segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

ENCÍCLICA HUMANUM GENUS DO PAPA LEÃO XIII SOBRE A MAÇONARIA


ENCÍCLICA
HUMANUM GENUSDO PAPA LEÃO XIII
 SOBRE A MAÇONARIA


Aos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, e
Bispos do Mundo Católico em Graça e Comunhão com a Sé Apostólica
.
1. O Gênero Humano, após sua miserável queda de Deus, o Criador e Doador dos dons celestes, "pela inveja do demônio," separou-se em duas partes diferentes e opostas, das quais uma resolutamente luta pela verdade e virtude, e a outra por aquelas coisas que são contrárias à virtude e à verdade. Uma é o reino de Deus na terra, especificamente, a verdadeira Igreja de Jesus Cristo; e aqueles que desejam em seus corações estar unidos a ela, de modo a receber a salvação, devem necessariamente servir a Deus e Seu único Filho com toda a sua mente e com um desejo completo. A outra é o reino de Satanás, em cuja possessão e controle estão todos e quaisquer que sigam o exemplo fatal de seu líder e de nossos primeiros pais, aqueles que se recusam a obedecer à lei divina e eterna, e que têm muitos objetivos próprios em desprezo a Deus, e também muitos objetivos contra Deus.
2. Este reino dividido Sto. Agostinho penetrantemente discerniu e descreveu ao modo de duas cidades, contrárias em suas leis porque lutando por objetivos contrários; e com sutil brevidade ele expressou a causa eficiente de cada uma nessas palavras: "Dois amores formaram duas cidades: o amor de si mesmo, atingindo até o desprezo de Deus, uma cidade terrena; e o amor de Deus, atingindo até o desprezo de si mesmo, uma cidade celestial."[1] Em cada período do tempo uma tem estado em conflito com a outra, com uma variedade e multiplicidade de armas e de batalhas, embora nem sempre com igual ardor e assalto. Nesta época, entretanto, os partisans (guerrilheiros) do mal parecem estar se reunindo, e estar combatendo com veemência unida, liderados ou auxiliados por aquela sociedade fortemente organizada e difundida chamada os Maçons. Não mais fazendo qualquer segredo de seus propósitos, eles estão agora abruptamente levantando-se contra o próprio Deus. Eles estão planejando a destruição da santa Igreja publicamente e abertamente, e isso com o propósito estabelecido de despojar completamente as nações da Cristandade, se isso fosse possível, das bênçãos obtidas para nós através de Jesus Cristo nosso Salvador. Lamentando estes males, Nós somos constrangidos pela caridade que urge Nosso coração a clamar freqüentemente a Deus: "Ó Deus, eis que Teus inimigos se agitam; e os que Te odeiam levantaram as suas cabeças. Eles tramam um plano contra Teu povo, e conspiram contra Teus santos. Eles disseram: 'vinde, destruamo-nos, de modo que eles não sejam uma nação'."[2]
3. Em uma crise tão urgente, quando tão feroz e tão forte assalto é feito sobre o nome Cristão, é Nosso ofício apontar o perigo, marcar quem são os adversários, e no máximo de Nosso poder fazer uma barreira contra seus planos e procedimentos, para que não pereçam aqueles cuja salvação está confiada a Nós, e para que o reino de Jesus Cristo confiado a Nosso encargo possa não só permanecer de pé e inteiro, mas possa ser alargado por um crescimento cada vez maior através do mundo.
4. Os Pontífices Romanos nossos predecessores, em sua incessante vigilância pela segurança do povo Cristão, foram rápidos em detectar a presença e o propósito desse inimigo capital tão logo ele saltou para a luz ao invés de esconder-se como uma tenebrosa conspiração; e, além disso, eles aproveitaram e tomaram providências, pois a eles isso competia, e não permitiram a si mesmos serem tomados pelos estratagemas e armadilhas armadas para enganá-los.
5. A primeira advertência do perigo foi dada por Clemente XII no ano de 1738[3], e sua constituição foi confirmada e renovada por Bento XIV[4]. Pio VII seguiu o mesmo caminho[5]; e Leão XII, por sua constituição apostólica, Quo Graviora[6], juntou os atos e decretos dos Pontífices anteriores sobre o assunto, e os ratificou e confirmou para sempre. No mesmo sentido pronunciou-se Pio VIII[7], Gregório XVI[8], e, muitas vezes, Pio IX[9].
6. Tão logo a constituição e o espírito da seita maçônica foram claramente descobertos por manifestos sinais de suas ações, pela investigação de suas causas, pela publicação de suas leis, e de seus ritos e comentários, com a freqüente adição do testemunho pessoal daqueles que estiveram no segredo, esta sé apostólica denunciou a seita dos Maçons, e publicamente declarou sua constituição, como contrária à lei e ao direito, perniciosa tanto à Cristandade como ao Estado; e proibiu qualquer um de entrar na sociedade, sob as penas que a Igreja costuma infligir sobre as pessoas excepcionalmente culpadas. Os sectários, indignados por isto, pensando em eludir ou diminuir a força destes decretos, parcialmente por desprezo, e parcialmente por calúnia, acusaram os soberanos Pontífices que os passaram ou de exceder os limites da moderação em seus decretos ou de decretar o que não era justo. Este foi o modo pelo qual eles esforçaram-se para eludir a autoridade e o peso das constituições apostólicas de Clemente XII e Bento XIV, e também de Pio VII e Pio IX[10]. Entretanto, na própria sociedade, encontraram-se homens que relutantemente concordaram que os Pontífices Romanos tinham agido dentro de seu direito, de acordo com a doutrina e disciplina Católicas. Os Pontífices receberam a mesma concordância, em termos fortes, de muitos príncipes e chefes de governo, que tomaram como um dever ou delatar a sociedade maçônica à sé apostólica, ou por seu próprio acordo por leis específicas declará-la perniciosa, como, por exemplo, na Holanda, Áustria, Suíça, Espanha, Bavária, Savóia, e outras partes da Itália.
7. Mas, o que é da maior importância, o curso dos eventos demonstrou a prudência dos Nossos predecessores. Pois a sua providente e paternal solicitude não conseguiu sempre e em todo lugar o resultado desejado; e isto, ou por causa do fingimento e astúcia de alguns que eram agentes ativos na maldade, ou então da irrefletida leviandade do resto que deveria, em seu próprio interesse, ter dado ao assunto sua diligente atenção. Em conseqüência, a seita dos Maçons cresceu com uma velocidade inconcebível no curso de um século e meio, até que se tornou capaz, através de fraude ou audácia, de obter tal acesso em cada nível do Estado de modo a parecer quase a sua força governante. Este veloz e formidável avanço trouxe sobre a Igreja, sobre o poder dos príncipes, sobre o bem estar público, precisamente aquele grave dano que Nossos predecessores tinham previsto muito antes. Tal condição foi atingida que de agora de diante haverá grave razão para temer, não realmente pela Igreja - porque sua fundação é firme demais para ser derrubada pelos esforços dos homens - mas por aqueles Estados em que prevalece o poder, ou da seita da qual estamos falando ou de outras seitas não diferentes que curvam-se a ela como discípulas e subordinadas.
8. Por estas razões Nós, tão logo chegamos ao timão da Igreja, claramente vimos e sentimos ser Nosso dever usar Nossa autoridade em sua máxima extensão contra um mal tão vasto. Nós já por muitas vezes, conforme as ocasiões surgiram, atacamos alguns pontos principais dos ensinamentos que demonstraram de uma maneira especial a perversa influência das opiniões Maçônicas. Assim, em nossa carta encíclica, Quod Apostolici Muneris, Nós Nos esforçamos por refutar as monstruosas doutrinas dos socialistas e comunistas; depois, em outra começando com "Arcanum", Nós penosamente defendemos e explicamos a verdadeira e genuína idéia da vida doméstica, da qual o matrimônio é o ponto de partida e a origem; e novamente, naquela que começa com "Diuturnum"[11], Nós descrevemos a idéia de governo político conforme os princípios da sabedoria Cristã, que é maravilhosa em harmonia, por um lado, com a ordem natural das coisas, e, por outro lado, com o bem-estar tanto dos príncipes soberanos quanto das nações. É agora Nossa intenção, seguindo o exemplo de Nossos predecessores, tratar diretamente a própria sociedade maçônica, todo o seu ensinamento, seus objetivos, e a sua maneira de pensar e agir, de modo a trazer mais e mais à luz seu poder para o mal, e fazer o que Nós pudermos para deter o contágio desta peste fatal.
9. Há vários corpos organizados os quais, embora diferindo em nome, em cerimonial, em forma e origem, são contudo tão unidos por comunhão de propósito e pela similaridade de suas principais opiniões, de modo a formar de fato uma só coisa com a seita dos Maçons, a qual é um tipo de centro ao qual todos eles se dirigem, e do qual todos eles retornam. Agora, estes não mais mostram um desejo de permanecer escondidos; pois eles realizam seus encontros à luz do dia e à vista do povo, e publicam seus próprios jornais; e contudo, quando completamente compreendidos, descobre-se que eles ainda retêm a natureza e os hábitos de sociedades secretas. Há muitas coisas como mistérios que é regra fixa esconder com extremo cuidado, não somente de estranhos, mas de muitos e muitos membros, também; tais como seus desígnios secretos e últimos, os nomes de seus maiores líderes, e certos segredos e encontros privados, assim como suas decisões, e os caminhos e meios de executá-las. Este é, sem dúvida, o objetivo das múltiplas diferenças entre os membros quanto a direito, cargo e privilégio, das distinções recebidas de ordens e graus, e da severa disciplina que é mantida.
Os candidatos são geralmente ordenados a prometer - e mais, com um especial juramento, a jurar - que eles não irão nunca, a nenhuma pessoa, em qualquer tempo ou de qualquer modo, dar a conhecer os membros, as senhas, ou os assuntos discutidos. Assim, com uma aparência externa fraudulenta, e com um estilo de fingimento que é sempre o mesmo, os Maçons, como os Maniqueístas de antigamente, esforçam-se, tanto quanto possível, para encobrir a si mesmos, e para não admitir testemunhas exceto seus próprios membros. Como uma maneira conveniente de disfarce, eles assumem o caráter de homens de letras e acadêmicos associados com o objetivo de aprender. Eles falam de seu zelo por um maior refinamento cultural, e de seu amor pelos pobres; e eles declaram que seu único desejo é a melhoria da condição das massas, e o compartilhamento com o maior número possível de pessoas de todos os benefícios da vida civil. Mesmo que estes propósitos fossem visados verdadeiramente, eles não são de modo algum o todo de seu objetivo. Ainda mais, para ser alistado, é necessário que os candidatos prometam e assumam ser daí em diante estritamente obedientes aos seus líderes e mestres com a mais completa submissão e fidelidade, e estar de prontidão para cumprir suas ordens à mais leve expressão de seu desejo; ou, se desobedientes, submeter-se aos mais penosos castigos e à própria morte. De fato, se algum é julgado ter traído as obras da seita ou ter resistido à ordens dadas, a punição é infligida neles não infreqüentemente, e com tanta audácia e destreza que o assassino muito freqüentemente escapa à detecção e punição de seu crime.
10. Mas fingir e desejar permanecer escondido; atar homens como escravos com as mais fortes correntes, e sem dar qualquer razão suficiente; usar homens escravizados aos desejos de outro para qualquer ato arbitrário; armar as mãos direitas de homens para o massacre após assegurar a impunidade pelo crime - tudo isso é uma enormidade diante qual a natureza recua. Por este motivo, a razão e a própria verdade tornam claro que a sociedade da qual nós estamos falando está em antagonismo com a justiça e a retidão natural. E isto se torna ainda mais claro, uma vez que outros argumentos, também, e muito evidentes, provam que ela é essencialmente oposta à virtude natural. Pois, não importando quão grande possa ser a inteligência do homem em disfarçar e a sua experiência em mentir, é impossível evitar os efeitos de qualquer causa de mostrarem, de algum modo, a natureza intrínseca da causa da qual eles vêm. "Uma boa árvore não pode produzir mau fruto, nem uma árvore ruim produzir bom fruto."[12] Agora, a seita maçônica produz frutos que são perniciosos e do mais amargo sabor. Pois, daquilo que Nós acima mostramos da maneira mais clara, aquele que é o seu propósito último força-a a se tornar visível - especificamente, a completa derrubada de toda a ordem religiosa e política do mundo que o ensinamento Cristão produziu, e a substituição por um novo estado de coisas de acordo com as suas idéias, das quais as fundações e leis devem ser obtidas do mero naturalismo.
11. O que Nós dissemos, e estamos para dizer, deve ser entendido com respeito à seita dos Maçons tomada genericamente, e tanto quanto ela compreende as associações aparentadas a ela e confederadas com ela, mas não dos seus membros individuais. Pode haver pessoas entre eles, e não poucos que, embora não livres da culpa de terem se enleado em tais associações, ainda assim não são eles mesmos parceiros em seus atos criminosos nem conscientes do objetivo último que eles estão se esforçando por alcançar. Do mesmo modo, algumas das sociedades afiliadas, talvez, de modo algum aprovem as conclusões extremas que eles iriam, se consistentes, abraçar como conseqüências necessárias de seus princípios comuns, se a sua própria maldade não os enchesse de horror. Alguns deles, novamente, são levados pelas circunstâncias dos tempos e lugares ou a visar coisas menores do que os outros normalmente tentam ou do que eles mesmos desejariam tentar. Eles não devem, entretanto, por esta razão, ser considerados como estranhos à federação maçônica; porque a federação maçônica deve ser julgada não tanto pelas coisas que ela tem feito, ou concluído, quanto pela soma de suas opiniões pronunciadas.
12. Agora, a doutrina fundamental dos naturalistas, que eles tornam suficientemente conhecida em seu próprio nome, é que a natureza humana e a razão humana deveria em todas as coisas ser senhora e guia. Eles ligam muito pouco para os deveres para com Deus, ou os pervertem por opiniões errôneas e vagas. Pois eles negam que qualquer coisa tenha sido ensinada por Deus; eles não permitem qualquer dogma de religião ou verdade que não possa ser entendida pela inteligência humana, nem qualquer mestre que deva ser acreditado por causa de sua autoridade. E desde que é o dever especial e exclusivo da Igreja Católica estabelecer completamente em palavras as verdades divinamente recebidas, ensinar, além de outros auxílios divinos à salvação, a autoridade de seu ofício, e defender a mesma com perfeita pureza, é contra a Igreja que o ódio e o ataque dos inimigos é principalmente dirigido.
13. Nos assuntos a respeito de religião que se veja como a seita dos Maçons age, especialmente aonde ela é mais livre para agir sem barreiras, e então que qualquer um julgue se realmente ela não deseja executar a política dos naturalistas. Por um longo e perseverante labor, eles esforçam-se para alcançar este resultado - especificamente, que o ofício de ensinar e a autoridade da Igreja tornem-se sem valor no Estado civil; e por esta mesma razão eles declaram ao povo e argumentam que a Igreja e o Estado devem ser completamente desunidos. Por este meio eles rejeitam das leis e da nação a saudável influência da religião Católica; e eles conseqüentemente imaginam que os Estados devem ser constituídos sem qualquer consideração pelas leis e preceitos da Igreja.
14. Nem eles pensam ser suficiente desconsiderar a Igreja - a melhor das guias - mas eles também a ferem por sua hostilidade. Realmente, para eles está dentro da lei atacar com impunidade as próprias fundações da religião Católica, em palavra, em escritos e em ensinamentos; e até os direitos da Igreja não são poupados, e os ofícios com os quais ela é divinamente investida não estão seguros. A mínima liberdade possível para administrar os assuntos é deixada à Igreja; e isto é feito por leis aparentemente não muito hostis, mas na realidade armadas e ajustadas para dificultar a liberdade de ação. Ainda mais, Nós vemos leis excepcionais e opressivas impostas sobre o clero, a fim de que eles possam ser continuamente diminuídos em número e meios necessários. Nós também vemos os remanescentes das possessões da Igreja restringidos pelas mais estritas condições, a sujeitados ao poder e ao desejo arbitrário dos administradores do Estado, e as ordens religiosas reviradas e espalhadas.
