algo que aconteceu ou existiu. Declarar nulo é declarar que algo nunca existiu, embora as aparências digam o contrário. Passada essa rápida explicação, vamos ao motivo principal pelo qual entendo que boa parte dos casamentos são nulos e parece que estou bem acompanhado pelo Papa Francisco.

Um dos motivos pelos quais um sacramento matrimonial pode ser declarado nulo é o vício de consentimento que se encontra no cânon 1.099 e que pode ser conceituado mais ou menos como: erro determinante acerca da unidade, da indissolubilidade ou da dignidade sacramental do matrimônio (error determinans).

Vejamos o que o cânon 1.099 nos diz:

Cân. 1099 — O erro sobre a unidade, a indissolubilidade ou a dignidade sacramental do matrimônio, contanto que não determine a vontade, não vicia o consentimento matrimonial.

Não vou aqui me ater a conceituar unidade, indissolubilidade e dignidade sacramental. Tais conceitos são fáceis de ser encontrados e só faria com que esse texto ficasse extenso demais sem necessidade. Vamos direito ao que interesse que é esse entre-vírgulas “contanto que não determine a vontade”. Essa pequena frase no meio do cânon faz um adendo importante, ou seja, esses erros não viciam o consentimento matrimonial exceto se determinarem a vontade.

Determinar a vontade não é difícil de entender. Significa basicamente que a decisão poderia ser outra caso a pessoa entendesse realmente o que quer dizer essa unidade, indissolubilidade e dignidade sacramental.

Veja bem que não estou dizendo que todo casamento precisa acontecer em um grau máximo de santidade ou de conhecimento da fé. Não quero dizer que o casamento só é válido para quem tem total entendimento, tal qual se espera de um teólogo ou um profundo estudioso do tema. Não é nada disso, uma vez que dizer algo nesses termos seria afirmar que o sacramento matrimonial seria algo para alguns iluminados. Uma elite que teve acesso a esses conhecimentos. Isso seria quase afirmar que o casamento válido é gnose. Não deturpe o argumento com esse tipo de ligação.

O que eu entendo é justamente que a indissolubilidade e principalmente a dignidade sacramental determinam a vontade e por esse motivo a maioria é inválido. Não significa que no decurso da união ela não possa ser validada por mudança no sentir, pensar, agir e entender (cânon 1159 §1°), mas que no momento do sacramento a maioria não entende o "sim" e suas consequências e se entendesse possivelmente não se casariam, isso é inegável e pode ser verificado especialmente quando se entrevista alguém disposto a propor a ação de declaração de nulidade. A verdade é que as pessoas não tem a mínima noção do que vem a ser indissolubilidade e abertura à vida (filhos). Acredito que se tivessem esse entendimento, mesmo que raso dos conceitos e das consequências, pensariam muito mais sobre casar ou não.

Existem os que argumentam que as pessoas casam levianamente, mas casam ainda assim e que para não ter "a mínima noção" do que significa o Matrimônio (a ponto de viciar a vontade) a pessoa precisaria ser deficiente mental, ou viver nalguma tribo apartada da civilização, ou coisa assim. Que aqui no Ocidente todo mundo sabe o que é uma família e o que são filhos em grau suficiente para conseguir casar.

A questão é que não compreendo assim  e parece que muita gente também
não. O vício no consentimento acontece justamente no ponto em que as pessoas não conseguem captar o conceito e as consequências no âmbito espiritual de toda a coisa. Pra eles é mais uma lei como outra qualquer. Ir contra a indissolubilidade, por exemplo, pra muitos, é como atravessar a rua fora da faixa. É um erro, mas sem maiores consequências se você tiver cuidado e olhar para os dois lados antes.

Quando se pede alguma compreensão espiritual, não quer dizer que estamos querendo compreensões refinadas a respeito do vínculo matrimonial como condição para o casamento. Isso, como já dissemos, seria colocar o sacramento para além do alcance dos homens normais, com a consequente transformação da Igreja em uma seita esotérica a cujos sacramentos só os elevados têm acesso, ou seja, uma gnose perfeita.

Tudo se trata de que as pessoas não conseguem captar o conceito e as consequências no âmbito espiritual. Não exijo, já que a Igreja não exige, uma compreensão refinada, apenas uma compreensão mínima de que pelo menos existe algo de sobrenatural no sacramento recebido. Aliás, só de saberem o que é um sacramento já estava bom. Não sabem! Não sabem o que a Igreja pretende que saibam. É isso que o Papa Francisco expressou e não é a primeira vez que um Papa se expressa nesse assunto com esse tipo de opinião. As pessoas tem um conceito histórico de família, indissolubilidade, casamento, sacramento? Pode ser. Um conceito sociológico, também pode ser. Mas não entendem sacramentalmente o sacramento que recebem. Acaba por ser uma aparência de sacramento quando o recebem. É como o pagão que comunga. Cristo está ali, mas não para ele que não recebeu o sacramento de iniciação para a recepção daquele sacramento.

Alguém poderia, ainda, argumentar que católicos-não-praticantes poderiam não saber de todas essas coisas e mesmo assim ser válido. O católico chamado não-praticante simplesmente não pode entender nada disso pelo simples fato de que não é católico, porque não existe católico-não-praticante.

Mais uma vez repito: não se trata de um grupo elitista de iluminados, se trata de casar sabendo o que é um sacramento e suas consequências minimamente e não casar para tirar foto e dar satisfação à sociedade.


Enfim, não estou propondo nulidades a rodo e nem o Papa Francisco o faria, até porque entendo que boa parte delas são convalidadas no âmbito do matrimônio (cânon 1159 §1°). A questão é sensível e é bom que se entenda que em um processo de declaração de nulidade matrimonial cada caso é visto separadamente e não em bloco. A análise é individual, caso a caso. Por isso é questão meramente opinativa até entre os Papas, lembrando que São João Paulo II já tinha opinião diferente do Papa Francisco. Aí sim, em questões opinativas estamos livres para analisar e podemos constatar que temos algumas pessoas superiores no entendimento a outras por questões de vida e experiência, ou seja, por questões meramente humanas e que isso pode mudar todo um julgamento.