15. Mas contra a sé apostólica e o Pontífice Romano a contenda destes inimigos tem sido por um longo tempo dirigida. O Pontífice foi primeiro, por razões sem substância, atirado para fora da proteção de sua liberdade e de seu direito, o principado civil; logo, ele foi injustamente forçado em uma condição que era insuportável por causa das dificuldades levantadas de todos os lados; e agora o tempo chegou em que os partisans (guerrilheiros) da seita abertamente declaram, o que em segredo entre eles mesmos eles têm por um longo tempo planejado, que o poder sagrado dos Pontífices deve ser abolido, e que o próprio papado, fundado por direito divino, deve ser totalmente destruído. Se outras provas fossem desejadas, este fato seria suficientemente revelado pelo testemunho de homens informados, dos quais alguns em outros tempos, e outros recentemente, declararam ser verdadeiro a respeito dos Maçons que eles desejam especialmente atacar violentamente a igreja com irreconciliável hostilidade, e que eles nunca descansarão até que eles tenham destruído o que quer que os supremos Pontífices tenham estabelecido como religião.
16. Se aqueles que são admitidos como membros não são ordenados a abjurar por quaisquer palavras as doutrinas Católicas, esta omissão, muito longe de ser adversa aos desígnios dos Maçons é mais útil para os seus propósitos. Primeiro, deste modo eles facilmente enganam os ingênuos e os incautos, e podem induzir um número muito maior a se tornarem membros. Novamente, como todos que se oferecem são recebidos qualquer que possa ser sua forma de religião, eles deste modo ensinam o grande erro desta época - que uma consideração por religião deveria ser tida como assunto indiferente, e que todas as religiões são semelhantes. Este modo de raciocinar é calculado para trazer a ruína de todas as formas de religião, e especialmente da religião Católica, que, como é a única que é verdadeira, não pode, sem grande injustiça, ser considerada como meramente igual às outras religiões.
17. Mas os naturalistas vão muito mais longe; pois, tendo, nas mais altas coisas, entrado em um curso completamente errôneo, eles são levados impetuosamente a extremos, ou por causa da fraqueza da natureza humana, ou porque Deus inflige sobre eles a justa punição do seu orgulho. Assim acontece que eles não mais consideram como certas e permanentes aquelas coisas que são totalmente entendidas pela luz natural da razão, tais como certamente são - a existência de Deus, a natureza imaterial da alma humana, e sua imortalidade. A seita dos Maçons, por uma similar trilha de erro, é exposta a estes mesmos perigos; pois, embora de um modo geral eles possam professar a existência de Deus, eles mesmos são testemunhas que eles não mantém todos esta verdade com total concordância da mente e com uma firme convicção. Nem eles escondem que esta questão sobre Deus é a maior fonte e causa de discórdias entre eles; de fato, é certo que uma discussão considerável sobre este mesmo assunto existiu entre eles muito recentemente. Mas, realmente, a seita permite grande liberdade aos seus membros juramentados por voto, de modo que para cada lado é dado o direito de defender a sua própria opinião, ou de que há um Deus, ou de que não há nenhum; e aqueles que obstinadamente argumentam que não há nenhum Deus são tão facilmente iniciados como aqueles que argumentam que Deus existe, embora, como os panteístas, eles tenham falsas noções acerca dEle: tudo que não é nada mais do que retirar a realidade, retendo algumas absurdas representações da natureza divina.
18. Quando esta maior e fundamental verdade foi derrubada ou enfraquecida, segue que aquelas verdades, também, que são conhecidas pelo ensinamento da natureza devem começar a cair - especificamente, que todas as coisas foram feitas pelo livre desejo de Deus o Criador; que o mundo é governado pela Providência; que as almas não morrem; que a esta vida dos homens sobre a terra sucederá outra em uma vida eterna.
19. Quando estas verdades foram eliminadas, as quais são os princípios da natureza e importantes para o conhecimento e para o uso prático, é fácil de ver o que irá ser da moralidade pública e privada. Nós não dizemos nada daquelas virtudes mais celestiais, as quais ninguém pode exercer ou mesmo adquirir sem um especial dom e graça de Deus; das quais necessariamente nenhum traço pode ser encontrado naqueles que rejeitam como desconhecida a redenção da humanidade, a graça de Deus, os sacramentos, e a felicidade a ser obtida no céu. Nós falamos agora dos deveres que têm a sua origem na retidão natural. Que Deus é o Criador do mundo e seu providente Governador; que a lei eterna exige que a ordem natural seja mantida, e proíbe que ela seja perturbada; que o fim último do homem é um destino muito acima das coisas humanas e além desta parada sobre a terra: estas são as fontes e estes são os princípios de toda justiça e moralidade.
Se eles forem removidos, como os naturalistas e Maçons desejam, imediatamente não haverá nenhum conhecimento quanto ao que constitui justiça e injustiça, ou sobre qual princípio a moralidade é fundada. E, em verdade, o ensinamento de moralidade que exclusivamente encontra o favor da seita dos Maçons, e em que eles argumentam que os jovens deveriam ser instruídos, é o que eles chamam "civil", e "independente", e "livre", especificamente, aquele que não contém qualquer crença religiosa. Mas, quão insuficiente tal ensinamento é, quanto deixa a desejar em firmeza, e quão facilmente movido por cada impulso da paixão, é suficientemente provado por seus tristes frutos, que já começaram a aparecer. Pois, aonde quer que, removendo a educação Cristã, este ensinamento começou a reinar mais completamente, aí a bondade e integridade da moral começou rapidamente a perecer, monstruosas e vergonhosas opiniões têm crescido, e a audácia dos atos malignos tem se elevado a um alto grau. Tudo isso é comumente lamentado e deplorado; e não poucos daqueles que de modo algum desejam fazê-lo são compelidos pela abundância de provas a dar não infreqüentemente o mesmo testemunho.
20. Ainda mais, a natureza humana foi manchada pelo pecado original, e é portanto mais disposta ao vício do que à virtude. Pois uma vida virtuosa é absolutamente necessária para restringir os movimentos desordenados da alma, e para fazer as paixões obedientes à razão. Neste conflito as coisas humanas devem freqüentemente ser desprezadas, e os maiores trabalhos e durezas devem ser executados, de modo que a razão possa sempre manter o seu domínio. Mas os naturalistas e Maçons, não tendo fé naquelas coisas que nós aprendemos pela revelação de Deus, negam que nossos primeiros pais tenham pecado, e conseqüentemente pensam que o livre desejo não é de modo algum enfraquecido e inclinado ao mal[13]. Pelo contrário, exagerando bastante o poder e a excelência da natureza, e colocando somente ali o princípio e regra da justiça, eles não podem nem mesmo imaginar que haja qualquer necessidade de uma constante luta e uma perfeita firmeza para dominar a violência e governo de nossas paixões.
Por isso nós vemos que homens são publicamente tentados pelos muitos encantamentos do prazer; que há jornais e panfletos sem moderação nem vergonha; que peças de teatro são notáveis pela licenciosidade; que desenhos para obras de arte são de uma maneira desavergonhada buscados nas leis de um assim chamado realismo; que os planos de uma vida fácil e delicada são cuidadosamente elaborados; que todas as seduções do prazer são diligentemente buscadas pelas quais a virtude possa ser ninada até adormecer. Depravadamente, também, mas ao mesmo tempo de um modo bastante consistente, fazem aqueles atos que eliminam a expectativa das alegrias do céu, e trazem para baixo toda a felicidade para o nível da mortalidade, e, de fato, a afundam na terra. Do que Nós dissemos o seguinte fato, estarrecedor não tanto por si mesmo quanto em sua aberta expressão, pode servir como confirmação. Pois, uma vez que geralmente ninguém está acostumado a obedecer homens hábeis e inteligentes tão submissamente como aqueles cuja alma está enfraquecida e quebrada pelo domínio das paixões, tem havido na seita dos Maçons alguns que têm simplesmente determinado e proposto que, engenhosamente e de propósito estabelecido, a multidão deveria ser saciada com uma licença sem limite para o vício, pois, quando isso tivesse sido feito, ela iria facilmente cair sob o seu poder e autoridade para quaisquer atos de audácia.
21. Quanto ao que se refere à vida doméstica nos ensinamentos dos naturalistas é quase tudo contido nas seguintes declarações: que o casamento pertence ao gênero dos contratos humanos, que pode ser legalmente revogado pelo desejo daqueles que o fizeram, que os governadores civis do Estado têm poder sobre o laço matrimonial; que na educação dos jovens nada deve ser ensinado em matéria de religião como opinião certa e fixada; e cada um deve ser deixado livre para seguir, quando chegar à idade, qualquer que ele preferir. Os Maçons concordam completamente com estas coisas; e não somente concordam, mas têm longamente esforçado-se para transformá-las em lei e instituição. Pois em muitos países, e aqueles nominalmente Católicos, é estabelecido que nenhum casamento deve ser considerado legal a não ser aqueles contraídos pelo rito civil; em outros lugares a lei permite o divórcio; e em outros todos os esforços são feitos para torná-lo legal tão logo quanto possível. Portanto, o tempo está rapidamente se aproximando em que os casamentos vão ser tornados em outro tipo de contrato - ou seja em uniões mutáveis e incertas que um capricho pode unir, e que do mesmo modo quando se modificar pode desunir.
Com a maior unanimidade a seita dos Maçons também esforça-se para tomar a si mesma a educação da juventude. Eles pensam que eles podem facilmente moldar às suas opiniões aquela idade macia e maleável, e torcê-la no que quer que eles desejem; e que nada pode ser mais adequado do que isto para permitir a eles levar a juventude do Estado a seguir seu próprio plano. Portanto, na educação e instrução de crianças eles não permitem qualquer participação, quer no ensinamento ou na disciplina, aos ministros da Igreja; e em muitos lugares eles têm procurado obter que a educação dos jovens esteja exclusivamente nas mãos de leigos, e que nada que trate dos mais importantes e mais sagrados deveres dos homens para com Deus deva ser introduzido na instrução sobre moral.
22. E ainda há as suas doutrinas sobre política, em que os naturalistas decretam que todos os homens tem o mesmo direito, e são em todos os aspectos da mesma e igual condição; que cada um é naturalmente livre; que nenhum tem o direito de comandar a outrem; que é um ato de violência requerer que homens obedeçam qualquer autoridade outra que aquela que é obtida deles mesmos. De acordo com isto, portanto, todas as coisas pertencem ao povo livre; o poder é exercido pela ordem ou permissão do povo, de modo que, quando o desejo do povo muda, os governantes podem ser legalmente depostos e a fonte de todos os direitos e deveres civis está ou na multidão ou na autoridade governante quando esta é constituída de acordo com as últimas doutrinas. É sustentado também que o Estado deve ser sem Deus; que nas várias formas de religião não há razão pela qual uma devesse ter precedência sobre outra; e que todas elas devem ocupar o mesmo lugar.
23. Que estas doutrinas são igualmente aceitáveis aos Maçons, e que eles desejariam constituir Estados de acordo com este exemplo e modelo, é excessivamente bem conhecido para requerer prova. Por algum tempo eles tem abertamente esforçado-se para tornar isto realidade com toda a sua força e recursos; e deste modo eles preparam o caminho para não poucos homens audaciosos que estão se apressando a fazer até as piores coisas, em seu esforço para obter igualdade e comunhão de todos os bens pela destruição de todas as distinções de título e propriedade.
24. O que, portanto, a seita dos Maçons é, e que trilha ela persegue, aparece suficientemente do sumário que Nós resumidamente demos. Seus dogmas principais estão tão grandemente e manifestamente apartados da razão que nada pode ser mais perverso. Desejar destruir a religião e a Igreja que o próprio Deus estabeleceu, e cuja perpetuidade Ele assegura por Sua proteção, e trazer após um lapso de dezoito séculos as maneiras e costumes dos pagãos, é notável insensatez e audaciosa impiedade. Nem é menos horrível nem mais tolerável que eles repudiem os benefícios que Jesus Cristo tão misericordiosamente obteve, não somente para os indivíduos, mas também para as famílias e a sociedade civil, benefícios os quais, mesmo de acordo com o julgamento e testemunho de inimigos da Cristandade, são muito grandes. Nesta empreitada insana e pervertida nós quase podemos ver o ódio implacável e o espírito de vingança com o qual o próprio Satanás está inflamado contra Jesus Cristo. - Do mesmo modo o estudado esforço dos Maçons para destruir as principais fundações da justiça e honestidade, e para cooperar com aqueles que desejarem, como se fossem meros animais, fazer o que eles quiserem, tende somente para a ignominiosa e desgraçada ruína do gênero humano.
O mal, também, é agravado pelos perigos que ameaçam a sociedade doméstica e civil. Como Nós demonstramos, no matrimônio, de acordo com a crença de quase todas nações, há algo sagrado e religioso; e a lei de Deus determinou que os matrimônios não devam ser dissolvidos. Se eles forem desprovidos do seu caráter sagrado, e feitos dissolúveis, problemas e confusão na família serão o resultado, a esposa sendo despojada de sua dignidade e as crianças deixadas sem proteção quanto aos seus interesses e bem-estar. - Não ter nos assuntos públicos qualquer cuidado pela religião, e nos arranjos e administração dos assuntos civis não ter maior consideração para com Deus do que se Ele não existisse, é uma imprudência desconhecida dos próprios pagãos; pois em seus corações e almas a noção de uma divindade e a necessidade de uma religião pública estavam tão firmemente estabelecidas que eles teriam pensado ser mais fácil ter uma cidade sem fundamentos do que uma cidade sem Deus. A sociedade humana, para a qual nós verdadeiramente por natureza somos formados, foi constituída por Deus, o Autor da natureza; e dEle, como de seu princípio e fonte, fluem em toda a sua força e permanência os incontáveis benefícios com os quais a sociedade abunda. Como todos e cada um de nós somos admoestados pela própria voz da natureza para cultuar a Deus em piedade e santidade, como o Doador da vida e de tudo que é bom nela, do mesmo modo e pela mesma razão, nações e Estados estão obrigado a cultuá-lO; e portanto é claro que aqueles que querem absolver a sociedade de todos os deveres religiosos agem não só injustamente mas também com ignorância e insensatez.
25. Como os homens são pela vontade de Deus nascidos para a união civil e sociedade, e como o poder de governar é um elo de união tão necessário à sociedade que, se ele é retirado, a sociedade necessariamente e imediatamente se desfaz, segue que dEle que é o Autor da sociedade veio também a autoridade de governar; assim quem quer que governe, é ministro de Deus. Portanto, como o fim e a natureza da sociedade humana requerem, é correto obedecer às justas ordens da autoridade legal, como é correto obedecer a Deus que governa todas as coisas; e é extremamente falso que o povo tenha como um poder jogar de lado sua obediência quando quer que lhe agrade.
26. De maneira semelhante, ninguém duvida que todos os homens são iguais uns aos outros, tanto quanto se refere à sua origem e natureza comuns, ou o fim último que cada um deve atingir, ou os direitos e deveres que são daí derivados. Mas, como as habilidades de todos não são iguais, como um difere do outro nos poderes da mente e do corpo, e como há realmente muitas dessemelhanças de maneiras, disposição, e caráter, é extremamente repugnante à razão esforçar-se por confinar todos dentro da mesma medida, e estender completa igualdade às instituições da vida civil. Assim como uma perfeita condição do corpo resulta da conjunção e composição de seus vários membros, os quais, embora diferindo em forma e propósito, fazem, por sua união e distribuição de cada um em seu próprio lugar, uma combinação bela para ser mantida, firme em força, e necessária para o uso; desse modo, na comunidade, há uma quase infinita dessemelhança de homens, como partes do todo. Se eles devem ser todos iguais, e cada um deve seguir seu próprio desejo, o Estado vai aparecer extremamente deformado; mas se, com uma distinção de graus de dignidade, de ocupações e empregos, todos habilmente cooperarem para o bem comum, eles irão apresentar a imagem de um Estado bem constituído e conformado à natureza.
27. Agora, dos perturbantes erros que Nós temos descrito os maiores perigos para os Estados devem ser temidos. Pois, sendo retirados o temor a Deus e a reverência pelas leis divinas, sendo desprezada a autoridade dos governantes, a sedição permitida e aprovada, e as paixões populares exacerbadas até o desprezo pela lei, sem qualquer freio a não ser o castigo, uma mudança e derrubada de todas as coisas necessariamente seguirá. Sim, esta mudança e derrubada é deliberadamente planejada e colocada em curso por várias associações de comunistas e socialistas; e aos seus propósitos a seita dos Maçons não é hostil, mas favorece grandemente seus desígnios, e tem em comum com eles suas principais opiniões. E se estes homens não se esforçam imediatamente e em todo lugar para levar à frente seus pontos de vista extremos, isso não deve ser atribuído ao seu ensinamento e sua vontade, mas à virtude daquela divina religião que não pode ser destruída; e também porque a parte mais sólida dos homens, recusando-se a ser escravizada às sociedades secretas, vigorosamente resiste às suas insanas tentativas.
28. Se todos os homens julgassem a árvore pelo seu fruto, e reconhecessem a semente e origem dos males que nos pressionam, e dos perigos que estão nos ameaçando! Nós temos que lidar com um inimigo enganoso e habilidoso, que, gratificando os ouvidos do povo e dos príncipes, os tem enleado por falas macias e por adulação. Entrando nas boas graças dos governantes sob a alegação de amizade, os Maçons tem se esforçado para fazê-los seus aliados e poderosos auxiliadores para a destruição do nome Cristão; e para que eles possam mais fortemente pressioná-los, eles têm, com determinada calúnia, acusado a Igreja de maliciosamente contender com os governantes em assuntos que afetam a sua autoridade e soberano poder. Tendo, por estes artifícios, assegurado a sua própria segurança e audácia, eles começaram a exercer grande peso no governo dos Estados: mas entretanto estão preparados para sacudir as fundações de impérios, para perturbar os governantes do Estado, para acusá-los, e para expulsá-los, tão freqüentemente quanto eles aparentam governar de modo diferente do que eles próprios poderiam ter desejado. De modo semelhante, eles têm por falsos elogios iludido o povo. Proclamando com uma alta voz a liberdade e prosperidade pública, e dizendo que era por causa da Igreja e dos soberanos que a multidão não era retirada de sua injusta servidão e pobreza, eles se impuseram sobre o povo, e, excitando-os por uma sede por novidades, eles os pressionaram a assaltar tanto a Igreja quanto o poder civil. Entretanto, a expectativa de benefícios que era esperada é muito maior do que a realidade; realmente, as pessoas comuns, mais oprimidas do que elas eram antes, estão privadas em sua miséria daquele consolo que, se as coisas tivessem sido arranjadas de um modo Cristão, eles teriam tido com facilidade e em abundância. Mas, quem quer que lute contra a ordem que a Divina Providência constituiu paga usualmente a penalidade por seu orgulho, e encontra-se com a aflição e a miséria quando eles insensatamente esperavam encontrar todas as coisas prósperas e conforme os seus próprios desejos.
29. A Igreja, se ela dirige os homens a prestar obediência principalmente a acima de tudo a Deus o soberano Senhor, é erradamente e falsamente considerada ou invejosa do poder civil ou de se arrogar algo dos direitos dos soberanos. Pelo contrário, ela ensina que o que é retamente devido ao poder civil deve ser prestado a ele com convicção e consciência de dever. Ensinando que do próprio Deus vem o direito de governar, ela adiciona uma grande dignidade à autoridade civil, e ainda ajuda a obter a obediência e boa intenção dos cidadãos. Amiga da paz e sustentáculo da concórdia, ela abraça a todos com amor maternal, e, intencionando apenas auxiliar o homem mortal, ela ensina que à justiça deve ser ajuntada a clemência, eqüidade à autoridade, e moderação à legislação; que o direito de ninguém pode ser violado; que a ordem e a tranqüilidade pública devem ser mantidas e que a pobreza daqueles que estão em necessidade deve, tanto quanto possível, ser aliviada pela caridade pública e privada. "Mas por esta razão," para usar as palavras de Sto. Agostinho, "os homens pensam, ou gostariam de acreditar, que o ensinamento Cristão não é adequado para o bem do Estado; pois eles desejam que o Estado seja fundado não em sólida virtude, mas na impunidade do vício."[14] Sabendo destas coisas, os príncipes e o povo agiriam com sabedoria política[15], e de acordo com as necessidades da segurança geral, se, ao invés de juntar-se aos Maçons para destruir a Igreja, eles se juntassem à Igreja para repelir os seus ataques.
30. O que quer que o futuro possa ser, neste grave e difundido mal é Nosso dever, veneráveis irmãos, esforçar-nos por encontrar um remédio. E porque Nós sabemos que a Nossa melhor e mais firme esperança de um remédio está no poder daquela divina religião que os Maçons odeiam em proporção ao seu medo dela, Nós pensamos ser de capital importância chamar esse grande poder salvífico em Nosso auxílio contra o inimigo comum. Portanto, tudo que os Pontífices Romanos Nossos predecessores decretaram com o propósito de opor-se aos projetos e esforços da seita maçônica, e tudo que eles tenham legislado quanto à entrada ou saída de homens de sociedades deste tipo, Nós ratificamos e confirmamos completamente pela nossa autoridade apostólica: e confiando grandemente na boa intenção dos Cristãos, Nós rogamos e imploramos a cada um, pela sua salvação eterna, para ser o mais conscienciosamente cuidadoso para não divergir o mínimo que seja daquilo que a sé apostólica tem ordenado neste assunto.
31. Nós rogamos e imploramos a vós, veneráveis irmãos, a juntar os vossos esforços com os Nossos, e esforçadamente lutar pela extirpação desta praga maligna, que está se esgueirando através das veias do corpo da política. Vós deveis defender a glória de Deus e a salvação do vosso próximo; e com o objetivo de vosso combate à vossa frente, nem coragem nem força irão faltar. Será por vossa prudência que julgareis por quais modos vós podeis melhor sobrepujar as dificuldades e obstáculos com os quais vos encontrardes. Mas, como pertence à autoridade de Nosso ofício que Nós mesmos apontemos algumas maneiras apropriadas de procedimento, Nós desejamos que o vosso primeiro ato seja arrancar a máscara da Maçonaria, e deixar que ela seja vista como realmente é; e por sermões e cartas pastorais instruir o povo quanto aos artifícios usado pelas sociedades deste tipo para seduzir os homens e persuadi-los a entrar em suas fileiras, e quanto à perversidade de suas ações e à maldade de seus atos. Como Nossos predecessores por muitas vezes repetiram, que nenhum homem pense que ele possa por qualquer razão que seja ajuntar-se à seita maçônica, se ele dá valor ao seu nome Católico e à sua salvação eterna como ele deveria valorizá-los. Que nenhum seja enganado por uma pretensão de honestidade. Pode parecer a alguns que os Maçons não exigem nada que seja abertamente contrário à religião e à moral; mas, como todo princípio e objetivo da seita está naquilo que é vicioso e criminoso, ajuntar-se com estes homens ou em algum modo ajudá-los não pode ser legítimo.
32. Além disso, por assíduos ensinamentos e exortações, a multidão precisa ser levada a aprender diligentemente os preceitos da religião; para este propósito Nós encarecidamente recomendamos que por oportunos escritos e sermões lhes sejam ensinados os elementos daquelas sagradas verdades nas quais a filosofia Cristã está contida. O resultado disto será que as mentes dos homens serão fortalecidas pela instrução, e serão protegidas contra muitas formas de erro e induções à depravação, especialmente na presente liberdade de escrita sem limites e insaciável desejo de aprender.
33. Grande, realmente, é a obra; mas nela o clero irá compartilhar os vossos trabalhos, se, através de vosso cuidado, eles estiverem à altura disto através do aprendizado e de uma vida bem orientada. Este bom e grande trabalho requer o auxílio também da indústria daqueles entre os leigos em que um amor pela religião e pela pátria existe ao lado da instrução e retidão de vida. Unindo os esforços do clero e dos leigos, batalhai, veneráveis irmãos, para fazer os homens conhecer e amar completamente a Igreja; pois, quanto maior o seu conhecimento e amor pela Igreja, mais eles se desviarão das sociedades clandestinas.
34. Por este motivo, não sem causa Nós usamos esta ocasião para declarar novamente o que nós declaramos em outro lugar, ou seja, que a Ordem Terceira de São Francisco, cuja disciplina Nós algum tempo atrás prudentemente mitigamos[16], deveria ser refletidamente promovida e sustentada; pois todo o objetivo desta Ordem, como constituída por seu fundador, é convidar os homens a uma imitação de Jesus Cristo, a um amor à Igreja, e à observância de todas as virtudes Cristãs; e portanto ela deveria ser de grande influência em suprimir o contágio das sociedades pervertidas. Que, portanto, esta santa irmandade possa ser fortalecida por um crescimento diário. Entre os muitos benefícios a serem esperados disso estará o grande benefício de voltar as mentes dos homens à liberdade, fraternidade e igualdade de direito; não tais como os Maçons absurdamente imaginam, mas tais como Jesus Cristo obteve para o gênero humano e aos quais São Francisco aspirou: a liberdade, Nós queremos dizer, de filhos de Deus, através da qual nós podemos ser livres da escravidão a Satanás ou a nossas paixões, ambos os mais perversos mestres; a fraternidade cuja origem está em Deus, o Criador comum e Pai de todos; a igualdade a qual, fundada na justiça e caridade, não remove todas as distinções entre os homens, mas, das variedades da vida, dos deveres, e das ocupações, forma aquela união e aquela harmonia que naturalmente tende ao benefício e dignidade da sociedade.
35. Em terceiro lugar, há um assunto sabiamente instituído por nossos ancestrais, mas no decorrer do tempo deixado de lado, que pode agora ser usado como um padrão e forma de algo semelhante. Nós queremos dizer as associações ou organizações de trabalhadores, para proteger, sob a direção da religião, os seus interesses temporais e a sua moralidade. Se nossos ancestrais, por longa prática e experiência, sentiram o benefício destas associações, nossa época talvez irá senti-lo ainda mais por causa da oportunidade que eles darão de esmagar o poder das seitas. Aqueles que sustentam a si mesmos pelo trabalho de suas mãos, além de serem, pela sua própria condição, mais dignos acima de todos os outros de caridade e consolação, são também especialmente expostos às tentações de homens cujos caminhos estão na fraude e no engano. Portanto, eles devem ser ajudados com a maior bondade possível, a ser convidados a juntar-se a associações que são boas, para que eles não sejam arrastados para outras que são malignas. Por esta razão, Nós grandemente desejamos, pela salvação das pessoas, que, sob os auspícios e patrocínio dos bispos, e em oportunidades convenientes, estas associações possam ser restauradas de uma maneira generalizada. Para Nossa grande alegria, irmandades deste tipo e também associações de mestres já foram estabelecidas em muitos lugares, tendo, cada classe delas, por seu objetivo ajudar os honestos trabalhadores, a proteger e guardar suas crianças e família, e a promover neles a piedade, o conhecimento Cristão, e uma vida moral. E neste assunto Nós não podemos nos omitir de mencionar aquela sociedade exemplar, denominada de acordo com o seu fundador, São Vicente, que tem merecido tanto das classes mais baixas. Seus atos e seus alvos são bem conhecidos. Todo o seu objetivo é dar alívio ao pobre e miserável. Isto ela faz com singular prudência e modéstia; e quanto menos ela deseja ser notada, mais ela se adequa ao exercício da caridade Cristã, e para o alívio dos sofredores.
36. Em quarto lugar, de modo a mais facilmente atingir o que Nós desejamos, à vossa fidelidade e vigilância Nós recomendamos de um modo especial os jovens, como sendo a esperança da sociedade humana. Devotai a maior parte do vosso cuidado à instrução deles; e não pensai que qualquer precaução possa ser grande o suficiente para mantê-los afastados de mestres e escolas aonde o hálito pestilento das seitas deva ser temido. Sob a vossa direção, deixem os pais, instrutores religiosos, e padres tendo a cura de almas, usar cada oportunidade, em seu ensinamento Cristão, para advertir suas crianças e pupilos da natureza infame destas sociedades, para que eles possam aprender em bom tempo a terem cuidado com os variados e fraudulentos artifícios pelos quais seus promotores costumam laçar as pessoas. E aqueles que instruem os jovens em conhecimento religioso agirão sabiamente se eles induzirem todos eles a se resolverem e se comprometerem a nunca ligar-se a qualquer sociedade sem o conhecimento de seus pais, ou o conselho de seu padre ou diretor.
37. Nós bem sabemos, entretanto, que os nossos esforços unidos não serão de modo algum suficientes para arrancar estas sementes perniciosas do campo do Senhor, a menos que o Celestial Mestre da vinha misericordiosamente nos ajude em nossos esforços. Nós precisamos, portanto, com grande e ansioso cuidado, implorar a Ele a ajuda que a grandeza do perigo e da necessidade requer. A seita da Maçonaria mostra-se insolente e orgulhosa de seu sucesso, e parece que ela não colocará limites à sua pertinácia. Seus seguidores, ajuntados por perversos acordos e por conselhos secretos, ajudam-se uns aos outros, e excitam-se uns aos outros a uma audácia nas coisas malignas. Um ataque tão veemente exige uma igual defesa - especificamente, que todos os homens de bem formem a mais abrangente associação possível de ação e de oração. Nós imploramos a eles, portanto, com corações unidos, a permanecer unidos e firmes contra as forças das seitas que avançam; e em aflição e súplica estender suas mãos a Deus, orando que o nome Cristão possa florescer e prosperar, que a Igreja possa desfrutar da sua necessária liberdade, que aqueles que se extraviaram possam retornar a uma mente reta, que o erro difundido possa dar lugar à verdade, e o vício à virtude. Tomemos como nossa auxiliadora e intercessora a Virgem Maria, Mãe de Deus, para que ela, que desde o momento de sua concepção derrotou Satanás possa mostrar seu poder sobre estas seitas malignas, nas quais revive o contumaz espírito do demônio, juntamente com sua perfídia insubmissa e enganosa. Imploremos a Miguel, o príncipe dos anjos celestes, que lançou fora o infernal inimigo; e José, o esposo da santíssima Virgem, e patrono celeste da Igreja Católica; e os grandes Apóstolos, Pedro e Paulo, os pais e campeões vitoriosos da fé Cristã. Por seu patrocínio, e pela perseverança na união de oração, Nós esperamos que Deus irá misericordiosamente e oportunamente socorrer o gênero humano, que é rodeado por tantos perigos.
38. Como garantia dos dons celestes e de Nossa benevolência, Nós amorosamente concedemos no Senhor a vós, veneráveis irmãos, e ao clero e todo o povo confiado ao vosso vigilante cuidado, Nossa bênção apostólica.
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no vigésimo dia de abril de 1884, o sexto ano de Nosso pontificado.

Notas:
[1] De civ. Dei, 14, 28 (PL 41, 436).
[2] Sl 82,2-4. 
[3] Const. In Eminenti, 24 de abril de 1738.
[4] Const. Providas, 18 de maio de 1751.
[5] Const. Ecclesiam a Jesu Christo, 13 de setembro de 1821.
[6] Const. dada a 13 de março de 1825.
[7] Enc. Traditi, 21 de maio de 1829. 
[8] Enc. Mirari, 15 de agosto de 1832. 
[9] Enc. Qui Pluribus, 9 de novembro de 1846; pronunciamento Multiplices inter, 25 de setembro de 1865. etc. 
[10] Clemente Xll (1730-40); Bento XIV (1740-58), Pio VII (1800-23); Pio IX (1846-78). [11] Ver números 79, 81, 84.
[12] Mt 7,18.
[13] Trid., sess. vi, De justif, c. 1. Texto do Concílio de Trento: "tametsi in eis (sc. Judaeis) liberum arbitrium minime extinctum esset, viribus licet attenuatum et inclinatum." 
[14] Ver Arcanum, no. 81.
[15] Epistola 137, ad Volusianum, c. v, n. 20 (PL 33, 525).
[16] (17 de setembro de 1882), na qual o Papa Leão XIII tinha recentemente glorificado S. Francisco de Assis por ocasião do sétimo centenário de seu nascimento. Nesta encíclica, o Papa apresentou a Ordem Terceira de S. Francisco como uma resposta Cristã aos problemas sociais da época. A constituição Misericors Dei filius (23 de junho de 1883) expressamente relembrou que a negligência com a qual as virtudes Cristãs são tidas é a causa principal dos males que ameaçam as sociedades. Confirmando a regra da Ordem Terceira e adaptando-a às necessidades dos tempos modernos, o Papa Leão XIII intencionava trazer de volta o maior número possível de almas à prática destas virtudes.

ENCÍCLICA AUGUSTISSIMAE VIRGINIS MARIAE DO PAPA LEÃO XIII


CARTA ENCÍCLICAAUGUSTISSIMAE VIRGINIS MARIAE DE SUA SANTIDADE
PAPA LEÃO XIII

A todos os Veneráveis Irmãos Patriarcas,
Primazes, Arcebispos, Bispos do Orbe Católico
em graça e comunhão com a Sé Apostólica,
sobre o Rosário de Nossa Senhora.
Veneráveis Irmãos, Saúde e Bênção Apostólica.
Exortação à devoção para com Maria
1. Quem quer que considere o grau sublime de dignidade e de glória a que Deus elevou a augustíssima Virgem Maria, facilmente pode compreender que vantagem traz à vida pública e privada o contínuo desenvolvimento e a sempre mais ardente difusão do seu culto. De fato, Deus escolheu-a desde a eternidade para vir a ser Mãe do Verbo, que se encarnaria; e, por este motivo, entre todas as criaturas mais belas na ordem da natureza, da graça e da glória, Ele a distinguiu com privilégios tais, que a Igreja com razão aplica a ela aquelas palavras: "Saí da boca do Altíssimo, primogênita antes de toda criatura" (Ecli. 24, 5). Quando, pois, se iniciou o curso dos séculos, aos progenitores do gênero humano, caídos na culpa, e aos seus descendentes, contaminados pela mesma mancha, ela foi dada como penhor da futura reconciliação e da salvação.
2. Depois, o Filho de Deus, por sua vez, fez sua santíssima Mãe objeto de evidentes demonstrações de honra. De feito, durante a sua vida privada, Ele escolheu-a como sua cooperadora nos dois primeiros milagres por Ele operados. O primeiro foi um milagre de graça, e teve lugar quando, à saudação de Maria, a criança exultou no seio de Isabel; o segundo foi um milagre na ordem da natureza; e teve lugar quando, nas bodas de Caná, Cristo transformou a água em vinho. Chegado, depois, ao termo da sua vida pública, quando estava em via de estabelecer e selar com o seu sangue divino o Novo Testamento, Ele confiou-a ao seu Apóstolo predileto, com aquelas suavíssimas palavras: "Eis aí tua mãe!" (Jo. 19, 27).
Portanto, Nós, que, embora indignamente, representamos na terra Jesus Cristo, Filho de Deus, enquanto tivermos vida nunca cessaremos de promover a glória dela. E, como sentimos que, pelo peso grande dos anos, a Nossa vida não poderá durar ainda muito, não podemos deixar de repetir a todos os Nossos filhos e a cada um deles em particular as últimas palavras que Cristo nos deixou como testamento, enquanto pendia da cruz: "Eis aí tua Mãe!". Oh! como nos consideraríamos felizes se as Nossas recomendações chegassem a fazer com que cada fiel não tivesse na terra nada mais importante ou mais caro do que a devoção a Nossa Senhora, e pudesse aplicar a si mesmo as palavras que João escreveu de si: "O discípulo tomou-a consigo" (Jo. 19, 27).
3. Ora, ao aproximar-se o mês de Outubro, não queremos que, nem também este ano, Veneráveis Irmãos, vos falte uma Nossa Carta, para, com o ardor de que somos capazes, recomendar de novo a todos os católicos quererem ganhar para si mesmos e para Igreja, tão trabalhada, a proteção da Virgem, com a recitação do Rosário. Prática esta que, no descambar deste século, por divina disposição se tem maravilhosamente afirmado, para despertar a esmorecida piedade dos fiéis; como claramente atestam notáveis templos e célebres santuários dedicados à Mãe de Deus.
4. Depois de havermos dedicado a esta divina Mãe o mês de Maio com o dom das nossas flores, consagremos-lhe também, com afeto de singular piedade, o mês de Outubro, que é mês dos frutos. De feito, parece justo dedicar estes dois meses do ano àquela que disse de si: "As minhas flores tornaram-se frutos de glória e de riqueza" (Ecli. 24, 23).
A Confraria do Rosário
5. O espírito de associação, fundado na própria índole da natureza humana, talvez nunca tenha sido tão vivo e universal como agora. E certamente ninguém condenaria isto; se muitas vezes essa naturabilíssima tendência natural não fosse orientada para o mal: isto é, se os ímpios, movidos por um mesmo intento, não se reunissem em sociedades de vário gênero, "contra o Senhor e o seu Messias" (Salmo 2, 2).
Por outro lado, entretanto, pode-se discernir, e certamente com grandíssima alegria, que, também entre os católicos cresce o amor às associações pias: associações bem compactas, que se tornam como que famílias, nas quais os membros estão de tal forma ligados entre si pelo vínculo da caridade cristã, a ponto de parecerem, antes, de serem verdadeiramente irmãos.
E, de feito, se se elimina a caridade de Cristo, não pode haver fraternidade, como já energicamente demonstrava Tertuliano, dizendo: "Somos vossos irmãos por direito de natureza, natureza que é mãe comum, se bem que sejais muito pouco homens, por serdes maus irmãos. Mas quão melhor convém o nome e a dignidade de irmãos àqueles que reconhecem por seu pai comum Deus, àqueles que se imbuíram do mesmo espírito de santidade, e que, embora nascidos do mesmo seio da comum ignorância, depois se nutriram da mesma luz de verdade!" (Tertuliano, Apolog. c. 39).
A forma destas utilíssimas sociedades, constituídas entre os católicos, é a mais variada: círculos, caixas rurais, recreatórios festivos, patronatos para a proteção da juventude, irmandades, e muitíssimos outros, todos instituídos com nobilíssimos intentos. Certamente, todas estas associações têm nomes, formas e fins próprios e imediatos modernos, mas são antiquíssimas na substância, pois se lhes podem distinguir os vestígios desde os inícios do cristianismo. Mais tarde foram reforçadas com leis, distinguidas com divisas próprias, enriquecidas de privilégios, ordenadas ao culto divino nas igrejas, ou então destinadas ao bem das almas e ao alívio dos corpos, e designadas com nomes diversos, segundo os tempos. E, com o correr do tempo, o seu número aumentou tanto, que, sobretudo na Itália, não há cidade, aldeia ou paróquia que não as tenhas muitas, ou ao menos uma.
6. Ora, entre essas associações não hesitamos em dar um lugar eminente à confraria que toma o nome do santo Rosário. Com efeito, se se considerar a sua origem, ela figura entre as mais antigas; porquanto é fama que a haja fundado o próprio Patriarca S. Domingos; depois, se se lhe considerarem os privilégios, ela é riquíssima deles pela munificência dos Nossos Predecessores. Por último, forma e como que alma dessa instituição é o Rosário mariano, cuja eficácia já havemos, em outras circunstâncias, longamente tratado.
Eficácia do Rosário recitado em comum
7. Mas a eficácia e o valor do Rosário aparecem ainda maiores se o considerarmos como um dever imposto à confraria que dele tira o nome. Na verdade, ninguém ignora o quanto é necessária para todos a oração, não porque com ela se possam modificar os divinos decretos, mas porque, como diz S. Gregório: "Os homens, com a oração, merecem receber aquilo que Deus onipotente desde a eternidade decidiu dar-lhes" (Diálogorum Libros 1, c. 8). E S. Agostinho acrescenta: "Quem sabe bem rezar, sabe também viver bem" (In Psalmos 118).
E a oração justamente alcança a sua eficácia máxima em impetrar o auxílio do Céu, quando é elevada publicamente, com perseverança e concórdia, por muitos fiéis que formem um só coro de suplicantes. Isto resulta evidente dos Atos dos Apóstolos, onde se diz que os discípulos de Cristo, à espera do Espírito Santo prometido, "perseveravam unânimes na oração" (At. 1,14).
Os que oram deste modo certissimamente obterão sempre o fruto da sua oração. E isto justamente se verifica entre os confrades do santo Rosário. Com efeito, assim como a oração do Ofício divino feita pelos sacerdotes é uma oração pública e contínua, e por isto eficacíssima; assim também, em certo sentido, é pública, contínua e comum a oração dos confrades do Rosário: definido este, em razão disto, por alguns Pontífices Romanos, "O Breviário da Virgem".
8. Depois, conforme já dissemos, como as orações públicas têm uma excelência e uma eficácia maiores do que as privadas, por isto a Confraria do Rosário também foi chamada pelos escritores eclesiásticos "milícia orante, alistada pelo Patriarca Domingos, sob as insígnias da divina Mãe"; isto é, daquela que a Sagrada Escritura e os fastos da Igreja saúdam como vencedora do demônio e de todas as heresias. E isto porque o Rosário mariano liga com um vínculo comum todos aqueles que podem associar-se a ela, fazendo-os, como que irmãos e co-milicianos.
E assim eles formam uma fortíssima falange, inteiramente armada e pronta a repelir os assaltos dos inimigos, quer internos, quer externos. Por isto, os membros desta pia associação podem com razão aplicar a si mesmos aquelas palavras de S. Cipriano: "Nós temos uma oração pública e comum, e, quando oramos, não oramos por um simples indivíduo, mas pelo povo todo, porque, quantos somos, formamos uma coisa só" (S. Cipriano, De Oratione Dominica).
 9. Aliás, a história da Igreja atesta a força e a eficácia destas orações, recordando-nos a derrota das forças turcas na batalha naval de Lepanto, e as esplêndidas vitórias alcançadas no século passado sobre os mesmos Turcos em Temesvar, na Hungria, e perto da ilha de Corfu. Do primeiro fato permanece como monumento perene a festa de Nossa Senhora das Vitórias, instituída por Gregório XIII, e depois consagrada e estendida à Igreja universal por Clemente XI, sob o nome de festa do Rosário.
Justificação do Rosário
10. Pelo fato, pois, de estar esta milícia orante "alistada sob a bandeira da divina Mãe", ela adquire uma nova força e se ilustra de nova alegria, como sobretudo demonstra, na recitação do Rosário, a freqüente repetição da saudação angélica depois da oração dominical. Esta prática, longe de ser incompatível com a dignidade de Deus - como se insinuasse que nós devemos confiar mais em Maria Santíssima do que no próprio Deus - tem, ao contrário, uma particularíssima eficácia para O comover e no-lo tornar propício. De feito, a fé católica nos ensina que nós devemos orar não só a Deus, mas também aos Santos (Concilum Tridentinum Sessio 25), embora de maneira diferente: a Deus, como fonte de todos os bens; aos Santos, como intercessores.
"De dois modos pode-se dirigir a alguém um pedido, diz S. Tomás: com a convicção de que ele possa atendê-lo ou com a persuasão de que ele possa impetrar aquilo que se pede. Do primeiro modo só oramos a Deus, porque todas as nossas preces devem ser dirigidas à consecução da graça e da glória, que só Deus pode dar, como é dito no Salmo 83, 12: "A graça e a glória dá-a o Senhor". Da segunda maneira apresentamos o mesmo pedido aos santos Anjos e aos homens; não para que, por meio deles, Deus venha a conhecer os nossos pedidos, mas para que, pela intercessão deles e pelos seus méritos, as nossas preces sejam atendidas.
E por isto, no capítulo VIII, 4 do Apocalipse se diz que o fumo dos aromas, pelas orações dos Santos, subiu da mão do Anjo à presença de Deus" (S. Thomas de Aquino, II-II q. 83, a. 4). Ora, entre todos os Santos que habitam as mansões bem-aventuradas, quem poderá competir com a augusta Mãe de Deus em impetrar a graça? Quem poderá com maior clareza ver no Verbo eterno de Deus as nossas angústias e as nossas necessidades? A quem foi concedido maior poder em comover a Deus? Quem como ela tem entranhas de maternal piedade? É este precisamente o motivo pelo qual nós não oramos aos Santos do Céu do mesmo modo como oramos a Deus; "porquanto à SS. Trindade pedimos que tenha piedade de nós, ao passo que a todos os outros Santos pedimos que roguem por nós" (S. Th., II-II q. 83, a. 4).
Em vez disto, a oração que dirigimos a Maria tem algo de comum com o culto que se presta a Deus; tanto que a Igreja a invoca com esta expressão, que se costuma endereçar a Deus: "Tem piedade dos pecadores". Portanto, os confrades do santo Rosário fazem muito bem em entrelaçar tantas saudações e tantas preces a Maria, como outras tantas coroas de rosas. De feito, diante de Deus Maria é "tão grande e vale tanto que, a quem quer graças e a ela não recorre, o seu desejo quer voar sem asas".
Os confrades do Rosário imitam os anjos
11. À confraria de que estamos falando cabe, depois, outro título de louvor, que não queremos passar em silêncio. Cada vez que na recitação do Rosário mariano consideramos os mistérios da nossa salvação, de certo modo imitamos e emulamos os ofícios outrora confiados à milícia angélica. Foram eles, os anjos, que nos tempos estabelecidos revelaram estes mistérios, nos quais tiveram grande parte e intervieram infatigavelmente, compondo o seu semblante ora segundo a alegria, ora segundo a dor, ora segundo a exaltação da glória triunfal.
Gabriel é enviado à Virgem para lhe anunciar a Encarnação do Verbo eterno. Na gruta de Belém os Anjos acompanham com os seus cantos a glória do Salvador, há pouco vindo à luz. Um Anjo adverte José a fugir e a dirigir-se para o Egito com o Menino. Enquanto Jesus no Horto sua sangue por causa da sua tristeza, um Anjo com a sua palavra compassiva, conforta-o.
Quando Jesus, triunfando sobre a morte, se levanta do sepulcro, Anjos noticiam isso às piedosas mulheres. Anjos anunciam que Ele subiu ao Céu, e prenunciam que de lá Ele voltará entre as falanges angélicas, para unir a elas as almas dos eleitos, e conduzi-las consigo para entre os coros celestes, acima dos quais "foi exaltada a santa Mãe de Deus".
Por isto, de modo especial aos associados que praticam a devoção do Rosário se adaptam às palavras que S. Paulo dirigia aos novos discípulos de Cristo: "Chegastes ao monte de Sião e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celeste e às miríades de Anjos" (Heb 12, 22). Que pode haver de mais excelente e de mais suave do que contemplar a Deus e rogá-lo juntamente com os Anjos? Como devem nutrir uma grande esperança e uma grande confiança de gozarem um dia no Céu a beatíssima companhia dos Anjos aqueles que na terra, de certo modo, compartilharam o ministério deles!
Auspícios par a difusão da confraria
12. Por tais motivos, os Pontífices Romanos sempre exaltaram com grandíssimos louvores esta confraria dedicada a Maria. Entre outros, Inocêncio VIII define-a uma "devotíssima confraria" (Inocêncio VIII, Constitutio "Splendor Paternae Gloriae", 26 de fev. 1491). Pio V atribui à influência dela os seguintes resultados: "Os fiéis transformaram-se rapidamente em outros homens; as trevas da heresia se dissipam; e a luz da fé católica manifesta-se" (S. Pio V, Constitutio"Consueverunt RR. PP.", 17 set. 1569).
Sisto V, observando o quanto esta instituição tem sido fecunda de frutos para a religião, professa-se devotíssimo dela; muitos outros, enfim, enriqueceram-na de preciosas e abundantíssimas indulgências, ou colocaram-na sob a sua particular proteção, inscrevendo-se nesta, e manifestando-lhe por diversos modos a sua benevolência.
13. Movidos por estes exemplos dos Nossos Predecessores, Nós também, ó Veneráveis Irmãos, vivamente vos exortamos e vos conjuramos - como já muitas vezes temos feito - a quererdes dedicar um cuidado todo particular a esta sagrada milícia; de modo que, graças ao vosso zelo, cada dia se organizem em toda parte novas falanges. Que, pela vossa obra e da parte de clero a vós subordinado, que tem cura de almas, venha o resto do povo a conhecer e a avaliar na justa medida a grande eficácia desta confraria, e a sua vantagem em ordem à eterna salvação dos homens.
O Rosário perpétuo
14. E tanto mais insistimos em tal recomendação quanto recentemente refloriu uma belíssima manifestação de piedade mariana: o Rosário "perpétuo". De bom grado abençoamos esta iniciativa, e vivamente desejamos que vos apliqueis com solicitude e zelo ao seu incremento. De feito, nutrimos viva esperança de que não poderão deixar de ser bastante eficazes os louvores e as preces que saem incessantemente da boca e do coração de uma imensa multidão, e que, alternando-se dia e noite pelas várias regiões do mundo, unem a harmonia das vozes à meditação das divinas verdades.
E certamente a continuidade destes louvores e destas preces foi prefigurada pelas palavras com que Ozias cantava a Judit: "Bendita és tu, filha, ante o Senhor Deus altíssimo, sobre todas as mulheres da terra... porque Ele hoje tornou tão grande o teu nome, que o teu louvor nunca faltará nos lábios dos homens". E a este augúrio todo o povo de Israel respondia em voz alta: "Assim é, assim seja..." (Judit. 18, 23; 25, 26).
Entrementes, como auspício dos benefícios celestes, em testemunho da Nossa benevolência, de grande coração concedemos, no Senhor, a Bênção Apostólica a vós, Veneráveis Irmãos, ao clero e a todo o povo confiado à vossa fiel vigilância.
Dado em Roma, junto a S. Pedro, a 12 de Setembro de 1897, vigésimo ano do Nosso Pontificado.

LEÃO PP. XIII.

ENCÍCLICA ADIUTRICEM POPULI DO PAPA LEÃO XIII


CARTA ENCÍCLICA 
ADIUTRICEM POPULI 
DE SUA SANTIDADE PAPA LEÃO XIII


A todos os Veneráveis Irmãos Patriarcas,
Primazes, Arcebispos, Bispos do Orbe Católico
em graça e comunhão com a Sé Apostólica,
sobre o Rosário de Nossa Senhora.
Veneráveis Irmãos, Saúde e Bênção Apostólica.

Consolador despertar da piedade mariana

1. E coisa boa celebrar com louvores sempre maiores e implorar com sempre mais viva confiança a Virgem Mãe de Deus, poderosa e misericordiosíssima auxiliadora do povo cristão. Com efeito, os motivos desta confiança e destes louvores são multiplicados por esse rico e variado tesouro de benefícios sempre mais abundantes derramados em toda parte por Maria para o bem-estar comum.
E, em troca de tal munificência, os católicos certamente não têm faltado ao seu dever de profundo reconhecimento. Visto como hoje, mais do que nunca, não obstante a presente luta contra a religião, podemos ver aumentados e sempre mais afervorados, em todas as classes da sociedade, o amor e o culto para com a beata Virgem.
E a reconstituição e a multiplicação das confrarias sob o seu patrocínio; a construção de suntuosos monumentos dedicados ao seu augusto nome; as peregrinações de multidões devotíssimas aos santuários mais venerados; os congressos que têm como finalidade uma sempre maior difusão da sua glória; e inúmeras outras manifestações deste gênero, excelentes por si mesmas e de feliz augúrio para o futuro, são luminosa prova deste fato.
Mas a Nós apraz recordar aqui de modo especial que, entre as múltiplas formas de piedade para com Maria, a mais estimada e praticada é a, tão excelente, do santo Rosário. Isto, dizíamos, é de grande alegria para nós; porquanto, se temos dedicado parte notável das Nossas solicitudes a propagar a devoção do Rosário, tocamos com a mão a realidade de com que benevolência a Rainha do Céu, assim invocada, tem correspondido aos Nossos votos; como esperamos que Ela quererá também amenizar as dores e as amarguras que os próximos dias nos preparam.
Orar pelo retorno dos dissidentes
2. Mas é sobretudo para a difusão do Reino de Cristo que Nós esperamos do poder do santo Rosário um socorro mais eficaz. O intento que Nós agora com mais vivo desejo nos prefixamos, como muitas vezes temos dito, é a reconciliação dos povos separados da Igreja; declarando, ao mesmo tempo, que o êxito devemos esperá-lo sobretudo das fervorosas preces dirigidas à onipotência divina. Isto Nós também recentemente afirmamos, por ocasião da solenidade de Pentecostes, recomendando fossem dirigidas, nesta intenção, preces especiais ao Espírito Santo. E sabemos que o nosso convite foi correspondido em toda parte com grande solicitude.
Mas, dada a importância da difícil empresa, e a necessidade de perseverar em toda santa ousadia, vem aqui muito a propósito o conselho do Apóstolo: "Perseverai na oração" (Col. 4, 2); tanto mais quanto os felizes inícios da obra são de incitamento a esta perseverança na oração. Portanto, ó Veneráveis Irmãos, fareis a coisa mais útil para este fim, e para Nós mais grata, se, durante todo o próximo Outubro, vós e os vossos fiéis invocardes conosco devotissimamente a Virgem Mãe, com a recitação do santo Rosário nas formas prescritas. Poderosos motivos impelem-nos a, com absoluta confiança, confiar à sua proteção os Nossos projetos e os Nossos votos.

Maria no Cenáculo mestra dos apóstolos

3. O mistério do imenso amor de Cristo a nós teve, "entre outras, uma luminosa manifestação quando Ele, perto de morrer, quis confiar ao seu discípulo João aquela mãe, sua própria Mãe, com aquele solene testamento: "Eis aí teu filho!" Ora, na pessoa de João, segundo o pensamento constante da Igreja, Cristo quis indicar o gênero humano, e, particularmente, todos aqueles que a Ele adeririam pela fé. E é justamente neste sentido que S. Anselmo de Cantuária exclama: "O' Virgem, que privilégio pode ser tido em maior consideração do que esse pelo qual és a mãe daqueles para os quais Cristo se digna de ser pai e irmão?" (S. Anselmo de Cantuária., Oratio 47).
Por sua parte, Maria generosamente aceitou e tem cumprido essa singular e pesada missão, cujo inícios foram consagrados no Cenáculo. Desde então ela ajudou admiravelmente os primeiros fiéis com a santidade do seu exemplo, com a autoridade dos seus conselhos, com a doçura dos seus incentivos, com a eficácia das Suas orações, tornando-se assim verdadeiramente mãe da Igreja e mestra e rainha dos Apóstolos, aos quais comunicou também aqueles divinos oráculos que ela "conservava ciosamente no seu coração".

Do Céu, Maria vela sobre a Igreja

4. Impossível seria, pois, dizer que amplitude e que eficácia hajam adquirido os seus socorros, quando ela foi levada para junto de seu divino Filho, àquele fastígio de glória que convinha à sua dignidade e ao esplendor dos méritos. Com efeito, de lá do alto, consoante os desígnios de Deus, ela começou a velar sobre a Igreja, a assistir-nos e a proteger-nos como uma mãe; de modo que, depois de ter sido a cooperadora da redenção humana, tornou-se também, pelo poder quase ilimitado que lhe foi conferido, a dispensadora da graça que em todos os tempos jorra dessa redenção.
Por isto, com bem razão as almas cristãs, obedecendo como que a um instinto natural, sentem-se arrastadas para Maria, para lhe comunicarem com toda confiança os seus projetos e as suas obras, as suas angústias e as suas alegrias; para recomendarem com filial abandono suas pessoas e suas coisas à bondade e solicitude d'Ela. Por este justíssimo motivo, todos os povos e todos os ritos têm-lhe tributado louvores, que têm vindo sempre crescendo com o sufrágio dos séculos. Donde os títulos a ela dados de "Mãe nossa, nossa Mediadora" (S. Bernardo, Sermo II in Advento Domini, n. 5), "Reparadora do mundo inteiro" (S. Tharasius, Oratio in Praesentatione Deiparae), "Dispensadora dos dons celestes" (In Off. Graec., 8 dec., post oden 9).

Maria e a difusão do Evangelho

5. Ora, já que a fé é o fundamento e princípio dos dons divinos pelos quais o homem é elevado, acima da ordem da natureza, aos bens eternos, com toda a razão se celebra a mística influência de Maria para fazer adquirir e frutificar a fé. Maria, com efeito, é aquela que gerou o "autor da fé", e que, em razão da sua fé, foi saudada "Bem-aventurada" "Ninguém, ó Virgem, tem pleno conhecimento de Deus senão por ti; ninguém se salva senão por ti, ó Mãe de Deus; ninguém, senão por ti, recebe dons da misericórdia divina" (S. Germano Constantinopolitano, Oratio II in Dormitione B. M. V.). E, certamente, não poderá parecer exagerada a afirmação de que especialmente pela sua guia e pelo seu auxílio foi que, mesmo entre enormes obstáculos e adversidades, a sabedoria e as ordenações evangélicas se difundiram tão rapidamente em todo o mundo, instaurando por toda parte uma nova ordem de justiça e de paz.
Consideração esta que sem dúvida devia estar presente ao ânimo de S. Cirilo de Alexandria quando, dirigindo-se à Virgem, lhe dizia: "Por ti os Apóstolos pregaram aos povos a doutrina da salvação; por ti a santa Cruz é louvada e adorada no mundo inteiro; por ti os demônios são afugentados e o homem chamado de novo ao céu; por ti toda criatura, detida pelos erros da idolatria, é reconduzida ao conhecimento da verdade; por ti os fiéis chegaram ao batismo, e em toda parte do mundo foram fundadas as Igrejas" (S. Cirilo de Alexandria, Homilia contra Nestorium).

Maria, cetro da verdadeira fé

6. Além disto, consoante o louvor do mesmo Doutor, ela foi vigorosíssimo "cetro da verdadeira fé" (S. Cirilo de Alexandria, Homilia contra Nestorium), pelo contínuo cuidado que teve de manter firme, intacta e fecunda, entre os povos, a fé católica. E disto existem provas numerosíssimas e assaz conhecidas, confirmadas às vezes por acontecimentos prodigiosos. Sobretudo nas épocas e nas regiões em que se houve de deplorar a fé esmorecida por causa da indiferença, ou atacada pelo pernicioso contágio dos erros, foi que o clemente socorro da Virgem se fez particularmente sentir.
Foi então que, graças ao seu impulso e ao seu apoio, surgiram homens, eminentes por santidade e por zelo apostólico, prontos a repelir os ataques dos perversos, a reconduzir as almas à prática e ao fervor da vida cristã. Sozinho, mas poderoso como muitos juntos, Domingos de Gusmão consagrou-se a esta dupla tarefa, tendo posto com êxito a sua confiança no Rosário de Maria.
E ninguém poderá pôr em dúvida que grande parte tenha a Mãe de Deus nos serviços prestados pelos veneráveis Padres e Doutores da Igreja, que tão notavelmente trabalharam em defender e ilustrar a doutrina católica. De fato, é a ela, sede da divina sabedoria, que eles atribuem com gratidão a fecunda inspiração dos seus escritos; foi por obra da Virgem Santíssima, e não pelo mérito deles, conforme eles mesmos atestam, que a malícia dos erros foi debelada.
Enfim, príncipes e Pontífices Romanos, guardas e defensores da fé tiveram o costume de recorrer sempre ao nome da divina Mãe: uns na direção das suas guerras sagradas, outros na promulgação dos seus solenes decretos; e sempre lhe experimentaram o poder e a proteção.
7. Por isto a Igreja e os Padres dirigem a Maria estas expressões não menos verdadeiras do que esplêndidas: "Ave, ó boca sempre eloqüente dos Apóstolos; ó sólido fundamento da fé; ó rocha inabalável da Igreja" (Do hino dos Gregos Theotokion). "Ave: por ti nós fomos computados entre os cidadãos da Igreja, una, santa, católica e apostólica" (S. João Damasceno, Oratio in Annunciatione Dei Genitricis, n. 9). "Ave, ó divina fonte da qual os rios da eterna sabedoria, correndo com as puríssimas e limpidíssimas águas da ortodoxia, prostram a multidão dos erros" (S. Germano Constantinopolitano, Oratione in Dei Praesentatione, n. 4). "Alegra-te, já que só tu conseguiste destruir todas as heresias no mundo inteiro!" (no Ofício da B. V. M.).

Maria e a unidade da fé

8. Esta parte tão importante que a Santíssima Virgem teve e tem no curso de expansão, nos combates, nos triunfos da fé católica, torna mais luminoso o plano divino a seu respeito, e deve despertar em todos os bons uma grande esperança para a consecução de todas as finalidades que estão hoje nos anseios de cada um.
9. É preciso confiar em Maria; é preciso invocar Maria! Oh! quão eficaz será o seu poder para a solícita realização do novo e tão desejado triunfo da religião, isto é, que no meio dos povos cristãos uma única profissão de fé deva manter unidas as mentes, e um único vínculo de perfeita caridade estreite os corações! Que não estará ela disposta a fazer para que todas as nações caminhem unidas "na maravilhosa luz de Deus", quando com tanta insistência o seu Unigênito pediu ao Pai a união delas, e, por meio do batismo, as chamou a participar "da herança da salvação", adquirida com imenso preço? Poderá ela deixar de demonstrar a sua amorosa providência, quer para aliviar os longos trabalhos que para tal fim a Igreja, Esposa de Cristo, enfrenta, quer para realizar na família cristã esse dom da união que é o fruto precioso da sua maternidade?

A antiga unidade e o culto de Maria

10. E um sinal de que o augúrio não está tão longe de verificar-se está na opinião e na confiança, tão ardentes nas almas piedosas, de que Maria será o feliz laço que, com a sua força, unirá todos aqueles que amam a Cristo, onde quer que estejam, formando deles um só povo de irmãos, prontos a obedecer, como a um pai comum, ao Vigário de Cristo na terra, o Pontífice Romano.
Aqui o pensamento reporta-se espontaneamente, através dos fastos da Igreja, aos magníficos exemplos da primitiva unidade, e com mais gosto se detém na recordação do grande Concílio de Éfeso. Porquanto a plena concórdia da fé, a participação nos mesmos sacramentos, que então unia o Oriente e o Ocidente, aqui parece realmente afirmar-se com singular firmeza e brilhar de nova glória, quando os padres do Concílio anunciaram autorizadamente o dogma da divina Maternidade de Maria: a notícia de tal acontecimento, promanando daquela religiosíssima cidade exultante, encheu o mundo católico da mesma incontida alegria.
A oração pelos dissidentes, agradável a Maria 
11. Todas estas razões, que sustentam e aumentam a confiança de ser ouvido pelo poder e pela bondade da Virgem, devem ser, para os católicos, outros tantos incitamentos para a rogarem - como Nós vivamente recomendamos -com fervoroso empenho. Reflitam os fiéis em quanto é para eles decoroso e útil, e ao mesmo tempo quão aceito e grato para a Virgem Santíssima, este empenho.
De feito, possuindo eles a unidade da fé, dessarte manifestam que justamente têm grandíssimo apreço o valor deste benefício, e que querem guardá-lo com todo escrúpulo. Nem podem eles manifestar de melhor forma o seu amor fraterno para com os separados, do que ajudando-os eficazmente de modo que possam reencontrar o maior de todos os bens. Tal afeto fraterno, verdadeiramente cristão, sempre operoso em toda a história da Igreja, achou sempre a sua força principal na Mãe de Deus, excelente fautora de paz e de unidade. S. Germano de Constantinopla assim a invocava: "Lembra-te dos cristãos, que são teus servos; ah! recomenda as orações de todos; conforta as esperanças de todos; reforça a fé; estreita as igrejas na unidade!" (S. Germano Constantinopolitano, Oratio Hist. in Dormitione Deiparae).
O culto de Maria entre os Orientais
12. E ainda hoje os Gregos lhe dirigem esta oração: "Ó Virgem toda pura, que podes sem temor aproximar-te de teu Filho, roga-o, ó toda santa, para que Ele dê a paz ao mundo e inspire um mesmo sentimento a todas as igrejas; e todos nós te aclamaremos!" (Men., 5 maii, post oden 9 de S. Ireneu V. M). E aqui se junta aos outros um motivo especial pelo qual é lícito esperar que a Santíssima Virgem escutará com maior benignidade as nossas preces em favor dos povos dissidentes, e esse motivo é o dos insignes méritos que eles - mas especialmente os orientais adquiriram para com ela. Porque é a eles que muito se deve se a sua devoção tanto se difundiu e cresceu.
Entre eles surgiram grandes apologistas e defensores da sua dignidade; panegiristas célebres pelo fogo e pela delicadeza da sua eloquência; "imperatrizes diletíssimas a Deus" (S. Cirilo de Alexandria, De Fide ad Pulcheriam et Sorores Reginas) que imitaram os exemplos da puríssima Virgem e lhe tributaram homenagens com a sua munificência; e, por último, igrejas e basílicas erguidas em sua honra com esplendor régio.

As imagens de Maria do Oriente ao Ocidente

13. A esta altura apraz-nos aditar uma consideração que, enquanto não é estranha ao assunto, ao mesmo tempo redunda em glória da santíssima Mãe de Deus. É esta: todos sabem que muitíssimas das suas augustas imagens, em diversas épocas, foram trazidas do Oriente para o Ocidente, e, especialmente na Itália e em Roma, foram acolhidas com suma piedade e honradas com magnificência pelos nossos avós, e veneradas depois pelos seus descendentes com não menor transporte.
Ora, Nós gostamos de verificar neste fato unia disposição e um benefício da amorosíssima Mãe, já que isso parece querer significar que essas imagens são, junto a nós, como que, palpitantes monumentos de outros tempos, em que a família cristã vivia unida em toda parte do mundo; e como que preciosos penhores de uma comum herança. Por isto, ao contemplá-las, como que por inspiração da própria Virgem devem as almas piedosamente lembrar-se daqueles que a Igreja Católica chama com amorosa solicitude à antiga concórdia e à alegria que já provaram no seu seio.

O Rosário, oração eficaz para os dissidentes

14. Assim, um grande auxílio em vantagem da unidade da Igreja é-nos por Deus oferecido em Maria. E, conquanto este auxílio de muitos modos, possa ser merecido, Nós cremos que o melhor e o mais eficaz é o do Rosário já de outras vezes fizemos observar que não última entre as vantagens do santo Rosário é fornecer ao cristão um meio prático e fácil para alimentar a sua fé e preservá-la da ignorância e do perigo do erro; como manifestamente nos demonstram as suas próprias origens.
Ora, não é meros claro o quanto toca de perto a Maria esta fé, que se exercita quer com a repetida oração vocal, quer com a meditação dos mistérios. Porquanto, toda vez que nos pomos em oração diante dela e recitamos com devoção a santa Coroa segundo o rito prescrito, nós recordamos a obra maravilhosa da nossa redenção, de modo a contemplarmos, como se se desenrolassem agora todos aqueles fatos que sucessivamente concorrem para torná-la ao mesmo tempo Mãe de Deus e Mãe nossa.
A excelência desta dupla dignidade e o fruto deste duplo ministério mostram-se-nos sob uma vivíssima luz, se piedosamente considerarmos a Virgem Maria ao lado de seu divino Filho nos mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos. Daí resulta sentir-se a alma inflamada de um vivo sentimento de gratidão para com ela; e, desdenhando todas as coisas deste mundo, esforçar-se com firme propósito por se tornar digna de tal Mãe e dos seus benefícios.
Aliás, já que Maria, a mais amorosa de todas as mães, não pode deixar de se enternecer e de se mover à compaixão para com os homens por esta freqüente e piedosa recordação de tais mistérios, o santo Rosário será., como temos dito, a oração mais oportuna para advogar junto a ela a causa de nossos irmãos dissidentes. Isto entra em cheio na missão da sua maternidade espiritual.
De fato, aqueles que pertencem a Cristo, não os gerou Nossa Senhora, nem podia gerá-los, senão na unidade da fé e do amor a Ele. "Acaso Cristo foi feito em pedaços?" (1 Cor. 1, 13). Por isto, todos nós devemos viver juntos a vida de Cristo, de modo a podermos "colher frutos para Deus" (Rom. 7, 4), num só e idêntico corpo. Necessário é, pois, que todos aqueles que a maldade dos acontecimentos separou desta unidade sejam de novo, por assim dizer, gerados para Cristo, desta mesma Mãe que Deus tornou perenemente fecunda de santa prole.
Ela, por sua parte, nenhuma outra coisa deseja mais ardentemente; e, se nós lhe oferecermos coroas tecidas desta oração a ela tão cara, Alaria lhes obterá em abundância os auxílios do "Espírito vivificados". Praza a Deus que eles não recusem secundar os desejos desta sua misericordiosíssima Mãe; e que, lembrados da sua eterna salvação, escutem este amoroso convite: "Ó filhos, por quem de novo sinto as dores do parto, até que Cristo seja formado em vós" (Gal. 4, 19).
O Rosário difundido na Igreja do Oriente
15. Havendo observado o grande poder do santo Rosário em tal terreno, alguns dos Nossos Predecessores procuraram por todos os meios difundi-lo nos países orientais. Primeiro entre todos, Eugênio IV com a sua Constituição Apostólica "Advesperascente", de 1139; depois Inocêncio XII e Clemente XI, que com a sua autoridade concederam, para este fim, largos privilégios à Ordem dos Frades Pregadores.
E os frutos não se fizeram esperar longamente, graças ao zelo e à atividade dos religiosos dessa Ordem, como está provado por inúmeros e claros documentos; se bem que aos progressos de tal obra fizesse não pouco dano a prolongada contrariedade dos tempos. Mas, nos nossos. dias, naquelas regiões tem voltado a reflorir em muitos corações o mesmo entusiasmo pela devoção ao santo Rosário, que louvamos no principio desta Carta. E esperamos que este fato, tão condizente com os Nossos desígnios, seja utilíssimo à realização dos Nossos votos.

Novo templo à Virgem do Rosário em Patras

16. A esta esperança se junta um fato consolados, que diz respeito tanto ao Oriente quanto ao Ocidente, e que é plenamente conforme aos Nossos desejos. Queremos referir-nos ao propósito, expresso no célebre Congresso Eucarístico de Jerusalém, de erigir-se um templo em honra da Rainha do Santíssimo Rosário em Patras, na Acácia, não longe daqueles lugares nos quais a proteção de Maria fez brilhar as glórias do nome cristão.
Já muitos de vós, exortados pela Comissão, surgida com a Nossa aprovação, pressurosamente contribuístes para essa obra com subscrições, juntando-lhes também a promessa de um constante interesse até que a coisa esteja realizada. E, com isto, já se proveu a quanto basta para iniciar, sem mais, os trabalhos com a grandiosidade que convém a esta obra; e Nós já autorizamos lançar-se solenemente, o mais breve possível, a primeira pedra desse edifício. O templo surgirá em nome do povo cristão, qual monumento de perene gratidão à nossa Auxiliadora e Mãe celeste. Lá ela será invocada incessantemente em rito latino e grego, a fim de que, com sempre mais benévola assistência, se digne de ajuntar aos antigos novos favores.

Mostra-te Mãe!

17. E agora, ó Veneráveis Irmãos, a Nossa exortação volta ao ponto do qual partiu. Eia, pois! que todos, pastores e rebanhos, especialmente no próximo mês, se coloquem, cheios de confiança, sob a proteção da augusta Virgem. Em público e em particular não cessem, com cantos, orações e votos, de invocar e suplicar concordemente a Mãe de Deus e Mãe nossa: "Ah! mostra-te Mãe!". Que a sua clemência maternal queira preservar de todo perigo sua família inteira: que a conduza a uma verdadeira prosperidade, e sobretudo a estabeleça na santa unidade. Guarde ela com benevolência os católicos de todas as nações, e, unindo-os pelos vínculos da caridade, torne-os mais ativos e mais constantes em sustentar a honra da religião, da qual promanam, mesmo para os povos, os bens mais preciosos.
Guarde, depois, com suma benevolência também os dissidentes: essas grandes e ilustres nações, essas almas eleitas, que sentem a dignidade cristã. Suscite nelas salutares desejos, e depois os alimente e os leve a cumprimento. Redundem em vantagem dos dissidentes orientais a ardente devoção que eles professam para com Nossa Senhora, e os numerosos feitos realizados pelos seus antepassados para a glória dela. Depois, em vantagem dos dissidentes ocidentais redunde a lembrança do salutar patrocínio com que ela teve como cara e recompensou a extraordinária piedade que todas as classes sociais lhe professaram por muitas gerações.
Para estes dissidentes e para todos os outros, onde quer que se achem valha a voz unânime e suplicante de todos os povos católicos, e valha a Nossa voz, que até o último alento invocará: "Mostra-te Mãe!".
Entrementes, como auspício dos dons celestes e em atestado da Nossa benevolência, de todo coração concedemos a cada um de vós, ao vosso clero e ao vosso povo a Nossa Bênção Apostólica.

Dado em Roma, junto a S. Pedro, a 5 de Setembro de 1895, no décimo oitavo ano do Nosso Pontificado.

LEÃO XIII PAPA

Homilia. Bento XVI. Natal do Senhor. 24/12/11


SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR
HOMILIA DO SANTO PADRE BENTO XVI
Basílica Vaticana
24 de Dezembro de 2011


Amados irmãos e irmãs!

A leitura que ouvimos, tirada da Carta do Apóstolo São Paulo a Tito, começa solenemente com a palavra «apparuit», que encontramos de novo na leitura da Missa da Aurora: «apparuit – manifestou-se». Esta é uma palavra programática, escolhida pela Igreja para exprimir, resumidamente, a essência do Natal. Antes, os homens tinham falado e criado imagens humanas de Deus, das mais variadas formas; o próprio Deus falara de diversos modos aos homens (cf. Heb 1, 1: leitura da Missa do Dia). Agora, porém, aconteceu algo mais: Ele manifestou-Se, mostrou-Se, saiu da luz inacessível em que habita. Ele, em pessoa, veio para o meio de nós. Na Igreja antiga, esta era a grande alegria do Natal: Deus manifestou-Se. Já não é apenas uma ideia, nem algo que se há-de intuir a partir das palavras. Ele «manifestou-Se». Mas agora perguntamo-nos: Como Se manifestou? Ele verdadeiramente quem é? A este respeito, diz a leitura da Missa da Aurora: «Manifestaram-se a bondade de Deus (…) e o seu amor pelos homens» (Tt 3, 4). Para os homens do tempo pré-cristão – que, vendo os horrores e as contradições do mundo, temiam que o próprio Deus não fosse totalmente bom, mas pudesse, sem dúvida, ser também cruel e arbitrário –, esta era uma verdadeira «epifania», a grande luz que se nos manifestou: Deus é pura bondade. Ainda hoje há pessoas que, não conseguindo reconhecer a Deus na fé, se interrogam se a Força última que segura e sustenta o mundo seja verdadeiramente boa, ou então se o mal não seja tão poderoso e primordial como o bem e a beleza que, por breves instantes luminosos, se nos deparam no nosso cosmos. «Manifestaram-se a bondade de Deus (…) e o seu amor pelos homens»: eis a certeza nova e consoladora que nos é dada no Natal.

Na primeira das três leituras desta Missa de Natal, a liturgia cita um texto tirado do livro do Profeta Isaías, que descreve, de forma ainda mais concreta, a epifania que se verificou no Natal: «Um Menino nasceu para nós, um filho nos foi concedido. Tem o poder sobre os ombros, e dão-lhe o seguinte nome: “Conselheiro admirável! Deus valoroso! Pai para sempre! Príncipe da Paz!” O poder será engrandecido numa paz sem fim» (Is 9, 5-6). Não sabemos se o profeta, ao falar assim, tenha em mente um menino concreto nascido no seu período histórico. Mas isso parece ser impossível. Trata-se do único texto no Antigo Testamento, onde de um menino, de um ser humano, se diz: o seu nome será Deus valoroso, Pai para sempre. Estamos perante uma visão que se estende muito para além daquele momento histórico apontando para algo misterioso, colocado no futuro. Um menino, em toda a sua fragilidade, é Deus valoroso; um menino, em toda a sua indigência e dependência, é Pai para sempre. E isto «numa paz sem fim». Antes, o profeta falara duma espécie de «grande luz» e, a propósito da paz dimanada d’Ele, afirmara que o bastão do opressor, o calçado ruidoso da guerra, toda a veste manchada de sangue seriam lançados ao fogo (cf. Is 9, 1.3-4).

Deus manifestou-Se… como menino. É precisamente assim que Ele Se contrapõe a toda a violência e traz uma mensagem de paz. Neste tempo, em que o mundo está continuamente ameaçado pela violência em tantos lugares e de muitos modos, em que não cessam de reaparecer bastões do opressor e vestes manchadas de sangue, clamamos ao Senhor: Vós, o Deus forte, manifestastes-Vos como menino e mostrastes-Vos a nós como Aquele que nos ama e por meio de quem o amor há-de triunfar. Fizestes-nos compreender que, unidos convosco, devemos ser artífices de paz.  Amamos o vosso ser menino, a vossa não-violência, mas sofremos pelo facto de perdurar no mundo a violência, levando-nos a rezar assim: Demonstrai a vossa força, ó Deus. Fazei que, neste nosso tempo e neste nosso mundo, sejam queimados os bastões do opressor, as vestes manchadas de sangue e o calçado ruidoso da guerra, de tal modo que a vossa paz triunfe neste nosso mundo.

Natal é epifania: a manifestação de Deus e da sua grande luz num menino que nasceu para nós. Nascido no estábulo de Belém, não nos palácios do rei. Em 1223, quando Francisco de Assis celebrou em Greccio o Natal com um boi, um jumento e uma manjedoura cheia de feno, tornou-se visível uma nova dimensão do mistério do Natal. Francisco de Assis designou o Natal como «a festa das festas» – mais do que todas as outras solenidades – e celebrou-a com «solicitude inefável» (2 Celano, 199: Fontes Franciscanas, 787). Beijava, com grande devoção, as imagens do menino e balbuciava-lhes palavras de ternura como se faz com os meninos – refere Tomás de Celano (ibidem). Para a Igreja antiga, a festa das festas era a Páscoa: na ressurreição, Cristo arrombara as portas da morte, e assim mudou radicalmente o mundo: criara para o homem um lugar no próprio Deus. Pois bem! Francisco não mudou, nem quis mudar, esta hierarquia objectiva das festas, a estrutura interior da fé com o seu centro no mistério pascal. Mas, graças a Francisco e ao seu modo de crer, aconteceu algo de novo: ele descobriu, numa profundidade totalmente nova, a humanidade de Jesus. Este facto de Deus ser homem resultou-lhe evidente ao máximo, no momento em que o Filho de Deus, nascido da Virgem Maria, foi envolvido em panos e colocado numa manjedoura. A ressurreição pressupõe a encarnação. O Filho de Deus visto como menino, como verdadeiro filho de homem: isto tocou profundamente o coração do Santo de Assis, transformando a fé em amor. «Manifestaram-se a bondade de Deus e o seu amor pelos homens»: esta frase de São Paulo adquiria assim uma profundidade totalmente nova. No menino do estábulo de Belém, pode-se, por assim dizer, tocar Deus e acarinhá-Lo. E o Ano Litúrgico ganhou assim um segundo centro numa festa que é, antes de mais nada, uma festa do coração.

Tudo isto não tem nada de sentimentalismo. É precisamente na nova experiência da realidade da humanidade de Jesus que se revela o grande mistério da fé. Francisco amava Jesus menino, porque, neste ser menino, tornou-se-lhe clara a humildade de Deus. Deus tornou-Se pobre. O seu Filho nasceu na pobreza do estábulo. No menino Jesus, Deus fez-Se dependente, necessitado do amor de pessoas humanas, reduzido à condição de pedir o seu, o nosso, amor. Hoje, o Natal tornou-se uma festa dos negócios, cujo fulgor ofuscante esconde o mistério da humildade de Deus, que nos convida à humildade e à simplicidade. Peçamos ao Senhor que nos ajude a alongar o olhar para além das fachadas lampejantes deste tempo a fim de podermos encontrar o menino no estábulo de Belém e, assim, descobrimos a autêntica alegria e a verdadeira luz.

Francisco fazia celebrar a santíssima Eucaristia, sobre a manjedoura que estava colocada entre o boi e o jumento (cf. 1 Celano, 85: Fontes, 469). Depois, sobre esta manjedoura, construiu-se um altar para que, onde outrora os animais comeram o feno, os homens pudessem agora receber, para a salvação da alma e do corpo, a carne do Cordeiro imaculado – Jesus Cristo –, como narra Celano (cf. 1 Celano, 87: Fontes, 471). Na Noite santa de Greccio, Francisco – como diácono que era – cantara, pessoalmente e com voz sonora, o Evangelho do Natal. E toda a celebração parecia uma exultação contínua de alegria, graças aos magníficos cânticos natalícios dos Frades (cf.1 Celano, 85 e 86: Fontes, 469 e 470). Era precisamente o encontro com a humildade de Deus que se transformava em júbilo: a sua bondade gera a verdadeira festa.

Hoje, quem entra na igreja da Natividade de Jesus em Belém dá-se conta de que o portal de outrora com cinco metros e meio de altura, por onde entravam no edifício os imperadores e os califas, foi em grande parte tapado, tendo ficado apenas uma entrada com metro e meio de altura. Provavelmente isso foi feito com a intenção de proteger melhor a igreja contra eventuais assaltos, mas sobretudo para evitar que se entrasse a cavalo na casa de Deus. Quem deseja entrar no lugar do nascimento de Jesus deve inclinar-se. Parece-me que nisto se encerra uma verdade mais profunda, pela qual nos queremos deixar tocar nesta noite santa: se quisermos encontrar Deus manifestado como menino, então devemos descer do cavalo da nossa razão «iluminada». Devemos depor as nossas falsas certezas, a nossa soberba intelectual, que nos impede de perceber a proximidade de Deus. Devemos seguir o caminho interior de São Francisco: o caminho rumo àquela extrema simplicidade exterior e interior que torna o coração capaz de ver. Devemos inclinar-nos, caminhar espiritualmente por assim dizer a pé, para podermos entrar pelo portal da fé e encontrar o Deus que é diverso dos nossos preconceitos e das nossas opiniões: o Deus que Se esconde na humildade dum menino acabado de nascer. Celebremos assim a liturgia desta Noite santa, renunciando a fixarmo-nos no que é material, mensurável e palpável. Deixemo-nos fazer simples por aquele Deus que Se manifesta ao coração que se tornou simples. E nesta hora rezemos também e sobretudo por todos aqueles que são obrigados a viver o Natal na pobreza, no sofrimento, na condição de emigrante, pedindo que se lhes manifeste a bondade de Deus no seu esplendor, que nos toque a todos, a eles e a nós, aquela bondade que Deus quis, com o nascimento de seu Filho no estábulo, trazer ao mundo. Amen.